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27.10.11

Matéria da revista CARIOQUICE: "Um grão de poesia nas dunas da mpb": por Mônica Sinelli

Publico abaixo uma matéria que a Mônica Sinelli publicou na revista Carioquice, a partir de uma entrevista que lhe dei.

UM GRÃO DE POESIA NAS DUNAS DA MPB

por Mônica Sinelli


Entre os insondáveis caminhos que atravessam o erudito e o pop, ele prefere todos. Por transpor sem preconceitos possíveis distâncias que interditariam a coexistência nos dois mundos, Antonio Cicero – verbete do Dicionário Cravo Albin – tem descrito uma trajetória singular nos meios intelectuais e artísticos brasileiros. E timbrado sua grife inconfundível em versos que respiram ares cosmopolitas. Mas, que, em especial, acendem, apaixonadamente, os crepúsculos do Rio de Janeiro.

Carioca do Leblon, o poeta e filósofo Antonio Cicero – filho dos piauienses Ewaldo e Amélia Correia Lima –, nascido a 6 de outubro de 1945, cedo aciona a sintonia fina de percepção da cidade, que mais tarde se tornará musa de tantos poemas. “Eu a via com olhos curiosos; às vezes, felizes, às vezes, não. Minhas primeiras memórias têm a ver com o Jardim de Alah e a praia. Aos 5 anos, me mudei da Avenida Afrânio de Melo Franco, esquina com a Ataulfo de Paiva, para a Bartolomeu Mitre. Brincava na Praça Antero de Quental e estudava no Colégio Santo Agostinho. Com 10 anos, minha família se mudou para a avenida Vieira Souto, em Ipanema".




Com os pais, na praia do Leblon, na década de 50
                   
Adolescente, Cicero começa a escrever tanto em prosa quanto em verso. Em 1960, seu pai vai trabalhar em Washington, nos EUA, levando toda a família. Cícero faz o high school lá. Ao regressar, começa a cursar filosofia na PUC do Rio de Janeiro e, depois, no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. Em 1969, devido a problemas políticos, vai para Londres, onde se forma em filosofia pela Universidade de Londres. Em 1972, na volta de uma Inglaterra em ebulição, encontra sua cidade igualmente imersa na esteira fervilhante da contracultura. “A ditadura continuava, mas havia bem mais liberdade sexual e comportamental entre os jovens. Lembro-me, por exemplo, de pontos de encontro como o Posto 9, o Dancing Days, as dunas da Gal, o Baixo Leblon, a peça “Trate-me Leão”. E de pessoas: Waly Salomão, Lenny Dale e os Dzi Croquetes, a chegada de Gabeira. Foi muito interessante a década de 70 no Rio”, avalia.

Em 1976, Cicero vai fazer pós-graduação nos Estados Unidos, onde estuda grego e latim, o que lhe permitirá ler no original clássicos como Homero, Píndaro, Horácio e Ovídio.



Em 1963

Entre seus poemas até então guardados na gaveta, sua irmã Marina – que, com ele, irá impactar a cena musical brasileira por meio de um estilo personalíssimo – pesca, às escondidas, em 1976, “Alma caiada”, criando a canção que no ano seguinte Maria Bethânia chegaria a gravar. Vetada pela censura, ganharia registro, dois anos depois, por Zizi Possi:

Aprendi desde criança
que é melhor me calar
e dançar conforme a dança
do que jamais ousar.

Mas às vezes pressinto
que não me enquadro na lei:
Minto sobre o que sinto
e esqueço tudo o que sei.

Só comigo ouso lutar:
Sem me poder vencer,
tento afogar no mar
o fogo em que quero arder.

De dia caio minh’alma.
Só à noite caio em mim:
por isso me falta calma
e vivo inquieto assim.


O primeiro disco de Marina Lima, “Simples como fogo” (1979), vem com “Transas de amor” (Os sonhos de quem ama não cabem só na cama), sucesso inaugural entre tantos que se sucederão da dupla. Nesse LP, a canção “Tão fácil” já anuncia que o Leblon é um deserto para um coração incerto. E Memória fora de hora expõe:

Meu amor mora lá no Rio
Rio para o amor
Cidade entre morro e mar
E mar e morro
de saudade.


Com Marina e saxofonista Leo Gandelman, produtor do disco "Virgem", quando este ganhou o Disco de Ouro.


Dali em diante, Antonio Cicero não só assinará com Marina uma das mais bonitas trilhas da música brasileira, mas amplificará seu refinamento estético em composições ao lado de outros parceiros, como Orlando Morais na plangente “Logrador”, interpretada por Bethânia:

Você habita o próprio centro
De um coração que já foi meu
Por dentro torço pra que dentro
em pouco lá só more eu.
Livre de todos os negócios
e vícios que advêm de amar
lá seja o centro de alguns ócios
que escolherei por cultivar.
E pra que os sócios vis do amor,
rancor, dor, ódio, solidão
não mais consumam meu vigor,
amado e amor banir-se-ão
do centro ruma a um logrador
subúrbio desse coração.


Outro parceiro é Claudio Zoli, em “À francesa”:

Meu amor, se você for embora
sabe lá o que será de mim
passeando pelo mundo afora
na cidade que não tem mais fim
ora dando bola ora fora
um irresponsável, pobre de mim.

Se lhe peço pra ficar ou não?
meu amor eu lhe juro
que não quero deixá-lo na mão
e nem sozinho no escuro
mas os momentos felizes não estão escondidos
nem no passado nem no futuro.

Certamente vai haver tristeza
algo além de um fim de tarde a mais
mas depois as luzes todas acesas
paraísos artificiais
e se você saísse à francesa
eu viajaria muito, mas muito mais.


O Rio seguirá recorrente na sua criação, a exemplo de “Inverno” (com Adriana Calcanhotto):

No dia em que fui mais feliz
eu vi um avião
se espelhar no seu olhar até sumir

de lá pra cá não sei
caminho ao longo do canal
faço longas cartas pra ninguém
e o inverno no Leblon é quase glacial.

Há algo que jamais se esclareceu:
onde foi exatamente que larguei
naquele dia mesmo o leão que sempre cavalguei?

