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13.7.11

Antonio Cicero: Mais um "causo" de Zizek




Em artigo no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, no dia 9 do corrente, Jorge Barcellos considera “profundamente atual” o pensamento de Slavjo Zizek. Ele observa que, entre outras coisas, Zizek conta “causos” que “sintetizam brilhantemente suas ideias”.

Um exemplo disso, segundo Barcellos, ocorre quando, “para mostrar o cinismo do capitalismo contemporâneo em sua caminhada em direção a um capitalismo autoritário, contrário aos direitos humanos”, Zizek cita, em determinado momento do livro Em defesa das causas perdidas, a ficha de um hotel americano. Ela diz: “Prezado cliente: para garantir que você vai desfrutar sua estadia conosco, o fumo está totalmente proibido neste hotel. Qualquer violação deste regulamento resultará numa multa de US$ 200”. “Assim é o capitalismo, diz Zizek: estamos condenados a ser castigados se recusarmos a desfrutá-lo plenamente”.

Mas examinemos bem esse exemplo. Na verdade, a proibição do fumo em lugares públicos é racionalizada pela tese, supostamente comprovada, de que o fumo passivo prejudica a saúde. Não vou entrar no mérito de tal tese. O fato é que um número muito grande de pessoas – aparentemente a maioria da população – aceita tal tese, nos Estados Unidos. Assim, o que evidentemente a regra do hotel americano quer dizer é que a proibição do cigarro protegerá o hóspede de ser vítima de fumo passivo. Caso ele próprio fume, supõe-se que prejudicará a terceiros; por isso, será punido por uma multa.

Terá tal regra sido imposta pelo “capitalismo”? Mas que capitalista teria interesse nela? Os únicos capitalistas que, enquanto capitalistas, parecem-me ser diretamente afetados por ela são os fabricantes de cigarros: ela sem dúvida os prejudica seriamente.

E terá sentido supor que, se a maioria da população de um país condena determinado tipo de comportamento, tal atitude só é levada em conta se esse país viver sob um regime capitalista?

Não será absurdo supor que justamente os “socialistas” seriam necessariamente indiferentes às atitudes da maioria da população?

Suponhamos que a regra do hotel não dissesse respeito a cigarro, mas a outra coisa; que ela dissesse, por exemplo: “Prezado cliente: para garantir que você vai desfrutar sua estadia conosco, o assassinato está totalmente proibido neste hotel. Qualquer violação deste regulamento resultará em prisão”. Seria isso uma prova do “cinismo do capitalismo contemporâneo em sua caminhada em direção a um capitalismo autoritário, contrário aos direitos humanos”? É evidente que não, pois essa regra só não se encontra explícita na ficha dos hotéis de qualquer país concebível – capitalista ou não – porque já é expressamente prevista pela lei de qualquer país concebível. Sendo assim, é evidente que tampouco pode ser considerada prova nenhuma de cinismo a regra sobre a proibição de cigarros, num país em que a maioria da população condena o fumo.

De fato, esse “causo” sintetiza brilhantemente os procedimentos sofísticos em que Zizek baseia suas teses.

2.5.10

A ideologia marxista hoje




O seguinte texto é uma versão um pouco mais longa do artigo que foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, no sábado, 1º de maio.


A ideologia marxista hoje


JÁ CITEI uma vez, nesta coluna, a observação do filósofo Theodor Adorno no ensaio "As Estrelas Descem à Terra" de que, ao semierudito, "a astrologia [...] oferece um atalho, reduzindo o que é complexo a uma fórmula prática e oferecendo, simultaneamente, uma agradável gratificação: o indivíduo que se sente excluído dos privilégios educacionais supõe pertencer a uma minoria que está "por dentro'". Na época, mostrei que tal descrição convém também à ideologia religiosa do apóstolo Paulo, assim como à de Martinho Lutero. Pois bem, o fato é que ela se aplica igualmente bem a ideologias seculares, tais como o marxismo vulgar.

Embora tencione dar uma chave para o entendimento do mundo, como uma religião, o marxismo, longe de se tomar como religião, considera-se inteiramente racional, declarando-se tanto filosofia quanto ciência da história e da sociedade. Isso faculta ao semierudito ter-se, do ponto de vista cognitivo, como superior também aos eruditos que, por diferentes razões, não tenham adotado a concepção marxista.

Como, além disso, essa concepção do mundo quer fundamentar uma teoria revolucionária, tendo em vista a superação do capitalismo e a instauração do comunismo, sociedade em que pretende que não haverá mais propriedade privada dos meios de produção, nem diferentes classes sociais nem os flagelos da exploração e da opressão do ser humano pelo ser humano, os marxistas, já pelo simples fato de se posicionarem a favor de tal revolução, consideram-se, a priori, superiores, também do ponto de vista ético, a todos que não o tenham feito.

Para esse modo de pensar, o mundo existente, em que domina o modo de produção capitalista, é inteiramente degradado. Nele, qualquer progresso é tido como meramente adjetivo, quando não fictício. A democracia existente -qualificada de "burguesa"- não é valorizada senão enquanto caminho para a revolução. Só esta deverá trazer um progresso real.

