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29.10.10

Entrevista à Sibila

Está no ar a entrevista "A poesia não nasce das regras", que dei aos poetas Luis Dolhnikoff e Régis Bonvicino, da revista Sibila. O endereço é: http://www.sibila.com.br/index.php/critica/1338-a-poesia-nao-nasce-das-regras.

8.2.09

Os estudos literários e o cânone

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 7 de fevereiro.


Os estudos literários e o cânone

COMO MUITOS outros críticos literários contemporâneos, Terry Eagleton pensa que "o chamado 'cânone literário', a 'grande tradição' inquestionada da 'literatura canônica', precisa ser reconhecido como um constructo, modelado por pessoas particulares, por razões particulares, em determinado momento".

Apesar de presunçosa, é na verdade ingênua a afirmação de Eagleton. A ironia da referência entre aspas à "grande tradição" é impotente: queira-se ou não, o cânone literário é uma grande tradição. Deve-se dizer, porém, que ela está longe de ser inquestionada ou inquestionável. Ao contrário, essa tradição se construiu e se mantém hoje, entre outras coisas, através do questionamento e por causa dele.

Trata-se de um constructo, sem dúvida, desde que se retire dessa palavra qualquer conotação de arbitrariedade, uma vez que não pode ser considerado arbitrário aquilo que, tendo se submetido à crítica incessante e implacável, sobrevive. O cânone nada tem a ver com as coisas que são "modeladas por pessoas particulares, por razões particulares, em determinado momento". Essas, produzidas por sociedades fechadas, são impostas à força. Só por cegueira ideológica pode alguém pretender que seja assim a sociedade moderna.

Eagleton se considera marxista. A certa altura, ele comenta que "Karl Marx se preocupara com a questão de saber por que a arte grega conservava um "encanto eterno", embora as condições sociais que a haviam produzido já tivessem passado há muito tempo".

Normalmente, o texto em que Marx assim fala é tomado como uma prova da grandeza do autor de "O Capital", que teria preferido reconhecer uma dificuldade da sua teoria a tentar encaixar toda a arte do mundo no leito de Procusto da ideologia ou da "superestrutura". Desse modo, Marx teria preservado o seu -o nosso- direito de amar a beleza da arte do passado.

Não é o que pensa Eagleton. Mais marxista que Marx, ele vê nisso uma fraqueza, e pergunta: "Como podemos saber que [a arte grega] permanecerá "eternamente" encantadora, se a história ainda não terminou?" Segundo ele, se, por exemplo, uma descoberta arqueológica nos obrigasse a reconhecer que as preocupações das audiências originais da tragédia grega eram inteiramente alheias às nossas, poderíamos deixar de apreciá-las.

Ora, quem verdadeiramente ama um poema – como Marx, por exemplo, ama os poemas de Homero – ama-o porque considera que ele lhe pertence e lhe diz respeito de um modo extremamente íntimo: porque intimamente conhece e, em reciprocidade, sabe ser conhecido pelo poema que ama. Conhecer desse modo um poema e amá-lo é tê-lo pela expressão acabada de alguma dimensão fundamental do próprio ser.

Pergunto-me: como é possível que Eagleton suponha que, seja qual for a novidade de uma revelação arqueológica, ela possa ser maior e mais importante que a revelação oferecida pelos próprios textos das tragédias? Pensemos em "Édipo Rei", por exemplo. Como ele é capaz de imaginar que "Édipo Rei", ou "Prometeu Acorrentado", ou "As Bacantes", ou qualquer uma das grandes tragédias possa ser ofuscada ou anulada por uma descoberta arqueológica?

A resposta é clara: ele pensa assim porque não tem uma relação vital com a poesia; porque, para ele, a poesia não vale por si. É evidente que tal modo de se relacionar com a poesia não pode resultar de uma decisão intelectual. Ao contrário: a decisão intelectual sobre o valor (ou a ausência de valor) da poesia é que é resultado da relação real que o leitor estabelece com ela. Não é porque decide que a poesia não tem valor que ele deixa de ter uma relação vital com ela: é antes porque não tem uma relação vital com a poesia que ela não tem valor para ele.

Na verdade, estou sem dúvida exagerando no que diz respeito a Eagleton. Com certeza a poesia tem algum valor para ele. Está longe, evidentemente, de ser um valor imanente e vital, como para Marx. Creio que para Eagleton, como para muitos, um poema ou uma tragédia têm o valor de um documento histórico como qualquer outro. Ora, basicamente o que interessa saber sobre um documento histórico são duas coisas: se ele é autêntico e o que representou para as pessoas que o produziram ou dele se serviram. Ele se reduz a um índice ou sintoma de uma relação social. Daí a importância atribuída à arqueologia.

Infelizmente, é essa a relação com a literatura que parece determinar a atitude ante o cânone que hoje predomina no campo dos estudos literários acadêmicos "posmodernos" e/ou marxistas.

