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21.8.12
Paulo Guedes: "Socialismo tardio"
O seguinte -- excelente -- artigo do economista Paulo Guedes foi publicado em O Globo na segunda-feira, 20 de agosto:
Socialismo tardio
“Presidentes que não saem do ar: Hugo Chávez, da Venezuela, Cristina Kirchner, da Argentina, e Rafael Correa, do Equador, usam redes nacionais de rádio e TV para impor sua visão”, informa O GLOBO de ontem em matéria que revela como arma política o “microfone estatal a serviço do poder”.
Estive em Cuba com minha família há apenas alguns anos. Fidel Castro era ainda presidente. Quando liguei a televisão no hotel e percorri os canais, o comandante estava em todos eles. Era ainda pior do que esse clássico sintoma de tiranetes em ascensão que se comunicam com frequência em cadeias nacionais de televisão.
Filmado em diferentes ocasiões, em longuíssimos discursos, fazia preleções para crianças em escolas, presidia reuniões políticas, exortava jovens em cerimônias de formatura universitária, recebia delegações políticas estrangeiras, em onipresente tentativa de lavagem cerebral.
Entusiasmante nos primeiros minutos, tolerável por meia hora e insuportável a partir de então. Chávez, a cuja visita pude assistir naquela ocasião, teve mesmo em Fidel um grande mestre.
Hoje sabemos todos que Lula não era Chávez. Mas nem todos sabíamos que o Brasil não é a Venezuela. O antigo procurador-geral da República Antonio Fernando de Souza sabia. O atual procurador-geral, Roberto Gurgel, e o ministro do Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa também. Quem não sabia era a turma do mensalão.
Há quem, ainda hoje, acredite na concentração dos poderes políticos, na centralização administrativa, na estatização da economia e no controle da mídia como receitas adequadas para o Brasil. O equívoco intelectual tem nome: um exacerbado socialismo nacionalista.
Essa é uma estrada conhecida, trilhada à “esquerda” e à “direita” por regimes totalitários que infelicitaram milhões de seres humanos. Enveredaram por esse caminho as ditaduras de partido único da Itália de Mussolini, da Alemanha de Hitler, da Rússia de Stalin. O caminho da servidão.
“Mussolini foi antes de tudo um socialista. O ingrediente nacionalista foi também virulento. O fascismo italiano é, como o nazismo alemão, um nacional-socialismo”, diagnostica o insuspeito e lúcido Edgar Morin, em “Cultura e barbárie europeias” (2005). O socialismo bolivariano é a doença latina do século XXI.
2.2.10
Fernando de Barros e Silva: "Que esquerda é essa?"
O seguinte -- excelente -- artigo de Fernando de Barros e Silva foi publicado segunda-feira, 1 de fevereiro, na Folha de São Paulo:
Que esquerda é essa?
SÃO PAULO - Como retrato da esquerda, o Fórum Social Mundial nos oferece uma imagem melancólica. De um lado, o evento, encerrado ontem, se presta a ser um palco de aclamação do lulismo; de outro, reitera sem mais dogmas anticapitalistas, fazendo tabula rasa do legado ruinoso dos experimentos coletivistas do século 20.
Em sua 10ª edição, o fórum agrega uma esquerda que transita entre o novo pragmatismo e a utopia de antigamente, sem que se detenha na crítica de nenhum dos polos. Adesista e fundamentalista ao mesmo tempo, essa esquerda age como quem quer usufruir todos os benefícios possíveis deste mundo (lulista), sem prejuízo de manter intacto o clichê do "outro mundo possível".
Entre o radicalismo vazio e o apego ao poder, haveria uma trilha menos cômoda. Algo como o compromisso com a redução das desigualdades, com o combate à corrupção em todas as suas formas e a defesa da democracia e do pluralismo -tudo combinado numa perspectiva reformista, que se paute pelo realismo sem abrir mão de princípios.
Não é isso, como se sabe, o que seduz os funcionários da utopia. Mas que esquerda é essa que vira as costas aos estudantes venezuelanos e não se manifesta contra a escalada autoritária de Chávez? Que esquerda é essa, para quem o mensalão não existiu ou acha que "a vida é assim mesmo"? Que esquerda é essa, capaz de defender a barba de Fidel Castro e o bigode de José Sarney?
Não há dúvida de que existe uma maioria bem intencionada entre os participantes do fórum. Mas o evento se tornou coisa de profissionais. Com raríssimas exceções, os intelectuais que contam não perdem mais tempo por lá. Restou um lúmpen "pensante" que fez do fórum o seu negócio. Gente, aliás, que cansou de esperar Godot e hoje enche as burras à custa do lulismo. São parasitas do Estado que adoram ressuscitar o fantasma neoliberal diante de plateias embasbacadas para manter viva a sua boquinha. Será possível ainda ser de esquerda sem parecer idiota ou espertalhão?
18.11.09
Ferreira Gullar: "Retrocesso à vista"
Recomendo ao leitor que, pondo de lado os seus eventuais preconceitos, reflita sobriamente sobre o importante artigo de Ferreira Gullar abaixo reproduzido, que foi originalmente publicado domingo, 15 de novembro, na "Ilustrada", da Folha de São Paulo:
Retrocesso à vista
O FIM DA utopia marxista, que apostava na derrota do capitalismo, deu lugar, na América Latina, ao neopopulismo que, fazendo-se passar por socialista, explora, em vez da contradição classe operária versus burguesia, a oposição entre pobres e ricos. Se, no caso anterior, os sindicatos funcionavam como instrumento de organização e mobilização do operariado para a tomada revolucionária do poder, agora constituem uma burocracia de neopelegos, que passaram a ocupar posições estratégicas no aparelho de Estado e na máquina política.
Assim, pressionam o governo e os patrões para que façam pequenas concessões aos trabalhadores, com a condição de mantê-los quietos, enquanto eles, os neopelegos, enriquecem a se fortalecem politicamente. A ascensão de Lula à Presidência da República foi resultado desse jogo e, ao mesmo tempo, um salto qualitativo para a elite sindicalista.
As consequências disso para a democracia brasileira podem ser as mais desastrosas, como procurou mostrar Fernando Henrique Cardoso, num artigo recente, intitulado "Para onde vamos?"
O neopopulismo nada tem de revolucionário, como alardeia Hugo Chávez, travestido de líder esquerdista, mas que, na verdade, se apoia no voto do venezuelano pobre. Sustentado pelos vultosos rendimentos do petróleo, mantém programas sociais assistencialistas, que lhe garantem vasta popularidade.
Aparece, diante do povão desinformado, como seu providencial protetor, que o defende de um lobo mau chamado Estados Unidos. Seu verdadeiro projeto é manter-se indefinidamente no poder e, para consegui-lo, fez o Congresso aprovar a reeleição ilimitada.
Lula tentou seguir o mesmo caminho, mas teve sua pretensão rejeitada numa pesquisa de opinião. Precavido, mudou de tática e terminou adotando a candidatura de Dilma como a solução possível.
Invenção sua, se eleita, ela terá que fazer dele seu sucessor em 2014, e, assim, caso isso ocorra, teríamos mais oito anos de Lula na Presidência da República, o que somaria, no total, 20 anos de lulismo. Ou mais, muito mais, porque pode não parar aí, já que, àquela altura, as bases do neopeleguismo e do neopopulismo estariam amplamente assentadas em todo o país.
A ameaça é que, se já agora ele se rebela contra a ação fiscalizadora do Tribunal de Contas da União e pretende calar a imprensa, ou seja, não admite que ninguém critique ou cerceie suas decisões de governo, imaginem o que não fará durante tantos anos no poder.