Hoje, porém, nem os marxistas podem pretender saber como se daria a superação do capitalismo. Não ignoro que, se questionados, certamente falariam em "socialismo". Concretamente, porém, que poderia significar para eles tal palavra?

Seu socialismo certamente nada teria a ver com a social-democracia, pois esta, sendo compatível com o capitalismo, não representaria sua superação. Tratar-se-ia então do socialismo como a estatização dos meios de produção, tal como se deu, por exemplo, na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas?

Será realmente possível identificar a estatização com o socialismo, que seria a transição para o comunismo? Friedrich Engels diria que não, pois afirmava que "quanto mais forças produtivas o Estado moderno passa a possuir, quanto mais se torna um capitalista total real, tantos mais cidadãos ele explora. Os trabalhadores continuam assalariados, proletários. Longe de ser superada, a relação capitalista chega ao auge". Dado que a propriedade estatal dos meios de produção não garante a posse real deles pelos trabalhadores, ela é capaz de não passar de uma forma de capitalismo de Estado. A superação do capitalismo somente se daria quando a sociedade, aberta e diretamente, sem a intermediação do Estado, tomasse posse das forças produtivas. Note-se bem: a propriedade estatal dos meios de produção, consistindo na manifestação extrema de uma relação de produção capitalista, está longe de ser a posse social dos mesmos.

Os revolucionários russos não pensaram assim. Tomando a estatização da economia sob a ditadura do Partido Comunista, pretenso representante do proletariado, como a instauração do socialismo (que seria o primeiro passo para o comunismo), supuseram que já haviam deixado para trás o modo de produção capitalista.

O fato, porém, é que a própria extinção da URSS e o caráter selvagem e mafioso do capitalismo que hoje vigora na Russia se encarregaram de desmentir essa pretensão. Em obra recente, o marxista Alain Badiou reconhece que “sob a forma do Partido-Estado, experimentou-se uma forma inédita de Estado autoritário e mesmo terrorista, de todo modo muito separado da vida das pessoas”. E conclui: “O princípio da estatização era em si mesmo viciado e por fim ineficaz. O exercício de uma violência policial extrema e sangrenta não conseguiu salvá-lo de sua inércia burocrática interna e, na competição feroz que lhe impuseram seus adversários, não foram precisos mais de cinquenta anos para mostrar que ele jamais venceria”.

A Revolução Cultural Chinesa pode ser entendida como uma tentativa de mobilizar as massas contra o estabelecimento de uma situação semelhante, na China. Seu líder, Mao Tse-tung, chegou a dizer: “Não se sabe onde está a burguesia? Mas [nos países socialistas] ela se encontra no Partido Comunista!” Como, porém, as “massas” são necessariamente plurais, particulares, instáveis e manobráveis, o fato é que, na época moderna, qualquer “democracia direta” não pode passar de uma quimera. Não admira, portanto, que a Revolução Cultural se tenha tornado extremamente caótica e violenta, de modo que, por fim, tenha sido necessário, como diz Badiou, “restabelecer a ordem nas piores condições”. O resultado é que impera hoje na China o mais brutal capitalismo, tanto estatal quanto privado.

A verdade é portanto que, como nem a centralização, sob a égide do Partido, nem a mobilização das massas logram superar o capitalismo, não se sabe – jamais se soube realmente– como se daria tal superação.

Contudo, só a miopia ideológica impede de ver que, embora a "Revolução" se tenha revelado um beco sem saída, o mundo em que vivemos encontra-se em fluxo incessante; e que a sociedade aberta, os direitos humanos, a livre expressão do pensamento, a maximização da liberdade individual compatível com a existência da sociedade, a autonomia da arte e da ciência etc. -que constituem exigências inegociáveis da crítica, isto é, da razão- constituem também as verdadeiras condições para torná-lo melhor.

3.10.09

A ressurreição do apóstolo Paulo

Ao escrever o artigo que saiu hoje publicado na minha coluna da “Ilustrada”, da Folha de São Paulo, acabei por fazê-lo muito maior do que o espaço que me é reservado. Normalmente, quando isso acontece, edito o artigo, para que caiba no espaço disponível, sem perder o essencial do seu argumento. Foi o que tentei fazer com o artigo de hoje. Ao relê-lo no jornal, porém, achei que o resultado deixa a desejar: que carece de clareza e precisão. Por isso, excepcionalmente, publico aqui o artigo na sua versão – mais longa – original.


A ressurreição do apóstolo Paulo

HÁ POUCOS meses, o papa Bento 16 anunciou que haviam sido encontrados os restos mortais do apóstolo Paulo. Nesse ponto, Ratzinger estava atrasado. Em alguns círculos de esquerda, esse apóstolo já havia sido ressuscitado há algum tempo. Basta lembrar o livro de Alain Badiou, de 1997 ("São Paulo: a Fundação do Universalismo"), o de Giorgio Agamben, de 2000 ("O Tempo que Resta: Comentário à Carta aos Romanos"), a reedição, em 1993, do livro de Jacob Taubes ("A Teologia Política de Paulo") e as muitas páginas que Slavoj Zizek tem ultimamente dedicado a esse apóstolo (por exemplo, em "O Absoluto Frágil").