Lá mesmo esqueci
que o destino
sempre me quis só
no deserto sem saudades, sem remorsos, só
sem amarras, barco embriagado ao mar

Não sei o que em mim
só quer me lembrar
que um dia o céu
reuniu-se à terra um instante por nós dois
pouco antes do ocidente se assombrar.



Com o irmão, Roberto, e a prima, Gilda

E em Virgem:

As coisas não precisam de você:
Quem disse que eu tinha que precisar?
As luzes brilham no Vidigal
e não precisam de você;
os Dois Irmãos
também não
precisam.
O Hotel Marina quando acende
não é por nós dois
nem lembra o nosso amor.
Os inocentes do Leblon,
esses nem sabem de você
nem vão querer saber
e o farol da ilha só gira agora
por outros olhos e armadilhas:
o farol da ilha procura agora
outros olhos e armadilhas.


Também com Marina, “Este ano” tem o emblemático verso “o Rio soa como eu sou”.




MUSAS CAPRICHOSAS

“A filosofia e a composição musical são atividades opostas, mas complementares do meu espírito. Nem sempre é fácil administrar o tempo entre elas”, relata Cicero, afirmando mover-se “aos trancos e barrancos” nessa ponte. Sobre a possibilidade de interseção com os distintos elementos de um universo e do outro, observa: “A poesia é uma zona de confluência. Todo bom poema é concreto (o que não quer dizer concretista), e o concreto é a síntese de muitas determinações abstratas. Tudo influencia tudo. Minha poesia vem do acaso e do trabalho. O que chamamos de inspiração é um acaso que mexe produtivamente com nosso inconsciente e vice-versa. Não há oposição entre inspiração e trabalho. O trabalho solicita a inspiração, e a inspiração tem que ser trabalhada.”

Os estímulos, segundo ele, estão em todo lugar. “Mas numa dimensão do tempo que não é aquela – utilitária – em que passamos a maior parte da vida. É o tempo do devaneio. Só entra nele quem está totalmente disponível a `perder tempo`, sem garantia nenhuma de que as musas virão, porque elas são caprichosas. Agora, sem essa disposição, elas não vêm mesmo”, repara. Reino secreto este, que se pode contemplar em “Misteriosamente”, parceria com João Bosco e Waly Salomão:

É noite
alta e quente e não vou mais dormir
Pois uma canção insiste em surgir misteriosamente
...Gota por gota cada nota vai brotar
Algo gratuito assim
que vem só porque quer.



Com Caetano, no filme "Tabu", de Júlio Bressane. Foto de Marta Braga

O desassombro em transitar tanto no universo erudito quanto no pop desenha um caminho solitário para Cicero como intelectual no Brasil. “Especialmente, na filosofia – reconhece. Devo ao poeta e ensaísta Antonio Medina Rodrigues o único artigo publicado pela imprensa, no ‘Estadão’, sobre meu livro de filosofia O mundo desde o fim (1995). Nada, também, divulgou-se quando saiu Finalidades sem fim (2005), meu livro de ensaios sobre poesia e arte. Creio que isso se deve a dois fatos. Primeiro, não estou ligado à academia; segundo, desenvolvi meu pensamento por mim mesmo, a partir, é claro, de um diálogo com grandes pensadores, mas sem vinculação nenhuma com as modas contemporâneas, que considero superficiais. Os professores convencionais de filosofia não sabem como lidar com meus textos.” Tal destemor para interatuar em terrenos diversos e, aparentemente, conflitantes, sem abrir mão da entrega em nenhum deles, está explícito na bela e contundente “Três”
(com Marina):

Eu quero tudo que há
O mundo e seu amor
Não quero ter que optar
Quero poder
partir
Quero poder ficar.


                                                           
Década de 70, na casa de Caetano e Dedé Veloso, no Jardim Botânico, em foto de Lita Cerqueira: Da esquerda para a direita, começando em cima: Maria Gladys, Cicero, Júlio Bressane, Waly Salomão, Dedé, Haroldo de Campos, Rosa Dias, Susana Moraes, Oscar Maron, Alex Varella, Guel Arraes, Sílvio Correia Lima, Luciano Figueiredo e Caetano.

FEITO DE UM MUNDO IMENSO

Para Cicero, a filosofia, ao contrário da poesia, tem a pretensão de dizer verdades – verdades até absolutas. “Uma verdade absoluta é que nenhuma positividade é absoluta. Isso significa também que o absoluto é negativo; ou ainda: que a negatividade é absoluta”, acentua ele, que tem em Kant e Horácio o filósofo e o poeta maiores. “Kant é o filósofo do mundo moderno, crítico, aberto. Sobre Horácio, faço minhas as palavras de Nietzsche: Até hoje não senti em nenhum poeta o mesmo arrebatamento artístico que desde o início uma ode horaciana me deu. Em algumas línguas, não se pode sequer querer o que lá foi alcançado.”


Reflexões angustiantes aparecem em versos como os de “Dilema”, que está no CD “Antonio Cicero por Antonio Cicero”, lançado em 1996 (na coleção “Poesia Falada”, produzida por Paulinho Lima), no qual lê seus poemas:

O que muito me confunde
é que no fundo de mim estou eu
e no fundo de mim estou eu.
No fundo
sei que não sou sem fim
E sou feito de um mundo imenso
Imerso num universo
que não é feito de mim
Mas mesmo isso é controverso
Se nos versos de um poema
Perverso sai o reverso.
Disperso num tal
dilema
O certo é reconhecer:
no fundo de mim
sou sem fundo.


“A primeira vocação de um poema escrito é ser lido. E lido não para fora, mas para dentro. É claro que quem o lê tem que levar em conta o seu som. Trata-se de uma leitura aural, como diz o poeta francês Jacques Roubaut. A recitação não passa de um suplemento ao livro”, sinaliza.

