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7.7.22

Oswald de Andrade: "Vício na fala"

 



Vício na fala


Para dizerem milho dizem mio

Para melhor dizem mió

Para pior pió

Para telha dizem teia

Para telhado dizem teiado

E vão fazendo telhados






ANDRADE, Oswald de. "Vício na fala". In: GULLAR, Ferreira (org.). Uma antologia pessoal.Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2014.

2.6.22

Ferreira Gullar: "Redundâncias"

 



Redundâncias


Ter medo da morte

é coisa dos vivos

o morto está livre

de tudo o que é vida


Ter apego ao mundo

é coisa dos vivos

para o morto não há

(não  houve)

raios rios risos


E ninguém vive a morte

quer morto quer vivo

mera noção que existe

só enquanto existo





GULLAR, Ferreira."Redundâncias". In:_____ "Muitas vozes". In:_____ Ferrreira Gullar: toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.


7.5.22

Ferreira Gullar: "A galinha"

 



A galinha

 


Morta,

flutua no chão.

                                   Galinha.

 

Não teve o mar nem

quis, nem compreendeu

aquele ciscar quase feroz. Cis -

cava. Olhava

o muro,

aceitava-o, negro e absurdo.

 

               Nada perdeu. O quintal

               não tinha

                                qualquer beleza.

 

                                                             Agora

as penas são só o que o vento

roça, leves.

                  Apagou-se-lhe

toda a cintilação, o medo.

Morta. Evola-se do olho seco

o sono. Ela dorme.

                                Onde? onde?






GULLAR, Ferreira. "A galinha". In:_____ Toda poesia: 1950-2010. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

2.1.22

Ferreira Gullar: "A alegria"

 



A alegria


O sofrimento não tem

nenhum valor

Não acende um halo

em volta de tua cabeça, não

ilumina trecho algum

de tua carne escura

(nem mesmo o que iluminaria

a lembrança ou a ilusão

de uma alegria).


Sofres tu, sofre

um cachorro ferido, um inseto

que o inseticida envenena.

Será maior a tua dor

que a daquele gato que viste

a espinha quebrada a pau

arrastando-se a berrar pela sarjeta

sem ao menos poder morrer?


A justiça é moral, a injustiça

não. A dor

te iguala a ratos e baratas

que também de dentro dos esgotos

espiam o sol

e no seu corpo nojento

de entre fezes

       querem estar contentes.





GULLAR, Ferreira. “A alegria”. In: ______“Na vertigem do dia”. In:______Poesia completa, teatro e prosa. Org. por Antonio Carlos Secchin. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.

20.4.21

Ferreira Gullar: "Perplexidades"

 


Perplexidades



a parte mais efêmera

                   de mim

é esta consciência de que existo


e todo o existir consiste nisto


é estranho!

e mais estranho

              ainda

              me é sabê-lo

e saber

que esta consciência dura menos

que um fio de meu cabelo


e mais estranho ainda

             que sabê-lo

é que

         enquanto dura me é dado

         o infinito universo constelado

         de quatrilhões e quatrilhões de estrelas

sendo que umas poucas delas

posso vê-las

                  fulgindo no presente do passado





GULLAR, Ferreira. "Perplexidades". In:_____, "De alguma parte alguma". In:_____. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2015. 

24.11.20

Ferreira Gullar: "Nem aí..."

 



Nem aí...



Indiferente

      ao suposto prestígio literário

e ao trabalho

do poeta 

               à difícil faina

a que se entrega para

inventar o dizível,

sobe à mesa

             o gatinho

             se espreguiça

             e deita-se e

             adormece

                             em cima do poema    





GULLAR, Ferreira. "Nem aí...". In:_____. Em alguma parte alguma. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010.



3.6.20

Ferreira Gullar: "Off price"




Off price


Que a sorte me livre do mercado
e que me deixe
continuar fazendo (sem o saber)
                fora de esquema
                meu poema
inesperado

                 e que eu possa
                 cada vez mais desaprender
                 de pensar o pensado
e assim poder
reinventar o certo pelo errado




GULLAR, Ferreira. "Off price". In:_____. Em alguma parte alguma. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010.