Ora, nenhum leitor das invectivas de Paulo contra a filosofia e a racionalidade (por exemplo, em 1Co 1:19-27 e 3:18-20, e Ro 1:21-22) pode ignorar que ele foi um dos fundadores do irracionalismo cristão. De fato, esses escritores me parecem ser atraídos exatamente pelo irracionalismo de Paulo. Por que?

Consideremos Badiou. Recentemente, ele tem escrito (por exemplo, na "Revista Piauí" de agosto de 2007), sobre a "hipótese comunista". Basicamente, esta consistiria na suposição de que seja possível eliminar a desigualdade das riquezas, a divisão de trabalho e o aparelho de Estado coercitivo, militar e policial, separado da sociedade civil.

Francamente, não sei se é mesmo possível eliminar a desigualdade ou o aparelho de Estado. Entretanto, Badiou diz também que essa "hipótese" é "uma ideia com função reguladora, e não um programa". Se isso significa que quem adota a "hipótese comunista" é aquele que orienta suas ações políticas no sentido de, entre outras coisas, promover a diminuição da desigualdade das riquezas, flexibilizar a divisão do trabalho e diminuir a necessidade do Estado coercitivo, então ela pode ser aceita por um reformista radical, como eu mesmo.

Badiou porém, longe de se considerar um reformista, pretende ser um revolucionário. Assim também creio serem quase todos os entusiastas da “hipótese comunista”. O que querem é uma revolução que, mais ou menos rapidamente, destrua o capitalismo e construa o comunismo, isto é, que rapidamente, como foi dito, elimine a desigualdade das riquezas, a divisão de trabalho e o aparelho de Estado coercitivo, militar e policial, separado da sociedade civil.

Entretanto, desconfio que nenhum desses revolucionários saberia dizer exatamente como se daria tal superação do capitalismo. Não ignoro que, se questionados, certamente falariam em “socialismo”. Concretamente, porém, que poderia significar para eles tal palavra?

Seu socialismo certamente nada teria a ver com a social-democracia, pois esta, sendo compatível com o capitalismo, não representa sua superação. Tratar-se-ia então do socialismo como a estatização dos meios de produção, tal como se proclamou, por exemplo, na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas?

Será possível identificar a estatização com o socialismo? Friedrich Engels diria que não, pois afirmava que “quanto mais forças produtivas o Estado moderno passa a possuir, quanto mais se torna um capitalista total real, tantos mais cidadãos ele explora. Os trabalhadores continuam assalariados, proletários. Longe de ser superada, a relação capitalista chega ao auge”.

Para Engels, portanto, a propriedade estatal não era a solução. No máximo, ela podia ser usada como um meio para se chegar mais perto da solução. E qual seria essa, segundo ele? Que a sociedade, aberta e diretamente, tomasse posse das forças produtivas. Note-se bem: a propriedade estatal dos meios de produção, consistindo na manifestação extrema de uma relação de produção capitalista, está longe de ser a posse social dos mesmos.

Os revolucionários russos não pensaram assim. Tomando a estatização da economia sob a ditadura do Partido Comunista, pretenso representante do proletariado, como a constituição do “modo de produção socialista” (que seria o primeiro passo para o comunismo), supuseram que já haviam deixado para trás o modo de produção capitalista.

O fato, porém, é que a própria extinção da URSS e o caráter selvagem e mafioso do capitalismo que hoje vigora na Russia se encarregaram de desmentir essa pretensão. Em obra recente, Badiou comenta que “sob a forma do Partido-Estado, experimentou-se uma forma inédita de Estado autoritário e mesmo terrorista, de todo modo muito separado da vida das pessoas”. E conclui: “O princípio da estatização era em si mesmo viciado e por fim ineficaz. O exercício de uma violência policial extrema e sangrenta não conseguiu salvá-lo de sua inércia burocrática interna e, na competição feroz que lhe impuseram seus adversários, não foram precisos mais de cinquenta anos para mostrar que ele jamais venceria”.

A Revolução Cultural Chinesa é por Badiou entendida como uma tentativa de mobilizar as massas contra o estabelecimento de uma situação semelhante, na China. Seu líder, Mao Tse-tung, chegou a dizer: “Não se sabe onde está a burguesia? Mas ela está no Partido Comunista!” Como, porém, as “massas” são necessariamente plurais, particulares, instáveis e manobráveis, o fato é que, na época moderna, qualquer “democracia direta” não pode passar de uma quimera. Não admira, portanto, que a Revolução Cultural se tenha tornado extremamente caótica e violenta, de modo que, por fim, tenha sido necessário, como diz Badiou, “restabelecer a ordem nas piores condições”. O resultado é que impera hoje na China o mais brutal capitalismo, tanto estatal quanto privado.

A verdade é portanto que, como nem a centralização, sob a égide do Partido, nem a mobilização das massas logram superar o capitalismo, não se sabe – jamais se soube – como se daria tal superação.