A história tanto anda para frente como pode andar para trás. O propósito de, chegado ao poder, não sair mais, faz parte da ideologia petista, como deixou claro José Dirceu, em visita a Madri, logo após a posse de Lula, em 2003, ao afirmar que o projeto deles era ficar 20 anos no poder. Sim, porque, ao contrário dos outros partidos "burgueses", o partido dito revolucionário vem para salvar o povo e mudar o rumo da história. Logo, não pode se submeter às regras democráticas da alternância no poder. Se é verdade que, a esta altura, o petismo já abriu mão do revolucionarismo, não admite perder as posições conquistadas.
Lula, muito esperto, logo compreendeu que o Brasil não é a Venezuela. Sabe que, embora tenha maioria no Congresso, este jamais lhe concederia um terceiro mandato e muito menos a possibilidade de reeleição ilimitada. Por isso, adotou a tática de conseguir um mandato tampão para Dilma, enquanto, às carreiras, procura implantar o PAC e aparecer, diante da nação, como um presidente empreendedor, que visa elevar o país à condição de grande potência. Assim age Chávez e assim agiu nossa ditadura militar.
A fórmula é sempre aquela: inimigo dos poderosos e amigo dos pobres, defensor dos negros e mulatos, inimigo dos brancos de olhos azuis. Isso transparece, a todo momento, em suas declarações e discursos. Não faz muito tempo, falando aos catadores de lixo, criticou os ricos que, deliberadamente, sujam a cidade para que os lixeiros, humilhados por eles, a limpem.
É um presidente da República que, sem qualquer escrúpulo, faz questão de instigar ressentimentos e conflitos entre os cidadãos, jogar uns contra os outros. Isso no discurso, porque, de fato, usa a máquina do Estado para favorecer grandes empresas nacionais e estrangeiras.
O artigo de Fernando Henrique Cardoso chamou atenção para o perigo que o país corre. Em vez de desautorizá-lo, os formadores de opinião deveriam preocupar-se com o interesse maior da sociedade. É de se esperar, também, que Serra e Aécio assumam a responsabilidade que lhes cabe.
Retrocesso à vista
O FIM DA utopia marxista, que apostava na derrota do capitalismo, deu lugar, na América Latina, ao neopopulismo que, fazendo-se passar por socialista, explora, em vez da contradição classe operária versus burguesia, a oposição entre pobres e ricos. Se, no caso anterior, os sindicatos funcionavam como instrumento de organização e mobilização do operariado para a tomada revolucionária do poder, agora constituem uma burocracia de neopelegos, que passaram a ocupar posições estratégicas no aparelho de Estado e na máquina política.
Assim, pressionam o governo e os patrões para que façam pequenas concessões aos trabalhadores, com a condição de mantê-los quietos, enquanto eles, os neopelegos, enriquecem a se fortalecem politicamente. A ascensão de Lula à Presidência da República foi resultado desse jogo e, ao mesmo tempo, um salto qualitativo para a elite sindicalista.
As consequências disso para a democracia brasileira podem ser as mais desastrosas, como procurou mostrar Fernando Henrique Cardoso, num artigo recente, intitulado "Para onde vamos?"
O neopopulismo nada tem de revolucionário, como alardeia Hugo Chávez, travestido de líder esquerdista, mas que, na verdade, se apoia no voto do venezuelano pobre. Sustentado pelos vultosos rendimentos do petróleo, mantém programas sociais assistencialistas, que lhe garantem vasta popularidade.
Aparece, diante do povão desinformado, como seu providencial protetor, que o defende de um lobo mau chamado Estados Unidos. Seu verdadeiro projeto é manter-se indefinidamente no poder e, para consegui-lo, fez o Congresso aprovar a reeleição ilimitada.
Lula tentou seguir o mesmo caminho, mas teve sua pretensão rejeitada numa pesquisa de opinião. Precavido, mudou de tática e terminou adotando a candidatura de Dilma como a solução possível.
Invenção sua, se eleita, ela terá que fazer dele seu sucessor em 2014, e, assim, caso isso ocorra, teríamos mais oito anos de Lula na Presidência da República, o que somaria, no total, 20 anos de lulismo. Ou mais, muito mais, porque pode não parar aí, já que, àquela altura, as bases do neopeleguismo e do neopopulismo estariam amplamente assentadas em todo o país.
A ameaça é que, se já agora ele se rebela contra a ação fiscalizadora do Tribunal de Contas da União e pretende calar a imprensa, ou seja, não admite que ninguém critique ou cerceie suas decisões de governo, imaginem o que não fará durante tantos anos no poder.
A história tanto anda para frente como pode andar para trás. O propósito de, chegado ao poder, não sair mais, faz parte da ideologia petista, como deixou claro José Dirceu, em visita a Madri, logo após a posse de Lula, em 2003, ao afirmar que o projeto deles era ficar 20 anos no poder. Sim, porque, ao contrário dos outros partidos "burgueses", o partido dito revolucionário vem para salvar o povo e mudar o rumo da história. Logo, não pode se submeter às regras democráticas da alternância no poder. Se é verdade que, a esta altura, o petismo já abriu mão do revolucionarismo, não admite perder as posições conquistadas.
Lula, muito esperto, logo compreendeu que o Brasil não é a Venezuela. Sabe que, embora tenha maioria no Congresso, este jamais lhe concederia um terceiro mandato e muito menos a possibilidade de reeleição ilimitada. Por isso, adotou a tática de conseguir um mandato tampão para Dilma, enquanto, às carreiras, procura implantar o PAC e aparecer, diante da nação, como um presidente empreendedor, que visa elevar o país à condição de grande potência. Assim age Chávez e assim agiu nossa ditadura militar.
A fórmula é sempre aquela: inimigo dos poderosos e amigo dos pobres, defensor dos negros e mulatos, inimigo dos brancos de olhos azuis. Isso transparece, a todo momento, em suas declarações e discursos. Não faz muito tempo, falando aos catadores de lixo, criticou os ricos que, deliberadamente, sujam a cidade para que os lixeiros, humilhados por eles, a limpem.
É um presidente da República que, sem qualquer escrúpulo, faz questão de instigar ressentimentos e conflitos entre os cidadãos, jogar uns contra os outros. Isso no discurso, porque, de fato, usa a máquina do Estado para favorecer grandes empresas nacionais e estrangeiras.
O artigo de Fernando Henrique Cardoso chamou atenção para o perigo que o país corre. Em vez de desautorizá-lo, os formadores de opinião deveriam preocupar-se com o interesse maior da sociedade. É de se esperar, também, que Serra e Aécio assumam a responsabilidade que lhes cabe.
18.11.07
Democracia: formal ou profunda?
O Seguinte artigo foi publicado sábado, 17 de novembro, na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo:
Democracia: formal ou profunda?
No dia 7 do corrente, em Caracas, no campus da Universidade Central da Venezuela, um grupo armado abriu fogo contra estudantes que regressavam de uma manifestação pelo adiamento do referendo sobre a reforma constitucional que, entre outras coisas, institucionalizaria a reeleição ilimitada do presidente Chávez, além de lhe ampliar os poderes. No dia 9, esses mesmos estudantes foram chamados por Chávez de fascistas.
No dia seguinte, em reunião da Cúpula Ibero-Americana de Chefes de Estado e de Governo, em Santiago, Chávez acusou de fascista o ex-premier espanhol Aznar, obrigando o atual premier, o socialista Zapatero, a lhe pedir que respeitasse outros chefes de Estado, apesar de suas diferenças políticas. Atropelando grosseiramente a fala de Zapatero, Chávez, como se sabe, acabou por provocar o rei Juan Carlos, da Espanha, a lhe sugerir que se calasse.
