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19.9.10
A figura do autor
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, no sábado, 18 de setembro.
A figura do autor
EMBORA ROLAND Barthes (1915-1980) seja um autor que tanto leio quanto admiro, manifestei, em artigo aqui publicado no mês passado, discordar da sua tese de que as figuras do autor e da originalidade fossem produtos da época moderna. Observei que elas existem desde a Antiguidade, tendo surgido com a generalização do emprego da escritura.
Vários leitores me enviaram e-mails, defendendo as proposições que eu combatera. Um comentarista anônimo formulou bem uma ideia que resolvi comentar, pois parece ser hoje compartilhada por muita gente. Segundo ele, "originalidade no sentido forte surgiu no século 18, quando os escritores começaram a ganhar dinheiro com a venda de livros. Antes o que existia era o patronato e se vivia desse dinheiro. Fora o prestígio, pouco valia insistir na autoria". Entre os exemplos de autores que pouco se importavam com a originalidade, ele citava Dante e Shakespeare.
Embora a originalidade seja sempre relativa, isso não significa que não seja importante. Se encontrarmos duas obras literárias (ou duas peças musicais) idênticas, diremos não estar diante de duas obras, mas da mesma. Etimologicamente, aliás, a palavra latina "auctor", de "augere", isto é, "aumentar", significa aquele que aumenta ou incrementa. Não é autor quem simplesmente reproduz o que já há.
Quanto à valorização da originalidade entre os antigos, basta lembrar que o filósofo Lucrécio (séc. 1 a.C.), afirmava pretender percorrer, na poesia, caminhos que ninguém trilhara antes, e concluía: "É bom ir às fontes virgens e beber, é bom colher flores desconhecidas e com elas trançar para minha fronte coroa insigne, qual nunca a ninguém puseram as Musas".
E nada é mais questionável do que a menção de Dante e Shakespeare como autores para os quais era indiferente a originalidade, uma vez que precisamente Dante foi tido como o protótipo do indivíduo criativo pelo filósofo Schelling, e precisamente Shakespeare foi considerado o gênio original por excelência por, entre outros, Diderot e Goethe.
De fato, o direito autoral surgiu com o iluminismo. É racional que, uma vez que alguém ganhe reconhecimento e/ou dinheiro com a exploração de uma obra, deva algo ao autor. Mas quem disse que o valor da autoria se reduz ao dinheiro que ela possa proporcionar? Isso é evidentemente falso. Pense-se, por exemplo, na situação dos poetas.
Todos sabem que livro de poesia não dá dinheiro. No entanto, nada seria mais absurdo do que supor que os poetas fazem menos questão de ter reconhecida a autoria das obras que escreveram do que os escritores cujas obras são capazes de render direitos autorais. Na verdade, talvez seja exatamente o contrário. "Nos domínios da criação, que são também os domínios do orgulho", como diz, com razão, Paul Valéry, "a necessidade de se distinguir é indivisível da existência mesma".
Contudo, no caso da poesia, essa distinção mesma tem um caráter distinto. Ela não se reduz à mera fama mundana. Em texto que escreveu para a reabertura do teatro de Weimar, em outubro de 1798, Schiller explica que os artistas do palco precisavam do aplauso do público porque a arte deles (ao contrário da dos poetas, que é capaz de perdurar por séculos) se extinguia junto com suas vozes e gestos. Como a posteridade não lhes teceria grinaldas (como as que costumava tecer aos poetas), eles não podiam deixar de ser ávidos do reconhecimento contemporâneo. Assim, por compaixão, o poeta Schiller pedia ao público que aplaudisse os atores.
Ao falar da perenidade da arte do poeta, Schiller podia estar pensando na obra do poeta romano Ovídio (sec. 1 d.C.), por exemplo. Este, concluindo seu grande poema “Metamorfoses”, afirmou que terminara obra “que nem a ira de Júpiter / nem o fogo ou o ferro ou a voraz velhice / abolirão. Quando chegar a minha hora / será para meu corpo apenas, encerrando / os meus dias; mas a melhor parte de mim / alçarei muito acima dos mais altos astros, / perene, e nosso nome será indelével. / Que onde quer que se abra a potência de Roma / sobre as terras dominadas eu seja lido / pelo povo, e de fama, por todos os séculos / (se os presságios dos vates valerem), eu viva”. Os presságios valeram.
A distinção que os poetas enquanto poetas almejam não se reduz, portanto, nem a ganhos materiais nem à fama mundana. O que pretendem – desde a Antiguidade – é a glória de terem sido os autores de poemas que, valendo por si por serem, como as demais obras clássicas, dotados do "eterno e irreprimível frescor" de que falava o poeta Ezra Pound, sejam indiferentes às contingências do tempo.
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