Um famoso hino alemão oriental dizia: “Die Partei hat immer Recht”, isto é, "o Partido sempre está certo". Tal secularização do pensamento religioso constitui o ápice do irracionalismo e acabou por produzir incalculável sofrimento. As terríveis experiências do século 20 apenas confirmam empiricamente algo que, por direito, já se sabe desde a Ilustração: nem a Igreja, nem a Bíblia, nem o Partido, nem o líder genial, nem as massas, ninguém é capaz de sempre estar certo. Nada está acima de ser criticado. Por isso, a sociedade aberta, os direitos humanos, a livre expressão do pensamento, a maximização da liberdade individual compatível com a existência da sociedade, a autonomia da arte e da ciência etc. são exigências inegociáveis da crítica, isto é, da razão.

Ora, não há por que pensar que não seja possível, mesmo nos marcos de uma sociedade aberta, promover a diminuição da desigualdade das riquezas, flexibilizar a divisão do trabalho e diminuir a necessidade do Estado coercitivo. Uma das provas de que as coisas podem melhorar é hoje a própria experiência brasileira, nos últimos quinze anos de governos democráticos de esquerda.

Mas, naturalmente, os seguidores do apóstolo Paulo não pensam assim. Apesar de reconhecer que "o marxismo, o movimento operário, a democracia de massas, o leninismo, o Partido do proletariado, o Estado socialista, todas essas invenções notáveis do século 20 não nos são mais realmente úteis", Badiou prefere crer na Revolução do que na razão. Para ele, a Revolução Francesa abrira um primeiro período revolucionário; a Revolução Russa, um segundo. Aguardando o próximo, ele confessa: "Não estou em condições de dizer com certeza o que é a essência do terceiro período revolucionário que vai se abrir". Ele tem certeza de que ocorrerá algo decisivo no terceiro – note-se bem a mística do numero – período revolucionário, embora não saiba o que será. Em suma, adota um estilo escatológico, sem nada dizer. Por que isso?

Porque ele é “revolucionário”, ou melhor, apocalíptico. Badiou rejeita a democracia parlamentar porque quer rejeitar em bloco a sociedade aberta em que vive: “A hipótese comunista”, afirma, “não coincide de maneira nenhuma com a hipótese democrática”. Se como dissemos, a sociedade aberta é uma exigência inegociável da crítica, isto é, da razão, então, embora não o confesse literalmente, é a razão que, no fundo Badiou tenciona relativizar. “Há algo no devir de uma verdade”, afirma ele, “que ultrapassa as possibilidades estritas da mente humana”.

Aqui entra o apóstolo Paulo. Embora a racionalidade clássica considerasse irracionalistas as teses de Paulo, estas, segundo Badiou, constituíram um "acontecimento" que superou aquela, inaugurando um novo tipo de universalismo e de verdade. “Todo procedimento de verdade”, diz ele, “rompe com o princípio axiomático que governa a situação e organiza a sua série repetitiva. Um procedimento de verdade interrompe a repetição e não pode portanto ser sustentado pela permanência abstrata própria à unidade da conta, subtraída da conta”. Ou seja, o “procedimento de verdade” é incomensurável com o que, antes da sua instauração, passa por verdade.

Segundo Badiou, o conhecimento (savoir), pertencente à ordem do Ser, opõe-se à verdade, manifesta em acontecimentos que não pertencem à ordem do ser, mas surgem ex nihilo, à maneira de milagres. Para Slavoj Zizek, também entusiasta de Paulo, "Badiou está inteiramente justificado ao insistir que -- usando o termo com seu peso teológico integral -- milagres ocorrem sim". A verdade milagrosa é singular, pois não poder ser classificada em gênero nenhum; universal, pois ultrapassa todas as particularidades acessíveis ao conhecimento; e axiomática, pois transcende tudo o que pode ser provado ou demonstrado.

Badiou pensa que a verdade só é discernível pelos membros da nova comunidade de crentes. A rigor, ela não passa, portanto, de uma crença. Comentando -- e aprovando -- tais teses, Zizek especula que a verdadeira fidelidade ao acontecimento é 'dogmática' no sentido preciso de fé incondicional, de uma atitude que não procura boas razões e que, por essa razão mesma, não pode ser refutada por nenhuma 'argumentação'". Ora, ocorre que aquilo que não pode ser refutado por nenhum argumento é exatamente o irracional. Em suma, trata-se aqui do mais puro irracionalismo religioso.

De todo modo, podemos nos perguntar qual é o procedimento de verdade que autoriza Badiou a afirmar suas teses. Certamente não pode ser o que ainda não foi instaurado; e como poderia ser o que vigora contemporaneamente, se este é objeto constante do seu escárnio?

O fato é que – como aliás convém a quem, como bom discípulo de Paulo de Tarso, literalmente exalta as três virtudes teologais – Badiou sustenta suas teses exclusivamente na fé.

25.1.09

O fenômeno Barack Obama

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 24 de janeiro de 2009.



O fenômeno Barack Obama

NEM OS representantes da direita cínica nem os da esquerda dogmática conseguem esconder seu rancor contra a alegria com que tanta gente saudou a posse de Barack Obama. Tanto uns quanto os outros debocham da "ingenuidade" dos que pensam que, com o novo presidente, alguma coisa possa melhorar nos Estados Unidos ou em qualquer outra parte do mundo. Segundo eles, nada pode mudar senão para pior.