Não pode ter escapado a ninguém que a acusação de Chávez saíu pela culatra. O que realmente evoca o fascismo são, em primeiro lugar, o conteúdo da reforma constitucional por ele proposta; em segundo, o método plebiscitário com que pretende legitimá-la (lembremo-nos de que referendos e plebiscitos eram o método favorito de Hitler para “legitimar” os seus atos ilegais); em terceiro, o fato de que não somente o seu governo já cassou a concessão para transmissão em sinal aberto de uma emissora de televisão da oposição (a RCTV), mas pretende cassar a concessão de outra (a Globovisión); em quarto, a violência dos grupos armados dos partidários do líder bolivarianista ao atacar os estudantes; em quinto, o cinismo com que ele acusou de fascistas justamente as vítimas dessa violência; e, em sexto, a histrionice e a truculência verbal com que viola as regras da discussão racional.
Para mim, porém, o que mais causa preocupação é que, depois disso tudo, o presidente Lula tenha declarado que não falta democracia na Venezuela, pois ela já passou por “três referendos, três eleições não sei para quê, quatro plebiscitos”. Essa é a “democracia direta” (leia-se a “ditadura plebiscitária”) de Chávez: o povo aprova o que o governo propõe. E é essa a “democracia direta” que pretendem os petistas que defendem a modificação da Constituição para permitir a terceira reeleição do Presidente, a ampliação dos seus poderes, a diminuição dos poderes do Congresso etc.
A verdade é que as únicas democracias que se conhecem são as que se baseiam no equilíbrio dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. O fortalecimento de qualquer um desses poderes em detrimento dos outros (ou o enfraquecimento de qualquer um deles em proveito dos outros) é extremamente perigoso. A experiência latino-americana tem sido a da hipertrofia do executivo. O resultado é, inevitavelmente, a ditadura. Exatamente isso é o que está a ocorrer na Venezuela e ocorrerá também no Brasil, caso se enfraqueça o legislativo, usando o artifício, caro aos regimes populistas e totalitários, de transferir suas atribuições a referendos e plebiscitos.
Grande parte da esquerda, nada tendo aprendido com as terríveis experiências das ditaduras de Stalin, Mao ou Pol-Pot, continua a desvalorizar o que qualifica de “democracia formal” em nome de – como se dizia, semana passada, no seminário da Academia da Latinidade, que teve lugar em Lima – uma “democracia profunda”.
A verdadeira democracia não pode deixar de ser formal porque não se pode prender a nenhum objetivo, programa, partido político ou líder particular, uma vez que, não podendo pressupor que este ou aquele seja dono da verdade absoluta, deve estar aberta a todos, exceto aos que atentem contra ela. Que seja eleito este ou aquele candidato ou partido é inteiramente contingente à verdadeira democracia. Necessária é a garantia de que candidatos ou partidos diferentes tenham a possibilidade real de alcançar o poder.
Nunca é demais repetir que absolutamente nada pode justificar qualquer atentado contra o Estado de direito, a livre expressão do pensamento, a maximização da liberdade individual, a coexistência de uma multiplicidade de culturas e formas de vida, a autonomia da ciência, a autonomia da arte etc.: em suma, nada pode justificar qualquer atentado contra a preservação dos direitos humanos e da sociedade aberta.
O regime político que ameace a verdadeira democracia, que é a democracia formal, deve ser chamado, não de democracia – profunda ou rasa –, mas de ditadura.
Democracia: formal ou profunda?
No dia 7 do corrente, em Caracas, no campus da Universidade Central da Venezuela, um grupo armado abriu fogo contra estudantes que regressavam de uma manifestação pelo adiamento do referendo sobre a reforma constitucional que, entre outras coisas, institucionalizaria a reeleição ilimitada do presidente Chávez, além de lhe ampliar os poderes. No dia 9, esses mesmos estudantes foram chamados por Chávez de fascistas.
No dia seguinte, em reunião da Cúpula Ibero-Americana de Chefes de Estado e de Governo, em Santiago, Chávez acusou de fascista o ex-premier espanhol Aznar, obrigando o atual premier, o socialista Zapatero, a lhe pedir que respeitasse outros chefes de Estado, apesar de suas diferenças políticas. Atropelando grosseiramente a fala de Zapatero, Chávez, como se sabe, acabou por provocar o rei Juan Carlos, da Espanha, a lhe sugerir que se calasse.
Não pode ter escapado a ninguém que a acusação de Chávez saíu pela culatra. O que realmente evoca o fascismo são, em primeiro lugar, o conteúdo da reforma constitucional por ele proposta; em segundo, o método plebiscitário com que pretende legitimá-la (lembremo-nos de que referendos e plebiscitos eram o método favorito de Hitler para “legitimar” os seus atos ilegais); em terceiro, o fato de que não somente o seu governo já cassou a concessão para transmissão em sinal aberto de uma emissora de televisão da oposição (a RCTV), mas pretende cassar a concessão de outra (a Globovisión); em quarto, a violência dos grupos armados dos partidários do líder bolivarianista ao atacar os estudantes; em quinto, o cinismo com que ele acusou de fascistas justamente as vítimas dessa violência; e, em sexto, a histrionice e a truculência verbal com que viola as regras da discussão racional.
Para mim, porém, o que mais causa preocupação é que, depois disso tudo, o presidente Lula tenha declarado que não falta democracia na Venezuela, pois ela já passou por “três referendos, três eleições não sei para quê, quatro plebiscitos”. Essa é a “democracia direta” (leia-se a “ditadura plebiscitária”) de Chávez: o povo aprova o que o governo propõe. E é essa a “democracia direta” que pretendem os petistas que defendem a modificação da Constituição para permitir a terceira reeleição do Presidente, a ampliação dos seus poderes, a diminuição dos poderes do Congresso etc.
A verdade é que as únicas democracias que se conhecem são as que se baseiam no equilíbrio dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. O fortalecimento de qualquer um desses poderes em detrimento dos outros (ou o enfraquecimento de qualquer um deles em proveito dos outros) é extremamente perigoso. A experiência latino-americana tem sido a da hipertrofia do executivo. O resultado é, inevitavelmente, a ditadura. Exatamente isso é o que está a ocorrer na Venezuela e ocorrerá também no Brasil, caso se enfraqueça o legislativo, usando o artifício, caro aos regimes populistas e totalitários, de transferir suas atribuições a referendos e plebiscitos.
Grande parte da esquerda, nada tendo aprendido com as terríveis experiências das ditaduras de Stalin, Mao ou Pol-Pot, continua a desvalorizar o que qualifica de “democracia formal” em nome de – como se dizia, semana passada, no seminário da Academia da Latinidade, que teve lugar em Lima – uma “democracia profunda”.
A verdadeira democracia não pode deixar de ser formal porque não se pode prender a nenhum objetivo, programa, partido político ou líder particular, uma vez que, não podendo pressupor que este ou aquele seja dono da verdade absoluta, deve estar aberta a todos, exceto aos que atentem contra ela. Que seja eleito este ou aquele candidato ou partido é inteiramente contingente à verdadeira democracia. Necessária é a garantia de que candidatos ou partidos diferentes tenham a possibilidade real de alcançar o poder.
Nunca é demais repetir que absolutamente nada pode justificar qualquer atentado contra o Estado de direito, a livre expressão do pensamento, a maximização da liberdade individual, a coexistência de uma multiplicidade de culturas e formas de vida, a autonomia da ciência, a autonomia da arte etc.: em suma, nada pode justificar qualquer atentado contra a preservação dos direitos humanos e da sociedade aberta.
O regime político que ameace a verdadeira democracia, que é a democracia formal, deve ser chamado, não de democracia – profunda ou rasa –, mas de ditadura.
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14.11.07
Paulo Guedes: A estética fascista
O seguinte artigo de Paulo Guedes foi publicado em O Globo, segunda-feira, 12 de novembro de 2007:
A estética fascista
O rei Juan Carlos, da Espanha, mandou o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, calar a boca durante a Cúpula Ibero-Americana, em Santiago do Chile. Chávez acusara de fascista o ex-presidente do governo espanhol José María Aznar. Por mais simpatia que se tenha pelas intenções da "revolução bolivariana", os sintomas desta terrível doença política, o fascismo, estão mais próximos de Chávez do que ele pensa. Segundo Luis Dupeux, em "História cultural da Alemanha: 1919-1960" (1989), "a utilização de palavras de ordem e das manifestações de massa foram comuns aos nazistas e fascistas. Bem como a gradual interdição da imprensa por um conjunto de leis e decretos sempre assegurando a legalidade do sistema". Fechamento da RCTV?