6.4.20

Ferreira Gullar: "Barulho"




BARULHO



Todo poema é feito de ar
apenas:
a mão do poeta
não rasga a madeira
não fere
o metal
a pedra
não tinge de azul
os dedos
quando escreve manhã
ou brisa
ou blusa
de mulher.
O poema
é sem matéria palpável
tudo
o que há nele
é barulho
quando rumoreja
ao sopro da leitura.






GULLAR, Ferreira. "Barulho". In:_____. "Barulhos". In:_____. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2015.

23.1.20

Ferreira Gullar: "Vendo a noite"




Vendo a noite


Júpiter, Saturno.
De dentro de meu corpo
estou vendo
o universo noturno.

Velhas explosões de gás
que meu corpo não ouve:
vejo a noite que houve
e não existe mais –

a mesma, veloz, em Troia,
no rosto de Heitor
– hoje na pele de meu rosto
no Arpoador.





GULLAR, Ferreira. "Vendo a noite". In:_____. "Dentro da noite veloz". In:_____ Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2015. 

23.11.19

Ferreira Gullar: "Flagrante"




Flagrante


o meu gato
na cadeira
se coça

corto papéis coloridos na sala
e os colo num caderno

a manhã clara canta na janela
estou eterno





GULLAR, Ferreira. "Flagrante". In:_____. "Em alguma parte alguma". In:_____. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2015.

3.3.19

Ferreira Gullar: "O duplo"




O duplo



Foi-se formando

a meu lado

                 um outro

que é mais Gullar do que eu



que se apossou do que vi

                        do que fiz

                do que era meu



e pelo país

                flutua

livre da morte

e do morto

             

pelas ruas da cidade

         vejo-o passar

          com meu rosto



mas sem o peso

          do corpo

que sou eu

culpado e pouco







GULLAR, Ferreira. "O duplo". In:_____. Em alguma parte alguma. Lisboa: Babel, 2010.

20.2.19

Ferreira Gullar: "Verão"




Verão


Este fevereiro azul
como a chama da paixão
nascido com a morte certa
com prevista duração

deflagra suas manhãs
sobre as montanhas e o mar
com o desatino de tudo
que está para se acabar.

A carne de fevereiro
tem o sabor suicida
de coisa que está vivendo
vivendo mas já perdida.

Mas como tudo que vive
não desiste de viver,
fevereiro não desiste:
vai morrer, não quer morrer.

E a luta de resistência
se trava em todo lugar:
por cima dos edifícios
por sobre as águas do mar.

O vento que empurra a tarde
arrasta a fera ferida,
rasga-lhe o corpo de nuvens,
dessangra-a sobre a avenida

Vieira Souto e o Arpoador
numa ampla hemorragia.
Suja de sangue as montanhas
tinge as águas da baía.

E nesse esquartejamento
a que outros chamam verão,
fevereiro em agonia
resiste mordendo o chão.

Sim, fevereiro resiste
como uma fera ferida.
É essa esperança doida
que é o próprio nome da vida.

Vai morrer, não quer morrer.
Se apega a tudo que existe:
na areia, no mar, na relva,
no meu coração — resiste.




GULLAR, Ferreira. “Verão”. In:_____. Dentro da noite veloz. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

5.1.19

Ferreira Gullar: "Visita"



Visita

no dia de
finados ele foi
ao cemitério
porque era o único
lugar do mundo onde
podia estar
perto do filho mas
diante daquele
bloco negro
de pedra
impenetrável
entendeu
que nunca mais
poderia alcançá-lo

Então
apanhou do chão um
pedaço amarrotado
de papel escreveu
eu te amo filho
pôs em cima do
mármore sob uma
flor
e saiu
soluçando





GULLAR, Ferreira. "Visita". In:_____. "Muitas vozes". In:_____. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2015.

15.12.18

Ferreira Gullar: "Relva verde relva"



Relva verde relva

Dentro de mim – mas onde?
no céu
da boca? debaixo
da pele? –
fulge de repente um largo verde esquecido

dentro de mim
ou fora
(em algum lugar nenhum)
de mim
um largo como se fosse um lago
e quase a transbordar de verde

ouvia a miúda algazarra da relva
rente ao chão

ah aquela inesperada toalha verde viva
em meio à cidade em ruínas!
(o relâmpago me atinge agora numa cozinha da rua Duvivier)

De tais espantos somos feitos.