Acontece que as pessoas que conheço e que ficaram admiradas e alegres com a eleição e a posse de Obama estão longe de ser tão ingênuas quanto eles supõem. Elas não acreditam em milagres ou messias ou "grandes timoneiros"; são conscientes de que o presidente dos Estados Unidos não pode fazer tudo o que quer; percebem que Obama ainda não se provou como administrador; sabem que vivemos um momento de crise econômica mundial sem precedentes; entendem a gravidade das guerras no Oriente Médio e no Afeganistão; compreendem que vivemos um momento instável de imprevisíveis transformações nas correlações internacionais de forças econômicas, políticas e militares etc. etc.

Apesar disso, os que celebram a posse de Obama -entre os quais me incluo- acreditam que já há bastante razão para fazê-lo. Em primeiro lugar, é extraordinário que um homem negro, filho de imigrante, com um nome de origem árabe, tenha sido eleito presidente dos Estados Unidos. Em segundo lugar, é maravilhoso que tal homem deva sua eleição, em grande parte, à superioridade do seu brilho, do seu carisma, das suas ideias. Em terceiro lugar, é esplêndido que, ao eleger Obama, os eleitores americanos tenham claramente repudiado o governo mais vil de que se tem memória nos Estados Unidos, que foi o da extrema direita do Partido Republicano, na figura lamentável de George W. Bush. Em resposta aos que afirmam que nada poderá mudar no novo governo, pode-se dizer que esses três fatos já representam uma imensa mudança.

Mas há mais. Curiosamente, sob influência de comentaristas das grandes redes de televisão norte-americanas, muitos afirmam que Obama nada disse de novo no seu discurso de posse. Isso é uma falsidade. De modo educado, porém firme, ele deixou bem claras as suas diferenças em relação ao antecessor. Entre outras coisas, falou de restaurar ao devido lugar a ciência (que foi vilipendiada, como se sabe, pelo apoio ideológico e material dado por Bush à charlatanice do "design inteligente"); declarou ser falsa a oposição entre os princípios e a segurança (quando Bush, em nome desta, sacrificou aqueles); ressaltou a necessidade de abandonar dois dogmas: o primeiro, quanto ao tamanho do Estado (que o governo Bush pretendeu tornar mínimo no que diz respeito à segurança social, mas não no que diz respeito às forças de repressão e guerra); e o segundo, quanto ao papel do mercado (que o governo Bush quis maximizar por meio, entre outras coisas, de uma desregulamentação cujas consequências se manifestam na atual crise econômica); observou, contra o fanatismo religioso (que Bush sempre cortejou), que o povo dos EUA não se compõe apenas de crentes, mas também de incréus; e afirmou, contra os conservadores, que "o mundo mudou e nós devemos mudar com ele".

As ideias de que o mundo mudou – que o próprio Obama não só afirma mas encarna – e de que devemos mudar com ele são, no fundo, as que mais irritam tanto os direitistas cínicos quanto os esquerdistas dogmáticos. Outra ideia que lhes é inaceitável -e que constitui o próprio teor do discurso de posse- é a de que a sociedade aberta é melhor do que a fechada.

Quanto à direita, ninguém ignora que ela se define exatamente em oposição às ideias de mudança para melhor e de sociedade aberta. Já para a esquerda dogmática, a situação é um pouquinho mais complexa. O que ela é incapaz de admitir é que possa haver qualquer melhora real no mundo antes da superação do capitalismo, isto é, antes da "Revolução". Sendo assim, dado que qualquer mudança real no mundo existente – principalmente nos Estados Unidos, que são o ápice do capitalismo – desmentiria suas teses, não lhe resta senão crer que toda mudança e todo projeto de mudança que se apresente como tal seja um mero engodo. Assim lhe parece ser também a sociedade aberta, que ela descarta como "democracia burguesa".

A meu ver, o que não consegue mudar, o que é esclerosado, são ideologias como essas. As coisas reais mudam o tempo todo, ora para pior, ora para melhor e, embora não possamos saber o que acontecerá daqui para frente, a verdade é que, no momento em que escrevo, o fenômeno Obama já representa uma mudança real para melhor.

2.11.08

Sobre o "roubo da história"

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 1 de novembro:



Sobre o "Roubo da História"


Livro de Jack Goody desfaz confusões entre o Ocidente e a modernidade


NOS SÉCULOS 19 e 20, a esmagadora superioridade científica, tecnológica e econômica da Europa e dos Estados Unidos sobre o resto do mundo (com exceção, no século 20, do Japão) intrigou inúmeros cientistas sociais. O sociólogo Max Weber, por exemplo, perguntava-se: "Que encadeamento de circunstâncias levou a que precisamente no terreno do Ocidente, e somente aqui, tenham surgido fenômenos culturais que se desenvolvem numa direção -pelo menos é o que gostamos de pensar- de significado e validade universais?".

Trata-se da questão da originalidade do Ocidente. Não é apenas que o Ocidente seja considerado diferente, mas que a sua diferença, a sua singularidade, pareça se encontrar precisamente no seu caráter universal. Entre outros, Karl Marx já havia enfrentado essa questão antes de Weber e, ainda hoje, ela continua a instigar inúmeros cientistas sociais.