Ainda naquele ano, Cicero publica “Guardar”, seu primeiro livro de poesias (Prêmio Nestlé de Literatura Brasileira 1997), o que só tornará a fazer em 2002, com “A cidade e os livros”, em que o Rio de Janeiro o captura e magnetiza:

O Rio parecia inesgotável
àquele adolescente que era eu.
Sozinho entrar no ônibus Castelo,
saltar no fim da linha, andar sem medo
no centro da cidade proibida,
em meio à multidão que nem notava
que eu não lhe pertencia – e de repente,
anônimo entre anônimos, notar
eufórico que sim, que pertencia
a ela, e ela a mim –, entrar em becos
travessas, avenidas, galerias,
cinemas, livrarias: Leonardo
da Vinci Larga Rex Central Colombo
Marrecas Íris Meio-Dia Cosmos
Alfândega Cruzeiro Carioca
Marrocos Passos Civilização
Cavé Saara São José Rosário
Passeio Público Ouvidor Padrão
Vitória Lavradio Cinelândia:
lugres que antes eu nem conhecia
abriam-se em esquinas infinitas
de ruas doravante prolongáveis
por todas as cidades que existiam.
Eu só sentira algo semelhante
ao perceber que os livros dos adultos
também me interessavam: que em princípio
haviam sido escritos para mim
os livros todos. Hoje é diferente,
pois todas as cidades encolheram,
são previsíveis, dão claustrofobia
e até dariam tédio, se não fossem
os livros incontáveis que contêm.




Com a mãe, Amélia, na década de 1970

“Nesse poema, conto minha descoberta, quando adolescente, de que a cidade inteira estava aberta para mim; que, de certo modo, pertencia a mim. Como garoto da Zona Sul, eu rarissimamente saía da região, e nunca sozinho. Um dia descobri que podia tomar um bonde ou ônibus e andar pela cidade toda. Comecei a percorrer também o Centro a pé. Às vezes pegava uma barca e passeava em Niterói, ou um trem na Central até Cascadura, Madureira, Méier. Foi uma grande sensação de liberdade. Em “O último romântico”, que fiz com Lulu Santos e Sergio Souza, falo da importância de reunir a Zona Norte à Zona Sul.”

À polêmica discussão em torno de uma letra de música poder ou não configurar poesia, ele analisa: “Que uma letra de música pode ser poesia é inegável, pois os poemas líricos gregos, como os de Safo, Anacreonte ou Píndaro, eram letras de música, e ninguém duvida que sejam grande poesia. Um poema consiste numa síntese indecomponível de determinações semânticas, sintáticas, morfológicas, fonológicas, rítmicas. Tudo nele conta: sentidos, sons, sugestões, ecos. Quero que sejam assim os poemas que faço.” E complementa: “Não desassocio nada de nada no poema que escrevo para ser lido. Já na canção é diferente, pois não componho música, não toco instrumento, nem canto. Normalmente, recebo uma melodia e tento interpretá-la, pensando no parceiro ou em quem a cantará. E ponho palavras nela. Sendo assim, música é uma coisa e letra, outra.”



Cazuza, Waly Salomão, Antonio Cicero, no Baixo Leblon, na década de 80
                                  
OS TAIS CAQUINHOS

Qual a percepção do poeta hoje, depois de ter escrito a demolidora “Pra começar” (com Marina) ainda nos anos 80, em torno dos “caquinhos do velho mundo” – pátrias, famílias, religiões e preconceitos? “O que eu dizia ali é uma verdade. Mas muitos se desesperam, ao perceber que essas coisas perderam a sacralidade, e tentam colar seus caquinhos de qualquer modo, à força. Querem voltar a um passado idealizado. Não suportam a ideia de viver num mundo aberto, em que tudo está sujeito a ser criticado. Tentam fechá-lo artificialmente e, para tanto, têm que usar imensa violência. Esse é o germe do fascismo. Precisamos estar alertas a esse risco.” A visão afiada sobre o Brasil contemporâneo se evidencia em “Zona de fronteira” (com João Bosco e Waly Salomão):

Já alguns sinais estão aí
Sempre a brotar do ar
De um território que está por explodir
...Sim, bem
em cima do barril
Exato na zona de fronteira
Eu improviso o Brasil.




Com Susana de Moraes, Adriana Calcanhotto e Waly Salomão, ao autografar o CD "Antonio Cicero por Antonio Cicero", em 2004

Conectado a plataformas virtuais, com site e blog próprios, Cicero examina a escrita em tempos de internet. “Publico no blog textos que gostaria que muita gente lesse, meus ou os que admiro. Mas não acho que a poesia deva mudar por causa da internet. Eu a uso como um veículo de comunicação e, também, uma espécie de enciclopédia e biblioteca. Não tenho tempo para facebooks ou coisas do gênero”, descarta. Com três livros em vias de publicação – um de poemas, um sobre poesia e filosofia, além de um terceiro de ensaios –, o atual morador do bairro do Humaitá arremata: “Continuo sendo um andarilho, mas não tenho tanto tempo para flanar. Gosto de caminhar. Meu espaço favorito é o Jardim Botânico, onde uma minha tia muito querida, Maria Cândida, a Tilinha, levava-me para passear com sua filha, minha prima Marília, quando eu era garoto. Adoro Leblon, Copacabana, Lagoa, Botafogo, Niterói e, sempre, o Centro. Para mim, viver bem é ter tempo para o devaneio, ler, escrever
e pensar sem compromisso, jantar e tomar um vinho, conversando com os amigos.” Pois, então, um brinde à doce vida, poeta!


Com Marcelo Pies, em Buenos Aires

24.7.09

Claustrofobia e respiração

.




Trabalho de interpretação visual da obra poética de Antonio Cicero, baseado em seu livro "A Cidade e os Livros".
Concepção e Direção: Alaiane de Fátima, Angelo Alexandre e Roberta Malta

21.10.08

Francisco Bosco: Uma chance histórica

A candidatura de Gabeira a prefeito do Rio de Janeiro tem uma enorme importância, não apenas para a cidade do Rio, como para todo o Brasil e sua história política. É no mínimo uma raridade, senão uma novidade histórica, uma candidatura que, desde o início, tenha se orientado incondicionalmente por princípios de absoluto respeito à legalidade, ao espaço público e aos adversários políticos. Uma candidatura que tenha se guiado por um elevado senso moral, de que não abriu mão mesmo quando confrontando manobras tradicionais da política brasileira, como distribuição de panfletos apócrifos, uso abusivo e caviloso de declarações infelizes (como no episódio que envolveu a vereadora Lucinha), estratégias obscurantistas, etc.