"Na mais visual de todas as formas, o fascismo se apresenta por vívidas imagens: um demagogo discursando bombasticamente para uma multidão em êxtase; jovens desfilando em paradas; militantes espancando membros de alguma demonizada minoria. Nacionalismo, ataques a propriedades, recurso à violência, voluntarismo, antiintelectualismo, rejeição a soluções de compromisso, desprezo pela sociedade estabelecida foram características do fascismo", registra Robert Paxton, em "A anatomia do fascismo" (2005).
Prossegue o autor: "Os primeiros movimentos fascistas ostentavam também seu desprezo pelos valores burgueses, pelo "dinheiro, imundo dinheiro", atacando o capitalismo financeiro internacional com veemência. Prometeram expropriar os donos de loja em favor de artesãos, e os proprietários de terra em favor de camponeses. Exploraram as vítimas da industrialização rápida e da globalização, os perdedores da modernização, usando as técnicas de propaganda mais modernas. Política de massas, tentava apelar sobretudo às emoções, pelo uso de retórica intensamente carregada. O fascismo ajuda um povo a realizar seu destino. Repousa na união mística do líder com o destino histórico de seu povo, agora plenamente consciente de sua identidade e seu poder." Líder, povo, identidade e poder "bolivarianos"?
"Um artifício usado pelos fascistas eram as estruturas paralelas, tanto na ascensão quanto no exercício do poder. O Estado oficial e essas estruturas conferiam ao regime sua bizarra mistura de legalismo e de violência arbitrária." Chavistas atacando universitários?
"Tendo chegado ao poder na legalidade, líderes fascistas podiam exercê-lo apenas nos termos da Constituição. Seu poder era limitado. O golpe dos fascistas foi transformar um cargo constitucional em autoridade pessoal ilimitada, controlando por completo o Estado. Os Parlamentos perderam o poder, e as eleições foram substituídas por plebiscitos do tipo "sim ou não"."
E, a propósito do alerta do senador José Sarney para a possibilidade de um futuro confronto, e também da manchete segundo a qual os comandantes militares pressionam o Congresso por mais verbas para o reaparelhamento das Forças Armadas, adverte Paxton: "Parece ser regra geral que a guerra seja indispensável à manutenção do tônus muscular do fascismo. Pois o ápice da experiência estética fascista seria a guerra."
A estética fascista
O rei Juan Carlos, da Espanha, mandou o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, calar a boca durante a Cúpula Ibero-Americana, em Santiago do Chile. Chávez acusara de fascista o ex-presidente do governo espanhol José María Aznar. Por mais simpatia que se tenha pelas intenções da "revolução bolivariana", os sintomas desta terrível doença política, o fascismo, estão mais próximos de Chávez do que ele pensa. Segundo Luis Dupeux, em "História cultural da Alemanha: 1919-1960" (1989), "a utilização de palavras de ordem e das manifestações de massa foram comuns aos nazistas e fascistas. Bem como a gradual interdição da imprensa por um conjunto de leis e decretos sempre assegurando a legalidade do sistema". Fechamento da RCTV?
"Na mais visual de todas as formas, o fascismo se apresenta por vívidas imagens: um demagogo discursando bombasticamente para uma multidão em êxtase; jovens desfilando em paradas; militantes espancando membros de alguma demonizada minoria. Nacionalismo, ataques a propriedades, recurso à violência, voluntarismo, antiintelectualismo, rejeição a soluções de compromisso, desprezo pela sociedade estabelecida foram características do fascismo", registra Robert Paxton, em "A anatomia do fascismo" (2005).
Prossegue o autor: "Os primeiros movimentos fascistas ostentavam também seu desprezo pelos valores burgueses, pelo "dinheiro, imundo dinheiro", atacando o capitalismo financeiro internacional com veemência. Prometeram expropriar os donos de loja em favor de artesãos, e os proprietários de terra em favor de camponeses. Exploraram as vítimas da industrialização rápida e da globalização, os perdedores da modernização, usando as técnicas de propaganda mais modernas. Política de massas, tentava apelar sobretudo às emoções, pelo uso de retórica intensamente carregada. O fascismo ajuda um povo a realizar seu destino. Repousa na união mística do líder com o destino histórico de seu povo, agora plenamente consciente de sua identidade e seu poder." Líder, povo, identidade e poder "bolivarianos"?
"Um artifício usado pelos fascistas eram as estruturas paralelas, tanto na ascensão quanto no exercício do poder. O Estado oficial e essas estruturas conferiam ao regime sua bizarra mistura de legalismo e de violência arbitrária." Chavistas atacando universitários?
"Tendo chegado ao poder na legalidade, líderes fascistas podiam exercê-lo apenas nos termos da Constituição. Seu poder era limitado. O golpe dos fascistas foi transformar um cargo constitucional em autoridade pessoal ilimitada, controlando por completo o Estado. Os Parlamentos perderam o poder, e as eleições foram substituídas por plebiscitos do tipo "sim ou não"."
E, a propósito do alerta do senador José Sarney para a possibilidade de um futuro confronto, e também da manchete segundo a qual os comandantes militares pressionam o Congresso por mais verbas para o reaparelhamento das Forças Armadas, adverte Paxton: "Parece ser regra geral que a guerra seja indispensável à manutenção do tônus muscular do fascismo. Pois o ápice da experiência estética fascista seria a guerra."
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10.3.07
Hudson Carvalho sobre Hugo Chávez
CHÁVEZ É UM RETRATO DAS DIFICULDADES DAS ESQUERDAS
* Hudson Carvalho
A queda do Muro de Berlim, em 1989, cristalizou-se como marco do ocaso do comunismo, embora algumas poucas experiências anacrônicas, como Cuba, ainda sobrevivam. Com o desmoronamento do comunismo, Francis Fukuyama decretou açodada e equivocadamente o fim da história, e, de lá para cá, ex-comunistas e esquerdistas tatuados de outras linhagens buscam reconstruir os seus espaços e as suas utopias.
Paralelamente, os postulados da economia de mercado instalaram-se avassaladoramente, alojando a primazia do capitalismo como verdade absoluta e quase universal. Com isso, esquerdistas de todo o mundo passaram a vagar catatônicos em um limbo existencial.
Os ensaios intermediários, moderados, gerenciados por esquerdistas envernizados na social-democracia, tiveram, parcial e temporariamente, algum êxito em países europeus de economia pujante. Depois, mesmo nesses ambientes, o tamanho do estado começou a transbordar e a fissurar mais ainda os experimentos esquerdistas, inclusive os reciclados e democráticos.
Ao mesmo tempo, com o término da polarização capitalismo versus comunismo, apresentaram-se os novos conflitos universais, que se acentuaram com a ascensão de George Bush nos Estados Unidos. No lugar do clássico confronto direita contra esquerda, estabeleceram-se outros tipos de colisões, alguns animados por estandartes religiosos.
Apesar de tudo isso, nada indica, porém, que se possa realmente abonar a morte das ideologias. Pelo contrário. O planeta continua a se mover sobre eixos ideológicos; agora, mais fracionados, sem a nitidez e a bipolaridade exclusiva das referências anteriores.
Na América Latina, por exemplo, é quase unânime o questionamento governamental ao liberalismo rubricado pelo Consenso de Washington. Tornamo-nos, com maior ou menor ênfase, dependendo do país, bastiões retóricos de resistência à lógica capitalista, a despeito de, na prática, continuarmos vivendo sob o seu predomínio. Pelo menos, rugimos e bravateamos. Nesse contexto, destaca-se o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, com suas gabolices.