Em livro recente publicado este ano no Brasil, "O Roubo da História: Como os Europeus se Apropriaram das Idéias e Invenções do Oriente" (editora Contexto), o antropólogo Jack Goody procura mostrar o caráter em última análise etnocêntrico das respostas que têm sido propostas por praticamente todos esses estudiosos.

Reconhecendo que o Ocidente tem ostentado uma inegável superioridade científica, tecnológica e econômica sobre o resto do mundo, Goody chama atenção, entretanto, para o fato de que essa vantagem é relativamente recente, sendo discutível que tenha ocorrido antes do século 17 ou mesmo antes da Revolução Industrial. Assim, por exemplo, desde o início da Idade Média na Europa até o século 16 ou 17, a China esteve à frente do Ocidente, no que diz respeito à tecnologia e à economia. Basta lembrar que foi do Oriente que vieram as inovações que Francis Bacon, no século 16, considerava centrais para a sociedade moderna, isto é, a bússola, o papel, a pólvora, a prensa, a manufatura e mesmo a industrialização da seda e dos tecidos de algodão.

Ademais, hoje em dia, a ciência, a tecnologia e a economia do Japão, dos "tigres asiáticos", da China e da Índia talvez estejam perto de, novamente, retomar a hegemonia mundial. O etnocentrismo dos estudiosos ocidentais está em projetar no passado da Europa a atual superioridade ocidental nas esferas mencionadas, de modo que essa superioridade -que, considerando-se a história como um todo, não passa de conjuntural- pareça pertencer essencialmente à cultura ocidental.

Tal é o resultado, por exemplo, do esquema conceitual marxista segundo o qual, na Europa, foi a dissolução do escravagismo antigo que produziu as condições necessárias para o estabelecimento do feudalismo medieval, e a dissolução deste que produziu as condições necessárias para o surgimento do capitalismo e da modernidade.

Segundo esse esquema, onde não se encontrem tais condições, o capitalismo não surge espontaneamente. É assim que se pretende explicar por que a Ásia não teria conhecido o capitalismo, antes de ser presa do colonialismo e do imperialismo: ela teria ficado, por milênios, atolada na estagnação daquilo que Marx chamava de "modo de produção asiático". Ora, Goody argumenta convincentemente que essa estagnação mesma jamais passou de um mito.

A meu ver, o grande mérito de "O Roubo da História" é desfazer a confusão entre o Ocidente e a modernidade. Com isso, ele destrói as bases do etnocentrismo verdadeiramente inaceitável -que se encontra na base, por exemplo, da teoria do "choque de civilizações", de Samuel Huntington- que é a pretensão de que a modernidade pertença à cultura ou à "civilização" ocidental.

A modernidade não pertence a cultura nenhuma, mas surge sempre CONTRA uma cultura particular, como uma fenda, uma fissura no tecido desta. Assim, na Europa, a modernidade não surge como um desenvolvimento da cultura cristã, mas como uma crítica a esta ou a determinados componentes desta, feita por indivíduos como Copérnico, Montaigne, Bruno, Descartes etc., indivíduos que, na medida em que a criticavam, já dela se separavam, já dela se desenraizavam.

A crítica faz parte da razão que, não pertencendo a cultura particular nenhuma, está em princípio disponível a todos os seres humanos e culturas. Entendida desse modo, a modernidade não consiste numa etapa da história da Europa ou do mundo, mas numa postura crítica ante a cultura, postura que é capaz de surgir em diferentes momentos e regiões do mundo, como na Atenas de Péricles, na Índia do imperador Ashoka ou no Brasil de hoje.

24.2.08

Capitalismo e ideologia

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 23 de fevereiro de 2008.

Capitalismo e ideologia

NO MEU último artigo, chamei atenção para uma curiosa analogia entre o feudalismo e o "socialismo real", tal como este existiu, por exemplo, na União Soviética. No modo de produção feudal, era fundamental para o próprio funcionamento da economia que uma única ideologia, isto é, o catolicismo, fosse compartilhada por praticamente toda a sociedade.

Por isso, as ideologias desviantes ou hostis eram perseguidas. A principal instituição que devia definir, estabelecer, divulgar e impor essa religião era, como se sabe, a Igreja.

Ora, também no modo de produção socialista, era fundamental para o próprio funcionamento da economia que uma única ideologia, isto é, o marxismo-leninismo, também acabasse por ser adotada por praticamente toda a sociedade.

Por isso, as ideologias desviantes ou hostis eram perseguidas. A principal instituição que devia definir, estabelecer, divulgar e impor essa verdadeira religião laica era, como se sabe, o Partido Comunista, por meio do Estado, que monopolizava todas as instituições de ensino e de propaganda.

Observei também que o modo de produção capitalista, ao contrário, é capaz de funcionar sem necessidade de que nenhuma ideologia particular seja compartilhada pela maior parte da sociedade. Sendo assim, ele é perfeitamente compatível com a liberdade de expressão, inclusive a liberdade de imprensa.

Pois bem, essas simples constatações -sobretudo a última- provocaram vários leitores a enviarem mensagens indignadas, principalmente ao meu e-mail e ao meu blog. Entretanto, todas me acusam de ter dito coisas que eu não disse. A indignação é, sem dúvida, pelo que eu realmente escrevi e, sem dúvida, exatamente pelo fato de ser incontestável; mas, já que não conseguiam contestá-lo, os ataques dos insatisfeitos se concentraram no que não escrevi nem penso. É o que se chama má-fé.

