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19.4.09

Nietzsche e o papa

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 18 de abril:



Nietzsche e o papa

QUINTA-FEIRA da semana passada, por ocasião da Missa Crismal, o papa Bento 16 fa-°° lou da incompatibilidade entre o pensamento de Friedrich Nietzsche e o cristianismo. Segundo ele, o autor de "Assim Falou Zarathustra" desdenhou a humildade e a obediência como virtudes servis, pelas quais os homens teriam sido reprimidos. O papa acusou Nietzsche também de ter colocado no lugar dessas virtudes "a ufania e a liberdade absoluta do homem". Ora, "no sim da ordenação sacerdotal", disse o papa ante os cardeais, bispos e padres em geral de Roma, "fizemos a renúncia fundamental a querer ser autônomos, à "autorrealização'".

As declarações do papa suscitaram viva reação, principalmente na Itália: o que não é de surpreender, considerando-se que é em Roma que fica o Vaticano e, nele, a Basílica de São Pedro, onde teve lugar a Missa Crismal. Assim, o filósofo católico Massimo Cacciari desconfia que seja ultrapassada a leitura de Nietzsche feita pelo papa.

O filósofo católico Gianni Vattimo, por sua vez, afirma que o papa não percebeu que "Nietzsche é um cristão inconsciente". Ao contrário deles, o também católico Giovanni Reale, autor de monumentais obras de história da filosofia, pensa que Bento 16 tem razão.

Também concordo com o papa. Repugnam-me esforços contemporâneos para conciliar com o cristianismo concepções de mundo que lhe são inteiramente antagônicas, como o pensamento de Nietzsche ou o de Marx.

Tais iniciativas me lembram outra coisa. Até pouco tempo era comum a tentativa de converter ou reverter ao cristianismo, no leito da morte, pensadores conhecidamente ateus ou deístas. Que digo? Até pouco tempo? Dez anos atrás isso ocorreu com um dos nossos maiores poetas.

Mas, a título de ilustração, vou citar o trecho de um livro em que o escritor piauiense Higino Cunha (de quem me orgulho de ser bisneto) descreve a morte de Voltaire:

"Os achaques da velhice vieram prostrá-lo com todo o seu cortejo de misérias. Entra em jogo a faina trevosa da conversão in extremis. Um padre se encarrega de confessá-lo e de fazê-lo assinar uma profissão de fé católico-romana. Propala-se a balela e os livres-pensadores motejam do caso incrível. Mas o filósofo não morreu dessa vez; volta a si e ajuda os incrédulos a zombarem da suposta retratação com grande escândalo da gente religiosa. Poucos dias depois uma recaída perigosa; outro padre põe-se à espreita do momento fatídico para a realização do plano inquisitorial; quer, a todo transe, que o moribundo reconheça, ao menos, a divindade de Jesus Cristo, pela qual se interessa mais do que pelos outros dogmas. Aproveita uma ocasião de letargia e grita-lhe aos ouvidos: Credes na divindade de Jesus Cristo? Respondeu-lhe o interpelado agonizante: Em nome de Deus, senhor, não me faleis mais desse homem e deixai-me expirar em paz".

Pois bem, pior que a conversão fraudulenta de um filósofo é a conversão fraudulenta da sua filosofia a uma religião à qual ele sempre se opôs. Que pode resultar de semelhante empreendimento senão a diluição de todos os conceitos numa desprezível mixórdia?

É verdade que Nietzsche fazia pouco caso de se contradizer. Por isso mesmo, tenho para mim que, embora ele seja um grande pensador, Nietzsche é antes um artista do que um filósofo.

Assim, é possível achar trechos de seus escritos em que sua atitude ante o cristianismo não seja de pura rejeição. Já em 1938, o filósofo Karl Jaspers pinçou vários deles, ao falar sobre "Nietzsche e o cristianismo". E até teólogos, como Eugen Biser, têm feito o mesmo.

Entretanto não há como negar que Nietzsche escolheu o cristianismo como seu inimigo principal, nos pontos cardeais das obras mais importantes que escreveu. Ora, ele dizia que era mais importante escolher bem os inimigos do que os amigos. De fato, é naquilo a que uma filosofia se opõe que se percebe seu gume. Privá-la de seu inimigo equivale a embotá-la.

Em "O Anticristo", lê-se: "É necessário dizer QUEM consideramos nossa antítese -- os teólogos e todos os que têm sangue de teólogo nas veias -- toda a nossa filosofia...". Parece-me claro que, se Nietzsche soubesse dos teólogos que tentam cooptá-lo, com certeza os consideraria como seus mais infames inimigos.

Mais leal é um inimigo formal como o papa. Afinal, a guerra foi declarada por Nietzsche, que considerava o cristianismo “mais nocivo que qualquer vício”.