Pois essa tem sido a postura do candidato Gabeira, que estabeleceu tais princípios como condição para candidatar-se. Não se pode perder de vista a chance e o significado históricos desse gesto e de sua manutenção inabalável. A eleição de Gabeira fará ruir um axioma pernicioso que vem dominando a cena política no Brasil, e em que tanto o PSDB como o PT, nas últimas quatro eleições presidenciais, mergulharam de cabeça: o axioma segundo o qual não se vence uma eleição sem fazer o jogo sujo das alianças espúrias, do loteamento prévio de cargos, dos golpes baixos eleitorais e por aí em diante. Esse jogo sujo, ao começar logo na campanha, invariavelmente caminha para o exercício do poder, onde o mais despudorado fisiologismo (vide, como exemplo recente, o episódio Renan Calheiros) é sempre desculpado pela “governabilidade”, palavrinha mágica com a qual os governantes legitimam sua fraqueza ideológica e moral.

É precisamente contra tudo isso que a candidatura de Gabeira desde já se opõe, e a firmeza que o candidato vem demonstrando na sustentação dessa postura não deixa dúvidas quanto a que ela permanecerá orientando sua gestão, em caso de vitória. Pois essa vitória, então, significará nada menos que a possibilidade de o exercício político estar verdadeiramente subordinado aos interesses republicanos, isto é, significará que a esfera política brasileira, tão esvaziada, tão imobilizadora, será dotada de credibilidade. Sem essa credibilidade parece impossível mobilizar a sociedade a fim de ela tornar-se uma força decisiva no processo de engrandecimento do Brasil, processo que exige maior justiça social, o que por sua vez depende de amplo respeito à legalidade. Parece-me que tudo isso fica comprometido quando a esfera política é contaminada, desde as campanhas eleitorais, pelo jogo sujo de que falei acima.

Não sou cientista político, minhas palavras são apenas as de um cidadão atento ao que considera os caminhos e descaminhos de sua cidade, seu país, seu mundo. Mas posso e devo dizer que, numa era de tantas incertezas – morais, estéticas, comportamentais, etc. –, a candidatura de Gabeira é um acontecimento que não me deixa nenhuma dúvida quanto a sua importância e seu significado de oportunidade histórica, oportunidade que não podemos desperdiçar.


Francisco Bosco, a uma semana da eleição.

27.7.08

A política do confronto

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 26 de julho de 2008:


A política de confronto

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O problema não é a política do governador do Rio, mas a ausência de uma política nacional
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NO CORRENTE MÊS , algumas ações desastrosas da Polícia Militar do Rio de Janeiro resultaram nas mortes de inocentes. A indignação provocada por essas mortes ocasionou um grande número de artigos e declarações que puseram em questão a política de confronto com o crime organizado, adotada pelo governador Sérgio Cabral.

A indignação é plenamente justificada. É inadmissível que a polícia atire contra um automóvel, como no caso que resultou na morte do menino João Roberto, movida pela mera presunção de que esteja ocupado por bandidos. Quem age assim jamais deveria ser policial.

E aqui chegamos à fórmula que conhecemos de cor. O trabalho dos policiais é de alto risco, eles não contam com acompanhamento psicológico, são mal preparados e treinados e recebem baixos salários, o que muitas vezes os obriga a fazerem "bicos". Que admira que sejam altamente estressados?

Além disso -o que é ainda pior-, não só no Rio de Janeiro, mas praticamente no Brasil inteiro, a cultura corporativa tradicional da polícia parece desprezar o próprio conceito de direitos humanos.

Nessas condições, seria de estranhar que não ocorressem mortes de inocentes e violações dos direitos humanos. E o fato é que elas sempre ocorreram e continuarão a ocorrer, enquanto esse quadro não for radicalmente transformado, não só no Rio, mas no Brasil inteiro.

Sendo assim, parece-me que o verdadeiro problema não é a política de confronto do governador Sérgio Cabral, mas a ausência de uma política nacional de segurança que faça jus à gravidade da situação.

Não digo isso para negar que a situação do Rio seja mais dramática do que a do Brasil como um todo. Entretanto, a verdade é que o que a torna mais dramática não é a política de confronto, mas a intensidade e a extensão que aqui possui o crime organizado, contra o qual essa política se delineia.

Lamentavelmente, já nos acostumamos a ver, quase todos os dias, imagens de "soldados do tráfico", a guardar, com metralhadoras, escopetas e bazucas, as cada vez mais numerosas e extensas áreas da cidade controladas pelo crime organizado. Numa área dessas ninguém entra, a menos que tenha obtido um salvo-conduto, emitido pelo comando local da organização criminosa que a controla. Ainda esta semana, alguns candidatos a prefeito foram impedidos, pela ponta do fuzil, de fazer comícios em diferentes localidades.

Como é possível não ver que os habitantes de tais localidades, vivendo sob a tirania de forças de ocupação compostas de facínoras inescrupulosos, são destituídos de qualquer garantia constitucional ou direito humano? Ou ignorar que essas forças são capazes não apenas de tolher o direito de ir e vir das populações que controlam, mas de expulsar o morador do seu domicílio, de recrutar ou subornar os filhos dele para o crime e de torturá-lo ou executá-lo com requintes de crueldade, caso infrinja os códigos que arbitrariamente decretam?

Nenhum governante tem o direito de aceitar passivamente tal limitação do império da lei e da democracia. Sejamos claros: enquanto não forem liberadas e reintegradas ao território nacional todas as áreas ocupadas por forças ilegais, enquanto nelas não se fizer valer o Estado de Direito, não há como, com boa consciência, escapar do confronto. Em princípio, portanto, a política de confronto do governador Sérgio Cabral é não apenas perfeitamente legítima, mas louvável.

O que se pode questionar é a eficácia última de tal política, se conduzida apenas em âmbito estadual. Já mencionei o despreparo, em todos os níveis, da polícia.

Ora, para que a política de confronto tenha eficácia e não se torne insuportável, do ponto de vista de custos humanos, seria necessário, segundo alguns dos maiores especialistas em segurança pública, reformar radicalmente a estrutura policial de todo o país, subordinar toda a polícia a um comando central nacional, dotá-la de sofisticados serviços de inteligência e preparar, em todos os níveis, os seus quadros: tudo isso, é claro, depois de ter afastado a sua “banda podre”.