Que Chávez encarne o que é melhor para a Venezuela no momento, diante de uma avara e corrupta oligarquia que mandou e desmandou inconseqüentemente naquele país por muitos anos, vá lá. Mas, entre isso e transformá-lo em líder regional e símbolo da regeneração esquerdista, cabe uma distância abissal. Caricato e antidemocrático, Chávez pode atender, no máximo, a aspirações emergentes na Venezuela e cercanias. Levá-lo, entretanto, a sério como guia deprecia a própria esquerda.
Idolatrá-lo pelo seu barroco antiamericanismo destaca ainda mais os descaminhos em que as esquerdas se encontram. Não é por considerarmos George Bush altamente pernicioso, que devemos, automaticamente, ter apreço pelo seu vaniloqüente crítico. Chávez não é alternativa a Bush. Guardando-se as proporções pela relevância suprema dos Estados Unidos, eles são da mesma cepa, sendo que o ruinoso governo Bush tem prazo de validade ajuizado pelo rito democrático americano.
Na verdade, sob o garrote do pensamento único que disciplinou as esquerdas durante quase todo o século passado, é difícil para essa gente raciocinar além de vertentes binárias e excludentes. Para as esquerdas, é tudo branco ou preto. Não há matizes nem relativismos; só o limitado império do absoluto.
Espelhar-se em uma figura como Chávez é sublinhar as deficiências e as estreitas divisas da própria esquerda. É verdade que, em um tempo de tantas inovações, por paradoxo, não está fácil, para as esquerdas, desbravarem veredas singulares. Elas, no entanto, é que devem ser buscadas, ambicionadas. Este é o desafio da esquerda: renovar-se na procura de rumos originais indubitavelmente democráticos, pois o socialismo do século XXI, apregoado por Hugo Chávez, não é historicamente futuro, é passado. E, como tal, repete-se como farsa, como, aliás, já alertara Marx.
* Jornalista.
* Hudson Carvalho
A queda do Muro de Berlim, em 1989, cristalizou-se como marco do ocaso do comunismo, embora algumas poucas experiências anacrônicas, como Cuba, ainda sobrevivam. Com o desmoronamento do comunismo, Francis Fukuyama decretou açodada e equivocadamente o fim da história, e, de lá para cá, ex-comunistas e esquerdistas tatuados de outras linhagens buscam reconstruir os seus espaços e as suas utopias.
Paralelamente, os postulados da economia de mercado instalaram-se avassaladoramente, alojando a primazia do capitalismo como verdade absoluta e quase universal. Com isso, esquerdistas de todo o mundo passaram a vagar catatônicos em um limbo existencial.
Os ensaios intermediários, moderados, gerenciados por esquerdistas envernizados na social-democracia, tiveram, parcial e temporariamente, algum êxito em países europeus de economia pujante. Depois, mesmo nesses ambientes, o tamanho do estado começou a transbordar e a fissurar mais ainda os experimentos esquerdistas, inclusive os reciclados e democráticos.
Ao mesmo tempo, com o término da polarização capitalismo versus comunismo, apresentaram-se os novos conflitos universais, que se acentuaram com a ascensão de George Bush nos Estados Unidos. No lugar do clássico confronto direita contra esquerda, estabeleceram-se outros tipos de colisões, alguns animados por estandartes religiosos.
Apesar de tudo isso, nada indica, porém, que se possa realmente abonar a morte das ideologias. Pelo contrário. O planeta continua a se mover sobre eixos ideológicos; agora, mais fracionados, sem a nitidez e a bipolaridade exclusiva das referências anteriores.
Na América Latina, por exemplo, é quase unânime o questionamento governamental ao liberalismo rubricado pelo Consenso de Washington. Tornamo-nos, com maior ou menor ênfase, dependendo do país, bastiões retóricos de resistência à lógica capitalista, a despeito de, na prática, continuarmos vivendo sob o seu predomínio. Pelo menos, rugimos e bravateamos. Nesse contexto, destaca-se o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, com suas gabolices.
Que Chávez encarne o que é melhor para a Venezuela no momento, diante de uma avara e corrupta oligarquia que mandou e desmandou inconseqüentemente naquele país por muitos anos, vá lá. Mas, entre isso e transformá-lo em líder regional e símbolo da regeneração esquerdista, cabe uma distância abissal. Caricato e antidemocrático, Chávez pode atender, no máximo, a aspirações emergentes na Venezuela e cercanias. Levá-lo, entretanto, a sério como guia deprecia a própria esquerda.
Idolatrá-lo pelo seu barroco antiamericanismo destaca ainda mais os descaminhos em que as esquerdas se encontram. Não é por considerarmos George Bush altamente pernicioso, que devemos, automaticamente, ter apreço pelo seu vaniloqüente crítico. Chávez não é alternativa a Bush. Guardando-se as proporções pela relevância suprema dos Estados Unidos, eles são da mesma cepa, sendo que o ruinoso governo Bush tem prazo de validade ajuizado pelo rito democrático americano.
Na verdade, sob o garrote do pensamento único que disciplinou as esquerdas durante quase todo o século passado, é difícil para essa gente raciocinar além de vertentes binárias e excludentes. Para as esquerdas, é tudo branco ou preto. Não há matizes nem relativismos; só o limitado império do absoluto.
Espelhar-se em uma figura como Chávez é sublinhar as deficiências e as estreitas divisas da própria esquerda. É verdade que, em um tempo de tantas inovações, por paradoxo, não está fácil, para as esquerdas, desbravarem veredas singulares. Elas, no entanto, é que devem ser buscadas, ambicionadas. Este é o desafio da esquerda: renovar-se na procura de rumos originais indubitavelmente democráticos, pois o socialismo do século XXI, apregoado por Hugo Chávez, não é historicamente futuro, é passado. E, como tal, repete-se como farsa, como, aliás, já alertara Marx.
* Jornalista.
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4.3.07
Entrevista a Rafael Cariello
A seguir, publico a entrevista que dei a Rafael Cariello, da Folha de São Paulo, e que foi publicada ontem (03/03/2007) na Ilustrada. Devido a questões de espaço, o jornal editou ligeiramente a entrevista. Publico-a aqui na versão integral.
"HÁ UMA OFENSIVA REACIONÁRIA NO PAÍS"
O filósofo e poeta Antonio Cicero diz que é preciso deender a modernidade e a razão contra ataques da esquerda e da direita
RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL
O filósofo e poeta Antonio Cicero diz que há uma ofensiva reacionária no Brasil, que se expressa numa crítica à razão e às conquistas da modernidade. Para o autor de livros de ensaios como "Finalidades Sem Fim" (Companhia das Letras) e de letras de canções como "O Último Romântico", não se trata de tomar o partido da esquerda contra a direita nessa batalha -pois, ele diz, ambas podem andar de mãos dadas no desprezo à democracia, tratada pela esquerda como um sistema "formal", expressão cujo significado facilmente se converte em "ilusório" ou "falso". "A esquerda, de maneira geral, está longe de defender as conquistas da modernidade: ao contrário, ela é a primeira a tentar desmoralizá-las. Ora, quem se beneficia com isso, senão exatamente os reacionários antimodernos?", diz. Cícero comenta a entrevista do professor da PUC-SP Luiz Felipe Pondé, publicada em 7 de janeiro, na qual comentava o fracasso da promessa de felicidade e progresso advinda com a modernidade e propunha uma atitude de "dúvida conservadora". Discute também o artigo do filósofo Renato Janine Ribeiro, publicado no Mais! em 18 de fevereiro, no qual o professor defendia a idéia de que os sentimentos também deveriam exercer um papel crítico sobre a razão.