Acusaram-me, por exemplo, de ter dito que não há ideologia capitalista ou burguesa. Ora, penso, ao contrário, que há inúmeras ideologias burguesas. O que afirmei foi que nenhuma ideologia particular tem que ser compartilhada pela maior parte da sociedade para que a economia capitalista funcione.

Trata-se de algo evidente, que é suscetível de ser empiricamente verificado em inúmeros países capitalistas, inclusive no Brasil. Quem poderia negar que o Brasil (ou os Estados Unidos, ou a França...) é um país capitalista? Quem poderia negar que há, no Brasil (ou nesses outros países), liberdade de expressão?

Essa característica do capitalismo pode ser explicada pelo fato de que as motivações que orientam as ações dos seus agentes econômicos -em particular, dos capitalistas (por exemplo, o lucro e a ampliação do capital) e dos operários (por exemplo, o salário)- são basicamente materiais e reguladas principalmente pelo mercado impessoal, de modo que pouco importa para o funcionamento da economia que cada indivíduo tenha ideologias, filosofias, religiões, superstições, gostos, hábitos, vícios etc. diferentes de cada um dos outros indivíduos.

Segundo a famosa fórmula da "Fábula das Abelhas", de Mandeville (século 18), vícios privados (por exemplo, a cobiça) são capazes de produzir virtudes públicas (por exemplo, a prosperidade nacional).

É evidente que tal modo de pensar jamais poderia funcionar numa economia socialista planejada, em que, tendo em vista a "construção do socialismo (ou do comunismo)", torna-se necessário exaltar a virtude do altruísmo e a submissão do interesse individual ao coletivo.

Que admira, se, em tal situação, quem pensar por conta própria já esteja incorrendo no desvio do "individualismo pequeno-burguês"? Para evitá-lo, torna-se necessária a "reeducação" de todos segundo um único modelo: para isso, apela-se, por exemplo, às chamadas "revoluções culturais".

Lin Piao, um dos líderes da Revolução Cultural Chinesa, explicava que ela tinha como meta "eliminar a ideologia burguesa, estabelecer a ideologia proletária, remodelar as almas do povo, extirpar o revisionismo e consolidar e desenvolver o sistema socialista". É o totalitarismo em estado puro.

Estou longe de achar o capitalismo perfeito. Mas não se pode tentar superar os seus problemas sem, ao mesmo tempo, preservar, ampliar, universalizar e consolidar a sociedade aberta, o direito à livre expressão de pensamento, a maximização da liberdade individual, a autonomia da ciência, a autonomia da arte etc. Vimos que o marxismo-leninismo é, em princípio e de fato, incompatível com essa exigência. Resta-nos ser radicalmente reformistas.

10.2.08

Marx e o capitalismo

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 9 de janeiro de 2008:


Marx e o capitalismo

MARX CONTA, em nota de pé de página de "O Capital", que, certa vez, uma gazeta teuto-americana criticou o materialismo da sua famosa tese, segundo a qual a estrutura econômica da sociedade é a base real sobre a qual se ergue uma superestrutura jurídica e política, à qual correspondem determinadas formas de consciência social. Para os editores da gazeta, tudo isso certamente estava correto para o mundo contemporâneo, onde dominava o interesse material, mas não para a Idade Média, em que dominava o catolicismo, nem para Atenas ou Roma, onde dominava a política. A resposta de Marx foi que "a Idade Média não podia viver do catolicismo, nem o mundo antigo, da política. Ao contrário, a forma e o modo pelos quais ganhavam a vida é que explica por que ali a política e aqui o catolicismo desempenhavam o papel principal".

Ninguém ignora a importância do catolicismo para o feudalismo, que era o modo de produção dominante na Idade Média. Como diz o historiador Jacques Le Goff, em "O Deus da Idade Média" (ed. Civilização Brasileira), publicado no Brasil no ano passado, "no mundo feudal, nada de importante se passa sem que seja relacionado a Deus. Deus é ao mesmo tempo o ponto mais alto e o fiador desse sistema. É o senhor dos senhores. [...] O regime feudal e a Igreja eram de tal forma ligados que não era possível destruir um sem pelo menos abalar o outro".

Como se sabe, o regime feudal era o modo de produção dominante na Europa, antes do capitalismo. Curiosamente, se pensarmos agora no modo de produção que pretendia superar o capitalismo, que era o socialismo (que, segundo os marxistas-leninistas, era a primeira etapa, de transição, para o comunismo), veremos que, onde ele tentou existir realmente, como na União Soviética, nos países do Leste Europeu etc., o papel da ideologia marxista-leninista não era menor do que o da religião católica havia sido durante a era do feudalismo.