Evidentemente, nada disso poderia ser feito senão pelo governo federal, que teria, antes de tudo, que se empenhar politicamente em tal projeto.

A rigor, portanto, a política do confronto deveria ser emulada pelo governo federal: com o que não faria mais do que cumprir a sua obrigação constitucional.

Infelizmente, nada indica que ele esteja disposto a reconhecer semelhante responsabilidade.

7.5.08

Entrevista a Daniela Name

Dada a discussão sobre o meu artigo "O sentido da vanguarda", resolvi postar a versão integral da entrevista que dei a Daniela Name e que foi publicada, com alguns cortes, em O Globo, em 24/07/2002:



Antonio Cicero mistura cidades e palavras num mundo a se descobrir


1- "A cidade e os livros" parece ser um livro que tem mais unidade, que é mais orgânico do que "Guardar" - e aí não vai nenhum juízo de valor dos poemas. Vc concorda com isso? Por quê?

Concordo. O que ocorre é que “Guardar” foi o meu primeiro livro de poesia. Cerca de 30% dos seus poemas eram novos; os outros haviam sido escritos em diferentes épocas de minha vida. O critério que usei para selecionar cada poema foi o sentimento de que ainda hoje poderia escrevê-lo e me orgulhar de assiná-lo. Entretanto, o fato é que só os 30% novos haviam sido feitos para integrar um livro. Já os poemas de “A cidade e os livros” foram feitos nos últimos quatro anos, e, com uma ou outra exceção, feitos para integrar esse livro.

2- Um dos aspectos mais interessantes do livro - e o Wisnik o destaca lindamente na orelha - é a fusão que você faz entre os mitos clássicos (Prometeu, Ícaro, Narciso) e a vida de todo dia, das ruas cariocas, da praia, das angústias presentes. Como fazer esta mistura? Como lidar com todo este patrimônio clássico, que é berço da nossa palavra, nosso teatro e nossa filosofia de um jeito que transmita frescor e uma certa autenticidade?

Para mim, a literatura clássica constitui grande parte das idéias e do vocabulário com os quais pensamos e imaginamos o mundo em que vivemos. Por direito, o mundo clássico pertence aos brasileiros, assim como nos pertence a língua portuguesa. Como diz Ezra Pound, “o que bem amas é tua herança verdadeira / o que bem amas não te será arrancado”. A grande poesia grega e latina está viva, mas está viva por tornar mais vital a minha própria vida (e a vida de todos aqueles que amam as línguas e a literatura clássicas), no século XXI.

3- O Centro do Rio e suas livrarias estão presentes em "A cidade..." em muitos poemas, inclusive na dedicatória à dona Vanna. Queria que você comentasse este aspecto labiríntico da cidade, que se confunde com o labirinto da própria construção de um texto. Falasse também do aspecto de libertação X claustrofobia que há nos labirintos de ambos os casos e de como, tantos anos depois de ter vindo para cá, vc enxerga hoje o Rio-labirinto. (nossa, que pergunta tagarela!!!)

Na verdade, eu sou carioca, do Leblon. Mas, quando criança, fora o Leblon e Ipanema, o resto da cidade era off-limits, para mim. O que descrevo no poema “A cidade e os livros” é a descoberta de que o centro da cidade – e, por extensão, todo o resto desta e das demais cidades do mundo – era um território aberto à minha exploração: que tudo isso me pertencia, por direito, assim como, por direito, me pertencia tudo o que havia sido escrito. Mas acho que os poemas do meu livro falam melhor sobre as coisas que você me pergunta do que eu poderia fazê-lo aqui.

4- Você usa soneto, decassílabo, odes, enfim, recorre a formas "clássicas" de fazer poema. Como se dá o processo de escolha da forma, que é tudo num poema? E como esta herança clássica se relaciona com a confusão e uma certa decadência contemporânea, que também aparece no livro?

Para falar a verdade, não penso que o mundo esteja em decadência, nem tenho nada contra a “confusão” contemporânea. Estou longe de pensar que o mundo seja velho ou que tudo já tenha sido dito, ou que o melhor já tenha passado. Como diz um verso de um poema desse livro, “ontem nasceu o mundo”. Mil vezes pior do que as “confusões” que observamos são as reações religiosas e políticas a elas, as tentativas de voltar atrás e de “organizar” ou “simplificar” o mundo. Essas reações incluem tanto o terrorismo dos fundamentalistas quanto a violência dos ideólogos da guerra – também religiosos – que tomaram o poder nos Estados Unidos. É essa gente terrível que, querendo reprimir a liberdade do mundo moderno, o acusa de estar em decadência.

Quanto à questão da forma, é verdade que, muitas vezes, uso formas tradicionais. Entretanto, não as idolatro. Em si, nenhum formato é melhor do que nenhum outro. Tanto a invenção de um novo formato quanto o uso de um formato tradicional se justificará ex post facto, caso o poema, estando pronto e bem realizado, retroativamente pareça tornar necessário o formato em que foi feito: embora necessário apenas para o poema individual em questão. A poesia é o que transforma o arbitrário em necessário. Gosto das formas fixas porque me estimulam. Acho o soneto conveniente principalmente tem quatorze versos de igual tamanho, o que, em geral, é muito adequado para os meus projetos líricos.

Entretanto, os formatos tradicionais são, na verdade, dispositivos dotados da propriedade de produzir determinados efeitos. A métrica dos versos, por exemplo, é um método que propicia a obtenção de certos ritmos. Assim, o decassílabo tende a ser acentuado na sexta e na décima sílabas (verso heróico), o que resulta em pentâmetros jâmbicos, ou então na quarta, na oitava e na décima sílabas (verso sáfico), o que produz dois dijambos e um jambo. Pois bem, para mim, justamente tais efeitos tornaram-se excessivamente gastos e, por isso, enjoativos. Para evitá-los, pratico freqüentemente o enjambement e uma pontuação que quebra internamente os versos. Desse modo, eles se tornam mais sujos e menos previsíveis. Assim também as rimas, quando perfeitas, são excessivamente calculáveis e restritivas. Uso, por isso, rimas assonantes. Meus sonetos são, portanto, desnaturados.