- Você acredita que está em cena hoje uma "ofensiva da direita", do conservadorismo. Onde e como ela se dá?
Creio que estamos testemunhando, de fato, uma grande ofensiva ideológica por parte dos conservadores ou, melhor dizendo, dos reacionários, uma vez que se trata de pessoas menos interessadas em conservar coisa alguma do que em retornar a um passado idealizado. Penso que deve ser reconhecido ao professor Luiz Felipe Pondé o mérito de ter, na sua entrevista à Folha, corretamente definido os campos em luta. Tendo em mente que, onde se lê "conservador", deve-se ler "reacionário", trata-se, de fato, de uma "peleja entre o pensamento conservador e a modernidade". Curiosamente, Pondé inverte o sentido dessa peleja, ao contrastar a "dúvida conservadora" à "certeza moderna". Ora, a primeira característica do pensamento moderno é o contrário da certeza, isto é, a dúvida e a crítica universais, sem fronteiras, e a característica dominante do pensamento pré-moderno – por exemplo, do pensamento da Idade Média, que, segundo o próprio Pondé, era "tão boa" – é a vigência da fé, que não passa de uma certeza inteiramente destituída de fundamento: pois uma certeza fundamentada não se chama "fé", mas conhecimento. Pois bem, o pensamento reacionário é pré-modernista. A luta, portanto, é entre, por um lado, a modernidade, que garante, através da institucionalização de sociedades laicas e abertas, a dúvida e a crítica, que constituem a racionalidade, e, por outro lado, o pré-modernismo, que, nostálgico da comunidade religiosa fechada, sonha com regimes teocráticos, em que a dúvida e a crítica são reprimidas pelo terror.
- Por que essa ofensiva o incomoda?
Porque é concebível que a demagogia reacionária e religiosa, aliada ao terrorismo, também reacionário e religioso, consiga piorar muito o mundo. Quem poderia imaginar que, logo nos Estados Unidos, o congresso tenha aprovado no ano passado uma lei proposta por Bush que, em determinados casos, põe fora de ação um dos fundamentos do Estado de direito, que é o habeas corpus, e que admite a tortura? Fico mais do que incomodado, fico indignado com semelhantes tentativas de destruir aquilo que foi conquistado a duras penas pela racionalidade moderna: o Estado de direito, a livre expressão do pensamento, a maximização da liberdade individual, a abertura do mundo a novas possibilidades, a diversidade de culturas e formas de vida, a pluralidade de expressões eróticas, a autonomia da ciência, a autonomia da arte etc.
- A esquerda dá a impressão (e é retratada assim) de ser a portadora de idéias que envelheceram e, dona de grandes esquemas, parece não ser capaz de apresentar respostas aos problemas imediatos da sociedade e das pessoas. Ela tem sua parcela de responsabilidade nessa "virada" ideológica recente?
Sem dúvida: tanto as esquerdas marxistas quanto as "novas" esquerdas. Desde pelo menos Marx, a contradição que aponto, entre o pensamento conservador ou reacionário e o pensamento moderno, é erroneamente relegada a segundo plano, quando não a uma "superestrutura" epifenomênica. A partir de dogmas materialistas e economicistas, o que conta, para os marxistas, são as contradições nas relações de produção. Resultado: todas as conquistas da racionalidade moderna que acabo de mencionar são tidas como relativamente espúrias, pertencentes, não à democracia simplesmente, mas à "democracia burguesa", que, por sua vez, é tida como meramente formal: e, num piscar d'olhos, "formal" passa a significar "ilusório", "falso" ou "mentiroso". A idéia geral é que somente quanto o proletariado ou o "povo" estiver no poder haverá democracia real. Mas, na prática, que significa para os marxistas o "povo" no poder? Se tomarmos por base as experiências socialistas – por exemplo, a de Cuba –, então o "povo" está no poder através do Partido, que está no poder através do Comitê Central, que está no poder através do Grande Líder... Em suma, a "democracia real" é idêntica à ditadura. Compreende-se por que quem pensa assim possa até usar, para chegar ao poder, a democracia formal, mas não a respeite, como não respeita as conquistas da racionalidade moderna. É o que explica o terror (no fundo, pré-modernista) das ditaduras soviética, chinesa, cambodgiana, cubana etc.; como também explica o "mensalão" e o entusiasmo de tantos marxistas pelo populismo chavista.
Quanto às "novas" esquerdas – os "soixante-huitards" ou "pós-modernos" ou "pós-estruturalistas" –, creio que ocorreu o seguinte. Apesar de se terem decepcionado com a esquerda marxista, preferiram abandoná-la de cabeça erguida, trocando o marxismo por uma filosofia pretensamente mais radical do que ele, pretensamente ainda mais capaz de diagnosticar em profundidade e fundamentar o desprezo que sentiam pelo mundo moderno. Buscaram-na sobretudo em Heidegger. Nele, não só encontraram outra racionalização intelectual para o desdém por aquilo que, desde o marxismo, já haviam tido como o embuste do Estado de direito, da democracia formal etc., mas mais ainda: encontraram argumentos para neutralizar os conceitos de humanidade, de subjetividade, de razão.
Ou seja, a esquerda, de maneira geral, está longe de defender as conquistas da modernidade: ao contrário, ela é a primeira a tentar desmoralizá-las. Ora, quem se beneficia com isso, senão exatamente os reacionários anti-modernos? Objetivamente, o marxismo e o pós-modernismo dão as mãos ao pré-modernismo – cristão e islâmico – contra a racionalidade moderna.
- No caso específico do Brasil, essa investida conservadora (no que ela tem de retórica e midiática) pode ser relacionada de alguma maneira com o governo Lula? O quanto ele tem de conservador e o quanto ele incomoda o conservadorismo?
Não considero Lula conservador e aplaudo o fato de que, ao contrário de Chávez, ele respeite a democracia formal. A "democracia direta" defendida por certos setores da esquerda seria, na verdade, uma ditadura plebiscitária, uma ditadura da maioria: e a tirania da maioria pode ser tão ruim quanto a tirania da minoria. Não devemos nos esquecer de que as ditaduras de Mussolini, de Hitler, de Stalin e de Pol Pot eram apoiadas pela maioria, logo, nesse sentido, "democráticas". A razão nem sempre está com a maioria: pode estar até com um homem só. Por isso, o que é realmente imprescindível numa democracia não são as eleições nem o governo da maioria, mas o Estado de direito, o império da lei, a abertura da sociedade, os direitos civis, a liberdade e a pluralidade da imprensa: e tudo isso faz parte da democracia formal.
- Quais são as perspectivas? O que vc espera (e deseja) do futuro do debate público e das relações interpessoais no país?
Espero a consolidação, o aprofundamento e a extensão a todos da racionalidade moderna, que se manifesta nas características que acabo de citar. É hora de rejeitar tanto a demagogia e o romantismo revolucionários quanto a demagogia e o romantismo reacionários, e de defender, em escala mundial, um reformismo profundo e conseqüente. É preciso lutar pela consolidação e o aperfeiçoamento de instituições internacionais que assegurem o respeito universal aos direitos humanos, que devem incluir a garantia de um mínimo de condições dignas de vida a todos.
No que diz respeito ao Brasil, penso, como muitos, que o objeto mais importante das políticas públicas deveria ser a oferta de educação laica e universal de qualidade. Há, entretanto, uma situação emergencial, que é a crise nacional da segurança pública. Cabe ao governo federal, reconhecendo-a explicitamente, traçar e implementar um plano nacionalmente coordenado para enfrentá-la: e tal plano não pode deixar de ter, como uma das suas prioridades, o combate à corrupção policial. O fato é que é inteiramente inaceitável que haja no país áreas urbanas ou rurais que não se submetam ao império da lei.