GULLAR, Ferreira. "Relva verde relva". In:_____. "Em alguma parte alguma". In:_____. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2015.

23.4.18

Cecília Meireles: "Timidez"




Timidez

Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve. . .

— mas só esse eu não farei.

Uma palavra caída
das montanhas dos instantes
desmancha todos os mares
e une as terras mais distantes..

— palavra que eu não direi.

Para que tu me adivinhes,
entre os ventos taciturnos,
apago meus pensamentos,
ponho vestidos noturnos,

— que amargamente inventei.

E, enquanto não me descobres,
os mundos vão navegando
nos ares certos do tempo,
até não se sabe quando...

— e um dia me acabarei.





MEIRELES, Cecília. "Timidez". In: GULLAR, Ferreira (org.). O prazer do poema: Uma antologia pessoal. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2014.


10.9.17

Ferreira Gullar: "Um pouco antes"



Agradeço a meu amigo Adriano Nunes por me ter lembrado que hoje Ferreira Gullar faria 87 anos. Viva Gullar!



Um pouco antes

Quando já não for possível encontrar-me
em nenhum ponto da cidade
ou do planeta
                    pensa
                            ao veres no horizonte
                            sobre o mar de Copacabana
                                                          uma nesga azul de céu
                    pensa que resta alguma coisa de mim
                    por aqui
                                Não te custará nada imaginar
                                que estou sorrindo ainda naquela nesga
                                azul celeste
                                pouco antes de dissipar-me para sempre




GULLAR, Ferreira. "Um pouco antes". In:_____. "Em alguma parte alguma". In:_____. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2015.

16.4.17

Ferreira Gullar: "Dois poetas na praia"



Dois poetas na praia

É carnaval,
a terra treme:
um casal de poetas conversa
na praia do Leme!

Falam os dois de poesia
e dos banhistas
que nunca lerão Drummond nem Mallarmé.
– E lerão o meu poema?
pergunta ela.
– Alguém vai ler.
– Pois mesmo que não leia
não vou deixar de dizer
o que vejo nesta areia
que eles pisam sem ver.

E o poeta mais velho
sorri confortado:
a poesia está ali
renascida a seu lado.



GULLAR, Ferreira. "Dois poetas na praia". In:_____. Em alguma parte alguma. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010.

11.1.17

Ferreira Gullar: "A estrela"

Agradeço a meu amigo Arthur Nogueira (vejam http://arthurnogueira.blogspot.com.br/2017/01/a-estrela.html) por me ter lembrado da seguinte obra-prima do Ferreira Gullar:



A estrela

Gatinho, meu amigo,
fazes ideia do que seja uma estrela?

Dizem que todo este nosso imenso planeta
      coberto de oceanos e montanhas
      é menos que um grão de poeira
      se comparado a uma delas

Estrelas são explosões nucleares em cadeia
numa sucessão que dura bilhões de anos

O mesmo que a eternidade

Não obstante, Gatinho, confesso
que pouco me importa
                 quanto dura uma estrela

Importa-me quanto duras tu,
                querido amigo,
                e esses teus olhos azul-safira
                com que me fitas



GULLAR, Ferreira. "A estrela". In:_____. "Em alguma parte alguma". In:_____. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2015.

6.12.16

Trecho de "Vinícius de Moraes, um rapaz de família", de Suzana Moraes

Vejam, no belo filme de Susana Moraes, "Vinícius de Moraes, um rapaz de família", uma conversa de Vinícius e Ferreira Gullar sobre o "Poema sujo":



30.11.16

Ferreira Gullar: "Registro"




Registro

À janela
             de meu apartamento
à rua Duvivier 49
            (sistema solar, planeta Terra,
             Via Láctea)
             limpo as unhas da mão
por volta das quatro e quarenta da tarde
             do dia 2 de dezembro de 2008
enquanto
              na galáxia M 31
a 2 milhões e 200 mil anos-luz de distância
              extingue-se uma estrela




GULLAR, Ferreira. "Registro". In:_____. "Em alguma parte alguma". In:_____. Toda poesia. Rio de Janeiro: 2015.