Contudo, quero ressaltar que a minha intenção, ao desnaturar os sonetos, não é conspurcar o seu formato. Longe disso: desnaturo-os somente na medida em que essa é a única maneira pela qual torno interessante, para mim, escrevê-los. Faço uso dos sonetos porque, ao contrário tanto dos que os idolatram quanto dos que os vilipendiam, não os tenho como fetiches. Sou justamente contra a associação automática de qualquer soneto, ou de qualquer forma dada, a uma postura determinada: tradicionalista ou vanguardista. Todo o repertório formal e lingüístico já dado está disponível a meu uso e nenhum preconceito me obrigará a abrir mão do direito de fazê-lo, exatamente como não abro mão do direito de inventar novas palavras ou formas, se isso me parecer necessário.

5- Ainda sobre esta questão formal, "Guardar" trazia vários poemas que viraram letras de música. Isto também está acontecendo/vai acontecer com alguns versos de "A cidade..."? Você me contou que os primeiros poemas foram musicados por Marina sem a sua autorização. Mas hoje, como isso se dá?

Não escrevi esses poemas com a pretensão de que fossem musicados. Tenho a impressão de que a maior parte deles não seriam facilmente musicáveis, isto é, não ficariam bem numa canção. Isso não impede que um ou outro possa sê-lo. Alguns poemas de “Guardar” foram musicados depois de publicado o livro. Na verdade, um trecho do poema “Don’Ana” e o poema “Francisca” são recitados à maneira de um rap, no disco novo da Marina.

6- No livro, há Citera e Narciso, mas também personagens como Don'Ana e
Francisca. Como esta memória pessoal, no primeiro caso, e um certo ar de
crônica, no segundo, invadem o poema?


Don’Ana foi personagem da minha infância e Francisca, da vida inteira. Eu quis “guardá-las”, no sentido em que uso essa palavra no poema “Guardar”. Mas não sei explicar exatamente por que é que uma coisa entra num poema e outra não.

7- A filosofia de um lado, a poesia de outro. Duas vertentes clássicas quase opostas. Às vezes, pinta em vc uma sensação esquizofrênica? (risos) Foi a filosofia que retardou seu primeiro livro de poemas, já lançado numa idade madura?

Há, de fato, certa esquizofrenia na relação entre a poesia e a filosofia, tais como as concebo. São extremidades opostas do meu espírito. Lutam para se apossar do tempo que me é dado. Não me é fácil administrar esse tempo. Sou um palco microcósmico em que se representa a velha rixa entre a poesia e a filosofia. Quando me dedico a escrever sobre filosofia, não consigo escrever poemas, pois, para escrevê-los, é necessário pôr à disposição da poesia la crême de la crême do meu tempo livre: Ovídio o diz muito bem: vacuae carmina mentis opus, isto é, os poemas são obra de uma mente desocupada; e para que o creme do creme do meu tempo livre esteja disponível à poesia, não posso estar preocupado com questões filosóficas.

Embora, desde a adolescência, eu escrevesse tanto em prosa quanto em verso, nada do que fazia parecia-me estar à altura dos critérios que eu mesmo me impunha, isto é, à altura de mim mesmo. O destino de quase todos os meus escritos era o lixo, após terem passado por uma gaveta qualquer. Mesmo sabendo que, em parte, isso se devia ao medo de me definir ou limitar, isto é, ao medo de escolher uma realidade finita no lugar da potencialidade infinita, e soubesse que como diz Hegel, “quem tem demasiado desprezo pelo finito não chega a realidade alguma, permanece no abstrato e consome-se a si próprio”, eu não conseguia agir de outro modo.

Há também uma razão, digamos, conjuntural para a minha relutância. É que, no Brasil, no terreno da poesia, a vanguarda mais consistente era a concretista, que, no seu “Plano-Piloto”, havia dado por encerrado o “ciclo histórico do verso”. Ora, por um lado, ideológica e intuitivamente, eu queria ver o mundo com olhos novos e tinha horror à mistificação conservadora dos gêneros e das formas tradicionais, de modo que me identificava com a vanguarda na vontade de fazer tabula rasa dos preconceitos e das convenções; por outro lado, pelo feitio da minha sensibilidade, eu preferia e ainda prefiro a poesia discursiva e, em particular, a poesia feita em versos. Por essas razões, não me identificava totalmente nem com os concretistas (embora admirasse então e admire ainda a primeira geração da poesia concreta, isto é, Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignattari) nem com os seus inimigos. Havia também, é claro, a poesia marginal, que tendia a confundir poesia e vida; mas essa jamais me interessou, pois, para mim, era claro que a poesia não era vida, mas escritura, isto é, produção de formas. Tal isolamento no que diz respeito às tendências dominantes da poesia brasileira tornava-me ainda mais recalcitrante quanto a publicar.

Esse quadro começou a mudar a partir do momento em que minha irmã, Marina, pôs música em alguns poemas meus. Tendo sido musicado, um poema se transformava na letra de uma canção; ora, como eu sempre pensara em ser escritor, mas nunca em ser compositor, meus critérios eram literários e não se aplicavam imediatamente a canções. Esse fato me ajudou a contornar o meu superego. Além disso, como as canções não eram somente minhas, mas também da Marina, acontecia que, quando me dava por mim, elas já tinham sido cantadas perante outras pessoas, gravadas etc. É verdade que, como as minhas letras eram, de certo modo, publicadas nas canções dos discos, isso me aliviou a angústia de não publicar um livro de poemas: o que me permitiu demorar ainda mais um pouco para publicar... Mas, por outro lado, eu tinha, por assim dizer, perdido o cabaço. A partir daí, comecei a publicar em periódicos, e o futuro livro me apareceu no horizonte das coisas realmente exequíveis.

Hoje penso que, independentemente da música, eu devia ter exercido menos autocensura e publicado mais poemas mais cedo. Dei-me conta de que, enquanto a gente não publica, tende a sempre reescrever as mesmas peças. Entre outras coisas, o poema “Guardar” exprime essa percepção. No entanto, eu detestaria que alguém tivesse recolhido os textos que joguei fora, e jamais permitiria que algo que eu mesmo não tivesse destinado à publicação fosse publicado agora ou no futuro.