- O artigo do filósofo Renato Janine Ribeiro parece conceber suspender por um momento a defesa desse "respeito universal aos direitos humanos", ainda que apenas na expressão de um sentimento e de uma dúvida. Como vc viu seu argumento? Ele se relaciona de alguma maneira a esse discurso reacionário que vc diagnostica?
O artigo do Janine me deixou perplexo. Em comum com Pondé, ele manifesta certa nostalgia da Idade Média, ao desejar "suplícios medievais" para os assassinos do menino João Hélio. Quero crer que ele não pense realmente assim, e que se tenha deixado levar pelo calor da emoção momentânea da revolta. No ano passado, participei, com ele, do ciclo de conferências "O silêncio dos intelectuais", organizado por Adauto Novaes. Havia praticamente um consenso entre os conferencistas de que o tempo da reflexão do intelectual não deve ser moldado de modo a atender às exigências imediatistas da mídia. Janine, na sua palestra, intitulada "O cientista e o intelectual", afirmava que o verdadeiro intelectual, ao contrário do intelectual midiático – que, segundo ele, seria mais propriamente chamado de "imidiático" -- não deve agir ou reagir no imediato. Curiosamente, ao escrever o artigo em questão, ele fez exatamente o oposto do que recomendava. De todo modo, considero intolerável, por exemplo, a afirmação de que é preciso criticar os sentimentos pela razão e a razão pelos sentimentos. Só a razão pode criticar a si própria, pois ela é a própria crítica e jamais poderia ser criticada pelos sentimentos, que são pura positividade e que diferem de uma pessoa para outra, quando não, na mesma pessoa, de um momento para o outro. A pretensão a relativizar a razão pelo sentimento, se levada a sério, poria Janine, de fato, no mesmo nível de irracionalismo que Pondé.
- Não seria necessário, para seguir o respeito que a modernidade exige à expressão da dúvida, aceitar a expressão de dúvida de Janine Ribeiro em seu artigo?
De maneira nenhuma. Não pode haver dúvida em relação aos direitos humanos porque exatamente eles constituem, no direito, a expressão mais radical que se pode conceber da dúvida e da crítica, isto é, da razão. Eles se baseiam, por um lado, no reconhecimento do caráter relativo e contingente de todas as leis positivas e particulares. Isso quer dizer que eles se baseiam na desconfiança, na dúvida, em relação a todas essas leis. Por outro lado, eles se baseiam no reconhecimento da falibilidade de todo conhecimento positivo, de todas as intenções e de todas as instituições humanas. Isso também quer dizer que eles se baseiam na desconfiança, na dúvida, em relação ao conhecimento positivo, às intenções e às instituições humanas. Pois bem, são essas desconfianças e dúvidas que me obrigam a reconhecer que não tenho, seja quem eu for, o direito de limitar a liberdade – inclusive, evidentemente, a liberdade da preservação da integridade física – de nenhum outro, senão precisamente na medida em que ele atente contra idêntica liberdade alheia: e somente na medida estritamente necessária para garantir a liberdade ameaçada. Esse é o verdadeiro fundamento dos direitos humanos. Em suma, os direitos humanos não são, como as religiões ou as ideologias, uma construção que possa, como um castelo de cartas, desabar: eles representam antes a consequência do reconhecimento de que todos os castelos de cartas já desabaram.
"HÁ UMA OFENSIVA REACIONÁRIA NO PAÍS"
O filósofo e poeta Antonio Cicero diz que é preciso deender a modernidade e a razão contra ataques da esquerda e da direita
RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL
O filósofo e poeta Antonio Cicero diz que há uma ofensiva reacionária no Brasil, que se expressa numa crítica à razão e às conquistas da modernidade. Para o autor de livros de ensaios como "Finalidades Sem Fim" (Companhia das Letras) e de letras de canções como "O Último Romântico", não se trata de tomar o partido da esquerda contra a direita nessa batalha -pois, ele diz, ambas podem andar de mãos dadas no desprezo à democracia, tratada pela esquerda como um sistema "formal", expressão cujo significado facilmente se converte em "ilusório" ou "falso". "A esquerda, de maneira geral, está longe de defender as conquistas da modernidade: ao contrário, ela é a primeira a tentar desmoralizá-las. Ora, quem se beneficia com isso, senão exatamente os reacionários antimodernos?", diz. Cícero comenta a entrevista do professor da PUC-SP Luiz Felipe Pondé, publicada em 7 de janeiro, na qual comentava o fracasso da promessa de felicidade e progresso advinda com a modernidade e propunha uma atitude de "dúvida conservadora". Discute também o artigo do filósofo Renato Janine Ribeiro, publicado no Mais! em 18 de fevereiro, no qual o professor defendia a idéia de que os sentimentos também deveriam exercer um papel crítico sobre a razão.
- Você acredita que está em cena hoje uma "ofensiva da direita", do conservadorismo. Onde e como ela se dá?
Creio que estamos testemunhando, de fato, uma grande ofensiva ideológica por parte dos conservadores ou, melhor dizendo, dos reacionários, uma vez que se trata de pessoas menos interessadas em conservar coisa alguma do que em retornar a um passado idealizado. Penso que deve ser reconhecido ao professor Luiz Felipe Pondé o mérito de ter, na sua entrevista à Folha, corretamente definido os campos em luta. Tendo em mente que, onde se lê "conservador", deve-se ler "reacionário", trata-se, de fato, de uma "peleja entre o pensamento conservador e a modernidade". Curiosamente, Pondé inverte o sentido dessa peleja, ao contrastar a "dúvida conservadora" à "certeza moderna". Ora, a primeira característica do pensamento moderno é o contrário da certeza, isto é, a dúvida e a crítica universais, sem fronteiras, e a característica dominante do pensamento pré-moderno – por exemplo, do pensamento da Idade Média, que, segundo o próprio Pondé, era "tão boa" – é a vigência da fé, que não passa de uma certeza inteiramente destituída de fundamento: pois uma certeza fundamentada não se chama "fé", mas conhecimento. Pois bem, o pensamento reacionário é pré-modernista. A luta, portanto, é entre, por um lado, a modernidade, que garante, através da institucionalização de sociedades laicas e abertas, a dúvida e a crítica, que constituem a racionalidade, e, por outro lado, o pré-modernismo, que, nostálgico da comunidade religiosa fechada, sonha com regimes teocráticos, em que a dúvida e a crítica são reprimidas pelo terror.
- Por que essa ofensiva o incomoda?
Porque é concebível que a demagogia reacionária e religiosa, aliada ao terrorismo, também reacionário e religioso, consiga piorar muito o mundo. Quem poderia imaginar que, logo nos Estados Unidos, o congresso tenha aprovado no ano passado uma lei proposta por Bush que, em determinados casos, põe fora de ação um dos fundamentos do Estado de direito, que é o habeas corpus, e que admite a tortura? Fico mais do que incomodado, fico indignado com semelhantes tentativas de destruir aquilo que foi conquistado a duras penas pela racionalidade moderna: o Estado de direito, a livre expressão do pensamento, a maximização da liberdade individual, a abertura do mundo a novas possibilidades, a diversidade de culturas e formas de vida, a pluralidade de expressões eróticas, a autonomia da ciência, a autonomia da arte etc.
- A esquerda dá a impressão (e é retratada assim) de ser a portadora de idéias que envelheceram e, dona de grandes esquemas, parece não ser capaz de apresentar respostas aos problemas imediatos da sociedade e das pessoas. Ela tem sua parcela de responsabilidade nessa "virada" ideológica recente?