20.4.08

As vanguardas e a tradição

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Folha de São Paulo, sábado, 20 de abril de 2008:


As vanguardas e a tradição


EM ENSAIO chamado "Escrever como Reescrever: a Poesia Concreta como Retaguarda", a crítica literária americana Marjorie Perloff defende a tese de que seria mais adequado considerar a poesia concreta brasileira como "retaguarda" do que como "vanguarda".

Evitemos mal-entendidos: para ela, "retaguarda" não significa o oposto de "vanguarda". Não se trata, por exemplo, de um movimento de conservação ou de restauração do passado. Tendo em vista a origem militar tanto de um termo quanto do outro, ela lembra que "a retaguarda do exército é a parte que protege e consolida o movimento das tropas em questão". Assim, "quando um movimento de vanguarda não é mais novidade, o papel da retaguarda é completar a sua missão, assegurar o seu êxito".

As vanguardas do início do século 20 -em particular o futurismo italiano e o russo, além de dadá- não reconhecem precursores nem aceitam tradição. Para elas, de maneira geral, o passado não só estava morto mas seu cadáver era letal. É nesse espírito que, por exemplo, Marinetti, em manifesto de 1909, declara que um automóvel rugidor é mais belo que a Vitória de Samotrácia, e, entre outros, Maiakovski, em manifesto de 1912, exorta os poetas a jogarem fora do navio da modernidade Pushkin, Dostoiévski, Tolstói, etc.

"Em compensação, a retaguarda", observa, com razão, Perloff, tendo em mente o concretismo, "trata as proposições da primeira vanguarda com um respeito vizinho da veneração". Perloff cita entrevista de 1993 em que Augusto de Campos explica que, na década de 50, "toda poesia experimental, toda arte experimental havia sido em certo sentido marginalizada. Só na década de 50 começou a redescoberta de Mallarmé, a redescoberta de Pound. [...] Acho que era necessário recuperar os grandes movimentos de vanguarda".

O que Perloff chama de "retaguarda" consiste, portanto, numa vanguarda que reconhece precursores. O fato de destacar essa peculiaridade do concretismo é evidentemente mais importante do que o rótulo que usa para fazê-lo. E quais são os precursores que Augusto reconhece na entrevista citada? Mallarmé e Pound, os dois primeiros poetas que haviam sido citados como precursores no "Plano-Piloto para Poesia Concreta", de 1958.

Mallarmé, que morreu antes do século 20, não fez parte de nenhum movimento de vanguarda. Já Pound fez parte de dois movimentos de vanguarda ingleses, o imagismo e o vorticismo. Esses movimentos, como os continentais, não parecem reconhecer precursores. Além disso, opõem-se ao passado imediato e às diluições vitorianas e edwardianas do romantismo. Por outro lado, ao contrário dos movimentos continentais, são capazes de valorizar, por exemplo, a poesia da antigüidade clássica.

De certo modo, porém, não seria correto dizer que Pound não reconhecesse precursores. Tomemos os princípios do imagismo, que ele publicou em 1913: tratar diretamente o objeto; não utilizar uma única palavra que não contribua para apresentá-lo; quanto ao ritmo, compor na sequência da frase musical, não na do metrônomo; refletir com exatidão o particular, e não generalidades vagas; ser preciso e claro, jamais confuso ou indefinido; ser conciso. Se tais princípios pretendem ser o resultado da destilação da grande poesia de todas as épocas, então a poesia conscientemente feita de acordo com eles toma toda grande poesia como sua precursora. Além disso, por um processo sem dúvida circular, embora não necessariamente vicioso, esses princípios, uma vez destilados, proporcionam os critérios que permitem a Pound -e, na sua esteira, a T.S. Eliot- propor ousadas reavaliações e revisões do cânone poético em vigor na sua época.

Pois bem, quando o concretismo toma Pound como precursor é porque pretende ter radicalizado e levado às últimas conseqüências as descobertas desse poeta (assim como as de Mallarmé e de outros), chegando ao extremo de -no "Plano-Piloto" de 1958- dar por encerrado o ciclo do verso. Isso estava errado, é claro, pois grandes poemas em verso foram escritos desde então. No entanto, apesar de seu radicalismo -ou melhor, por meio dele- o concretismo também foi capaz de, tendo aprendido com Pound, empreender a sua própria reconsideração e livre reapropriação da tradição. Não deve ser um acaso que não tenham sido poetas do Velho Mundo, mas americanos e brasileiros, os que precisaram levar a cabo tais reapropriações. Ao fazê-lo entre nós, o concretismo conseguiu dar a um país cuja intelligentsia costuma ser excessivamente cautelosa um exemplo de audácia muito mais significante e inteligente do que se tivesse simplesmente, ao modo das vanguardas históricas, em vão rejeitado todo precursor e toda tradição.