É verdade que, no socialismo, a política também teve um papel importantíssimo, não menor do que o que tivera no mundo antigo; mas, de qualquer modo, a história mostrou que aquilo que Le Goff diz da articulação entre o feudalismo e a Igreja - que eram de tal forma ligados que não seria possível destruir um sem pelo menos abalar o outro - pode ser dito da articulação entre o socialismo real e o partido marxista-leninista. Assim, por exemplo, dado que, no socialismo, as atividades econômicas não seriam mais realizadas tendo em vista a subsistência ou o lucro, era necessário que o partido - como diz uma enciclopédia publicada pelo Instituto Bibliográfico da extinta República Democrática Alemã - orientasse a criação da "unidade moral e política do povo", de modo que o trabalho se transformasse, "de mero meio de subsistência a um assunto de honra". Assim também, um dos líderes da Revolução Cultural chinesa, Lin Piao, explica que ela tinha como meta “eliminar a ideologia burguesa, estabelecer a ideologia proletária, remodelar as almas do povo, extirpar o revisionismo e consolidar e desenvolver o sistema socialista”. Todas essas coisas eram no fundo uma só.

Em semelhante regime, a intolerância em relação a heresias - ideologias alternativas, "desvios", "revisionismos" etc. - não é meramente acidental. A repressão a elas não se reduz - como se poderia supor - a um mero estratagema político, usado por determinado partido ou comitê central, ou líder (como não pensar em Stalin?) para racionalizar a prática de perseguir e eliminar os dissidentes. Ela provém da necessidade estrutural de manter a unidade ideológica indispensável para o funcionamento da própria base econômica.

Já o capitalismo funciona independentemente das idéias, concepções, religiões, atitudes, isto é, das ideologias, dos operários, capitalistas, técnicos, administradores ou consumidores que o fazem funcionar. Ainda que cada indivíduo pense e aja de uma maneira diferente de todos os outros, o capitalismo é capaz de prosperar, desde que seja observado de modo geral um mínimo de leis e regras formais de convivência. É exatamente por isso que ele é compatível com a maximização da liberdade individual, a sociedade aberta e o reformismo.

Os editores da gazeta teuto-americana perceberam de modo invertido a situação real. É o feudalismo (e, como vimos, também o socialismo) que necessita, para o seu funcionamento, de uma ideologia particular, correspondente à sua base econômica, e que, por isso, não é capaz de tolerar ideologias alternativas. O capitalismo, porém, exatamente porque a sua base econômica opera a partir do puro interesse material, independentemente de qualquer ideologia particular, não necessita de nenhuma ideologia específica, de modo que é capaz de tolerar todas, inclusive as que lhe foram ou são hostis, como o catolicismo ou o marxismo-leninismo.

6.11.07

Alba Zaluar: Inverter não é transformar

O seguinte artigo de Alba Zaluar foi publicado na sua coluna da Folha de São Paulo, segunda-feira, 15 de outubro de 2007:


Inverter não é transformar

A IGUALDADE tem sido objeto de uma infindável discussão teórica. Há os que afirmam ser ela uma condição inalcançável, visto que seres humanos diferem em suas capacidades, talentos e disposição para o trabalho; há os que ressaltam a necessidade como o critério para a distribuição da riqueza produzida. Os primeiros, filósofos morais do liberalismo político, preocupam-se com as violações à liberdade que a busca incessante da igualdade vem a trazer. Os segundos, adeptos da economia marxista, acreditam que dar a cada um segundo a sua necessidade inclui o princípio de receber de cada um segundo a sua habilidade de contribuir economicamente.
Nenhum pensador da igualdade defendeu a idéia de que seria possível obter o necessário por fraude, força, roubo, coerção ou dano a outras pessoas. Esse princípio moral está também em Marx, que exaltava o valor do trabalho -o pago e o não pago- e visualizava uma sociedade futura em que essa distribuição seria feita sem coerção de qualquer espécie.
Aqui no Brasil, a discussão tomou rumos indefensáveis. Quem nega a um branco bem-sucedido, mesmo que vindo de meios sociais modestos, o direito de consumir (que inclui portar) os bens disponíveis socialmente, não está recusando para si mesmo, um negro oriundo de favelas e periferias, esse gozo.
Rappers são conhecidos no mundo todo por seu sucesso e sua ilimitada sede de consumo. Coleções de tênis, roupas de marca, automóveis do ano, festas extravagantes são alguns itens listados nos seus currículos de consumidores. E, claro, não se imolam pelo sucesso que os destacou.
Defender o roubo como recurso de distribuição de renda revela um enorme desconhecimento das redes e tramas do submundo do crime, onde grassa o capitalismo mais selvagem de que se tem notícia. Ou bem a pessoa que roubou vai portar esse objeto, que apenas muda de mãos e continua a simbolizar a desigualdade reinante, ou ela vai vendê-lo a um receptador que pagará muito pouco e fará um hiperlucro comercial, ambos sem produzir riqueza nenhuma. Para onde foi a distribuição de renda? Para alimentar a acumulação do receptador e a ilusão do ladrão que precisa voltar a roubar e, portanto, está sempre a se arriscar em benefício de outrem.
Com tanto incentivo a ganhar dinheiro fácil, estimula-se exponencialmente a acumulação de riquezas em poucas mãos. Se as defesas morais contra a fraude e o roubo continuarem a ser destruídas tão hipocritamente, a produção de riquezas será reduzida e o estoque de riquezas do país encolhido a tal ponto que não teremos nem consumo nem muito menos a tão almejada igualdade.

Alba Zaluar