Sem dúvida: tanto as esquerdas marxistas quanto as "novas" esquerdas. Desde pelo menos Marx, a contradição que aponto, entre o pensamento conservador ou reacionário e o pensamento moderno, é erroneamente relegada a segundo plano, quando não a uma "superestrutura" epifenomênica. A partir de dogmas materialistas e economicistas, o que conta, para os marxistas, são as contradições nas relações de produção. Resultado: todas as conquistas da racionalidade moderna que acabo de mencionar são tidas como relativamente espúrias, pertencentes, não à democracia simplesmente, mas à "democracia burguesa", que, por sua vez, é tida como meramente formal: e, num piscar d'olhos, "formal" passa a significar "ilusório", "falso" ou "mentiroso". A idéia geral é que somente quanto o proletariado ou o "povo" estiver no poder haverá democracia real. Mas, na prática, que significa para os marxistas o "povo" no poder? Se tomarmos por base as experiências socialistas – por exemplo, a de Cuba –, então o "povo" está no poder através do Partido, que está no poder através do Comitê Central, que está no poder através do Grande Líder... Em suma, a "democracia real" é idêntica à ditadura. Compreende-se por que quem pensa assim possa até usar, para chegar ao poder, a democracia formal, mas não a respeite, como não respeita as conquistas da racionalidade moderna. É o que explica o terror (no fundo, pré-modernista) das ditaduras soviética, chinesa, cambodgiana, cubana etc.; como também explica o "mensalão" e o entusiasmo de tantos marxistas pelo populismo chavista.
Quanto às "novas" esquerdas – os "soixante-huitards" ou "pós-modernos" ou "pós-estruturalistas" –, creio que ocorreu o seguinte. Apesar de se terem decepcionado com a esquerda marxista, preferiram abandoná-la de cabeça erguida, trocando o marxismo por uma filosofia pretensamente mais radical do que ele, pretensamente ainda mais capaz de diagnosticar em profundidade e fundamentar o desprezo que sentiam pelo mundo moderno. Buscaram-na sobretudo em Heidegger. Nele, não só encontraram outra racionalização intelectual para o desdém por aquilo que, desde o marxismo, já haviam tido como o embuste do Estado de direito, da democracia formal etc., mas mais ainda: encontraram argumentos para neutralizar os conceitos de humanidade, de subjetividade, de razão.
Ou seja, a esquerda, de maneira geral, está longe de defender as conquistas da modernidade: ao contrário, ela é a primeira a tentar desmoralizá-las. Ora, quem se beneficia com isso, senão exatamente os reacionários anti-modernos? Objetivamente, o marxismo e o pós-modernismo dão as mãos ao pré-modernismo – cristão e islâmico – contra a racionalidade moderna.
- No caso específico do Brasil, essa investida conservadora (no que ela tem de retórica e midiática) pode ser relacionada de alguma maneira com o governo Lula? O quanto ele tem de conservador e o quanto ele incomoda o conservadorismo?
Não considero Lula conservador e aplaudo o fato de que, ao contrário de Chávez, ele respeite a democracia formal. A "democracia direta" defendida por certos setores da esquerda seria, na verdade, uma ditadura plebiscitária, uma ditadura da maioria: e a tirania da maioria pode ser tão ruim quanto a tirania da minoria. Não devemos nos esquecer de que as ditaduras de Mussolini, de Hitler, de Stalin e de Pol Pot eram apoiadas pela maioria, logo, nesse sentido, "democráticas". A razão nem sempre está com a maioria: pode estar até com um homem só. Por isso, o que é realmente imprescindível numa democracia não são as eleições nem o governo da maioria, mas o Estado de direito, o império da lei, a abertura da sociedade, os direitos civis, a liberdade e a pluralidade da imprensa: e tudo isso faz parte da democracia formal.
- Quais são as perspectivas? O que vc espera (e deseja) do futuro do debate público e das relações interpessoais no país?
Espero a consolidação, o aprofundamento e a extensão a todos da racionalidade moderna, que se manifesta nas características que acabo de citar. É hora de rejeitar tanto a demagogia e o romantismo revolucionários quanto a demagogia e o romantismo reacionários, e de defender, em escala mundial, um reformismo profundo e conseqüente. É preciso lutar pela consolidação e o aperfeiçoamento de instituições internacionais que assegurem o respeito universal aos direitos humanos, que devem incluir a garantia de um mínimo de condições dignas de vida a todos.
No que diz respeito ao Brasil, penso, como muitos, que o objeto mais importante das políticas públicas deveria ser a oferta de educação laica e universal de qualidade. Há, entretanto, uma situação emergencial, que é a crise nacional da segurança pública. Cabe ao governo federal, reconhecendo-a explicitamente, traçar e implementar um plano nacionalmente coordenado para enfrentá-la: e tal plano não pode deixar de ter, como uma das suas prioridades, o combate à corrupção policial. O fato é que é inteiramente inaceitável que haja no país áreas urbanas ou rurais que não se submetam ao império da lei.
- O artigo do filósofo Renato Janine Ribeiro parece conceber suspender por um momento a defesa desse "respeito universal aos direitos humanos", ainda que apenas na expressão de um sentimento e de uma dúvida. Como vc viu seu argumento? Ele se relaciona de alguma maneira a esse discurso reacionário que vc diagnostica?
O artigo do Janine me deixou perplexo. Em comum com Pondé, ele manifesta certa nostalgia da Idade Média, ao desejar "suplícios medievais" para os assassinos do menino João Hélio. Quero crer que ele não pense realmente assim, e que se tenha deixado levar pelo calor da emoção momentânea da revolta. No ano passado, participei, com ele, do ciclo de conferências "O silêncio dos intelectuais", organizado por Adauto Novaes. Havia praticamente um consenso entre os conferencistas de que o tempo da reflexão do intelectual não deve ser moldado de modo a atender às exigências imediatistas da mídia. Janine, na sua palestra, intitulada "O cientista e o intelectual", afirmava que o verdadeiro intelectual, ao contrário do intelectual midiático – que, segundo ele, seria mais propriamente chamado de "imidiático" -- não deve agir ou reagir no imediato. Curiosamente, ao escrever o artigo em questão, ele fez exatamente o oposto do que recomendava. De todo modo, considero intolerável, por exemplo, a afirmação de que é preciso criticar os sentimentos pela razão e a razão pelos sentimentos. Só a razão pode criticar a si própria, pois ela é a própria crítica e jamais poderia ser criticada pelos sentimentos, que são pura positividade e que diferem de uma pessoa para outra, quando não, na mesma pessoa, de um momento para o outro. A pretensão a relativizar a razão pelo sentimento, se levada a sério, poria Janine, de fato, no mesmo nível de irracionalismo que Pondé.
- Não seria necessário, para seguir o respeito que a modernidade exige à expressão da dúvida, aceitar a expressão de dúvida de Janine Ribeiro em seu artigo?
De maneira nenhuma. Não pode haver dúvida em relação aos direitos humanos porque exatamente eles constituem, no direito, a expressão mais radical que se pode conceber da dúvida e da crítica, isto é, da razão. Eles se baseiam, por um lado, no reconhecimento do caráter relativo e contingente de todas as leis positivas e particulares. Isso quer dizer que eles se baseiam na desconfiança, na dúvida, em relação a todas essas leis. Por outro lado, eles se baseiam no reconhecimento da falibilidade de todo conhecimento positivo, de todas as intenções e de todas as instituições humanas. Isso também quer dizer que eles se baseiam na desconfiança, na dúvida, em relação ao conhecimento positivo, às intenções e às instituições humanas. Pois bem, são essas desconfianças e dúvidas que me obrigam a reconhecer que não tenho, seja quem eu for, o direito de limitar a liberdade – inclusive, evidentemente, a liberdade da preservação da integridade física – de nenhum outro, senão precisamente na medida em que ele atente contra idêntica liberdade alheia: e somente na medida estritamente necessária para garantir a liberdade ameaçada. Esse é o verdadeiro fundamento dos direitos humanos. Em suma, os direitos humanos não são, como as religiões ou as ideologias, uma construção que possa, como um castelo de cartas, desabar: eles representam antes a consequência do reconhecimento de que todos os castelos de cartas já desabaram.
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