8- Em "Merde de poète", você faz graça com a poesia "visceral". Sua poesia parece estar mais ligada ao clássico e a uma linhagem do modernismo maduro brasileiro (Cabral, Drummond) do que às chamadas vanguardas. A experimentação dos anos 50 ficou datada? Ou passou a haver outras formas de se experimentar?

No Brasil, a poesia que se quer “visceral” é, de certo modo, o oposto da poesia praticada pela vanguarda mais forte, que era, ao contrário, construtivista. É da poesia “visceral” que não gosto. Gosto de poesia construída.

Acho que, de certo modo, toda poesia boa é experimental, pois ela tenta exceder os limites do que se considera possível, ela força ou explode os limites do possível. Isso não surgiu com a época moderna: toda boa poesia sempre foi assim. A partir do uso da palavra ácros pelo poeta Calímaco, chamo esse tipo de ambição de “acroísmo”.
Num sentido mais estreito, diz-se “poesia experimental” aquela que experimenta com novas formas, linguagens, veículos, suportes etc. Chamo esse exercício de poesia de “experimentalismo”. Penso, por exemplo, em Eduardo Kak, que usa a holografia em alguns trabalhos. Pois bem, creio que sempre haverá lugar para o experimentalismo. Entretanto, o que torna um poema bom não é o fato de ser experimentalista. Um poema experimentalista pode ser bom ou ruim. E, evidentemente, nem toda poesia tem que ser experimentalista.

Finalmente, chama-se de “experimental” também a poesia da vanguarda. Mas, se toda vanguarda é experimentalista, nem todo experimentalismo é vanguardista. As vanguardas foram o experimentalismo que teve a função cognitiva – já cumprida com êxito – de revelar uma coisa muito importante sobre a natureza da arte.
Independentemente das ambições e das ilusões dos seus protagonistas, o que as vanguardas efetivamente mostraram – e não o fizeram com seus manifestos, mas com seus poemas – foi o fato de que a poesia é compatível com uma infinidade de formas. É verdade que o corolário disso é que as formas tradicionais eram meramente tradicionais e não essenciais à poesia, isto é, que elas têm origem na convenção e não na natureza. Ao revelar esse fato, as vanguardas relativizaram essas formas; mas relativizar uma coisa é diferente de destrui-la. Do século XII ao século XVII, foram inventadas diversas formas de poesia escrita adequadas às línguas modernas. Do século XVII ao XIX, essas formas estiveram institucionalizadas, principalmente pelas academias. No século XIX, elas se apresentavam como “naturais” e infringi-las parecia anti-natural. As vanguardas simultaneamente abriram caminho para as infinitas possibilidades que haviam sido excluídas e mostraram que as formas “naturais” eram na verdade formas que haviam sido fetichizadas. Bastou essa revelação para se desmontar o fetiche. Uma vez feito isso, as vanguardas haviam cumprido a sua função histórica.

É importante ressaltar que o resultado realmente importante dessa história não foi nenhum progresso artístico, isto é, nenhum progresso da própria poesia, mas um progresso cognitivo. O resultado objetivo de todo o afã da vanguarda foi a aquisição de um conhecimento de caráter negativo sobre a essência da poesia. Descobriu-se que nenhuma forma é essencial à poesia. Isso significa que por princípio não se pode receitar como deve ser um poema. Pela mesma razão, não há critérios prontos para serem aplicados a cada poema que surja. É nesse ponto que nos encontramos hoje. Trata-se, evidentemente, de uma situação muito diferente tanto daquela (pré-vanguardista) em que se supunha conhecer as formas essenciais à poesia quanto daquela (vanguardista) em que ainda se buscava determinar as formas essenciais à poesia. O grande erro que alguns vanguardistas cometeram foi confundir os progressos cognitivos que obtiveram com um progresso artístico.

Outro erro não menos grave, porém, é cometido pelos inimigos da vanguarda e da modernidade que, ao ridicularizarem a confusão que acabo de apontar, entre conhecimento e arte, negam à vanguarda qualquer sentido e se recusam a reconhecer o que ela realizou do ponto de vista cognitivo. Mas não é possível voltar atrás e é preciso dizer a verdade: as vanguardas acabaram; mas acabaram, não porque não tenham dado certo, mas porque cumpriram a missão de legar ao mundo a liberdade da qual, hoje, a poesia da nossa geração se beneficia. Quanto a mim pessoalmente, alguns dos poetas mais importantes na minha formação foram vanguardistas ou ex-vanguardistas, como Carlos Drummond de Andrade.

9- Faz parte da atividade do poeta uma certa superexposição de sentimentos. Em "A cidade... " você volta a fazer declarações rasgadas e despudoradas de amor. Como é amar em público?

Na realidade, de maneira geral, faço questão de manter a diferença entre o que é público e o que é privado. Tenho horror a essa mania contemporânea de se falar em público sobre coisas íntimas.
No entanto, sou um servo da poesia. Se ela me ordena falar de amor, eu obedeço.

10 - Esta última pergunta vai além da entrevista. Vc tb é leitor de Lewis
Carroll? Sou fanática!!!


Sim. Desde criança até hoje adoro Lewis Carroll.

10.10.07

Francisco Bosco: O indireto afetivo na linguagem do carioca

O seguinte ensaio é uma das muitas pérolas do maravilhoso livro do Francisco Bosco, Banalogias:


O Indireto Afetivo na Linguagem do Carioca

No Rio de Janeiro contemporâneo há uma figura lingüístico-afetiva que pontua as relações sociais entre cariocas, ou entre um carioca e um estrangeiro. Trata-se – e todo carioca ou qualquer pessoa que já esteve no Rio o reconhecerá – do famigerado
diálogo:

— Rapaz, há quanto tempo!
— Pois é, que bom te ver!
— Poxa, a gente tinha que se falar mais!
— É mesmo, vou te ligar.
— Mas liga mesmo, pra gente se ver, botar o papo em dia.
— Não, pode deixar, vou ligar com certeza.
— Beleza, então. Adorei te ver!
— Eu também, te ligo então. Um grande abraço!

Isso ou variações.

Pois para muitos cariocas, que já estão mais do que familiarizados com o diálogo, e talvez sobretudo para os não-cariocas, que constataram perplexos o encaminhamento futuro dessas promessas, essa figura lingüística acaba por se configurar como uma situação de constrangimento. Afinal, todos sabemos que não haverá telefonema algum. Todos, literalmente, a começar pelos próprios personagens da conversa. E a fórmula do constrangimento, já se disse, é precisamente esta: todos sabem que todos sabem e entretanto ninguém o pode admitir. Curiosas sutilezas sociais. O que impede que se desencubra o não-dito do diálogo é que esse não-dito é sentido como uma mentira: não haverá telefonema, um não ligará para o outro, e vice-versa. Assim, o não-dito é mantido e desenvolvido, cria-se uma conversa sustentando a sua tensão. Está configurada a situação constrangedora.

Mas o que faz com que a situação seja por muitos experimentada como constrangedora é justamente o entendimento desse não-dito, dessa promessa que sabemos sem fundos ("te ligo, com certeza"), como sendo uma mentira. Fulano disse que ia ligar, mas não ligou: mentira, portanto. Pior: fulano assegurou que ia ligar, enfatizou, sublinhou a promessa com todas as inflexões e entonações da convicção. Mentira ainda mais grave, gravíssima.

Entretanto, tudo muda se pensarmos o recalcado do diálogo, o não-dito, não como uma mentira, mas como um modo indireto da verdade. Assim, o horizonte em que a promessa passa a ser verdadeira não é mais a sua efetivação posterior, mas o que, dentro dela, vibra afetivamente: "te ligo" passa a significar "gosto de você", "vou ligar com certeza" traduz-se por "gosto muito de você", e assim por diante, a intensidade afetiva aumentando à proporção das entonações e expressões de segurança. Fernando Pessoa dizia que "a linguagem pode mentir, mas a voz não". Ora, nesse fragmento de carioquês a verdade está na voz, no afeto que nela pulsa e se manifesta explicitamente. Mas, cabe então a pergunta: por que engajar esse afeto em uma promessa sem fundos, que se sabe não será cumprida? Por que comprometer sua verdade associando-o a uma efetivação que não ocorrerá?

A origem dessa curiosa figura sócio-lingüístico-afetiva é uma outra figura: uma sutil transformação da amizade que costuma se dar numa das curvas impostas pelo tempo a determinadas relações. Essa transformação ocorre quando uma amizade intensa passa de um estado de intimidade diariamente atualizada – conversas freqüentes, presença física constante, confissões, vidas em permanente comunicação – para um estado de amizade em que a distância se interpõe e dispersa as trajetórias dos amigos, porém algo da intimidade da outra configuração resiste a essa nova forma e se mantém intenso, incólume à distância. Esse "algo da intimidade" se transforma em um afeto constante que, adormecido e escondido pela distância, emerge efusivamente na presença do amigo. Afeto a distância. Quase-intimidade que se evidencia, para deleite dos amigos, a cada vez que o acaso propicia um encontro. Mas, em geral, os movimentos divergentes das trajetórias de vida são irreversíveis, na medida em que atingem o processo de subjetivação de cada um dos amigos: estes já não são mais os mesmos, pensam e sentem de forma diferente, são outros, não podem ter a cumplicidade que tinham antes, não da mesma forma. O que resiste, o afeto, é resultado de uma intimidade de tal modo condensada que, por excesso, atingiu como que uma existência própria, interpessoal, portanto imune às mudanças de vida dos amigos.

Perde-se a intimidade, já não se sabe tão bem da vida do outro, mas fica, incorruptível, o afeto, que vem à tona nos encontros fortuitos. Pois, justamente, é essa consciência (que pode ser apenas intuída, porém claramente) da perda irreversível da intimidade, da impossível recuperação da amizade, que virá a produzir o diálogo de que estamos tratando. O afeto é verdadeiro, é uma positividade, mas há em sua formação uma perda, uma impossibilidade: a da intimidade perdida. Isto é, telefonar seria um erro, seria apostar na improvável recuperação do estado antigo da amizade. Doravante a amizade é isso: o afeto efusivo, a alegria dos encontros fortuitos – que entretanto tenderia a perder a efusão se se tentasse um movimento restaurador. O recalcado do diálogo, o não-dito, se forma nesse ponto: é que seria duro demais trazer à tona o núcleo de perda e de impossibilidade que se encontra na formação de um afeto tão positivo, tão efusivamente manifestado. Opta-se por escondê-lo, e para tanto faz-se necessário mascará-lo com a promessa da restauração: "Vou te ligar." Quanto maior a consciência ou a intuição — da impossibilidade, e de quanta perda ela encerra, maior a necessidade de mascaramento: "Vou te ligar, com certeza."

Assim, curiosamente, quanto maior a mentira, maior a verdade. A verdade do afeto não se subordina à efetivação da promessa, mas se manifesta, de forma indireta, através do prometido: "Vou te ligar, com certeza" significa apenas "Gosto muito de você". O não cumprimento da promessa significa a consciência (mesmo que intuitiva) da impossibilidade de restauração da amizade, e o recalcado do diálogo é o mascaramento protetor de um afeto delicado. Pois a verdade nua e crua, desprotegida, poderia ser muito... constrangedora: "Rapaz, há quanto tempo! Veja, gosto de você, fomos muito íntimos, mas hoje somos bem diferentes, não acredito que possamos retomar a antiga cumplicidade, por isso vamos apenas gozar desse momento de alegria fortuita, sem fazer promessas que não poderemos cumprir." Logo o constrangimento também surge de um excesso de dizer, e não apenas de um não-dito gritante. Na verdade, nosso famigerado diálogo carioca só se torna constrangedor se sua verdade nuclear – o afeto incorruptível – não for forte o suficiente para sustentar, à base de cumplicidade, a tensão do mascaramento. Quando o mascaramento é bem-feito, o diálogo transcorre sob intensa e efêmera efusão afetiva – e somente na despedida passa por nós a brisa de uma melancolia.

De: BOSCO, Francisco. Banalogias. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.