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24.2.08

Capitalismo e ideologia

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 23 de fevereiro de 2008.

Capitalismo e ideologia

NO MEU último artigo, chamei atenção para uma curiosa analogia entre o feudalismo e o "socialismo real", tal como este existiu, por exemplo, na União Soviética. No modo de produção feudal, era fundamental para o próprio funcionamento da economia que uma única ideologia, isto é, o catolicismo, fosse compartilhada por praticamente toda a sociedade.

Por isso, as ideologias desviantes ou hostis eram perseguidas. A principal instituição que devia definir, estabelecer, divulgar e impor essa religião era, como se sabe, a Igreja.

Ora, também no modo de produção socialista, era fundamental para o próprio funcionamento da economia que uma única ideologia, isto é, o marxismo-leninismo, também acabasse por ser adotada por praticamente toda a sociedade.

Por isso, as ideologias desviantes ou hostis eram perseguidas. A principal instituição que devia definir, estabelecer, divulgar e impor essa verdadeira religião laica era, como se sabe, o Partido Comunista, por meio do Estado, que monopolizava todas as instituições de ensino e de propaganda.

Observei também que o modo de produção capitalista, ao contrário, é capaz de funcionar sem necessidade de que nenhuma ideologia particular seja compartilhada pela maior parte da sociedade. Sendo assim, ele é perfeitamente compatível com a liberdade de expressão, inclusive a liberdade de imprensa.

Pois bem, essas simples constatações -sobretudo a última- provocaram vários leitores a enviarem mensagens indignadas, principalmente ao meu e-mail e ao meu blog. Entretanto, todas me acusam de ter dito coisas que eu não disse. A indignação é, sem dúvida, pelo que eu realmente escrevi e, sem dúvida, exatamente pelo fato de ser incontestável; mas, já que não conseguiam contestá-lo, os ataques dos insatisfeitos se concentraram no que não escrevi nem penso. É o que se chama má-fé.

Acusaram-me, por exemplo, de ter dito que não há ideologia capitalista ou burguesa. Ora, penso, ao contrário, que há inúmeras ideologias burguesas. O que afirmei foi que nenhuma ideologia particular tem que ser compartilhada pela maior parte da sociedade para que a economia capitalista funcione.

Trata-se de algo evidente, que é suscetível de ser empiricamente verificado em inúmeros países capitalistas, inclusive no Brasil. Quem poderia negar que o Brasil (ou os Estados Unidos, ou a França...) é um país capitalista? Quem poderia negar que há, no Brasil (ou nesses outros países), liberdade de expressão?

Essa característica do capitalismo pode ser explicada pelo fato de que as motivações que orientam as ações dos seus agentes econômicos -em particular, dos capitalistas (por exemplo, o lucro e a ampliação do capital) e dos operários (por exemplo, o salário)- são basicamente materiais e reguladas principalmente pelo mercado impessoal, de modo que pouco importa para o funcionamento da economia que cada indivíduo tenha ideologias, filosofias, religiões, superstições, gostos, hábitos, vícios etc. diferentes de cada um dos outros indivíduos.

Segundo a famosa fórmula da "Fábula das Abelhas", de Mandeville (século 18), vícios privados (por exemplo, a cobiça) são capazes de produzir virtudes públicas (por exemplo, a prosperidade nacional).

É evidente que tal modo de pensar jamais poderia funcionar numa economia socialista planejada, em que, tendo em vista a "construção do socialismo (ou do comunismo)", torna-se necessário exaltar a virtude do altruísmo e a submissão do interesse individual ao coletivo.

Que admira, se, em tal situação, quem pensar por conta própria já esteja incorrendo no desvio do "individualismo pequeno-burguês"? Para evitá-lo, torna-se necessária a "reeducação" de todos segundo um único modelo: para isso, apela-se, por exemplo, às chamadas "revoluções culturais".

Lin Piao, um dos líderes da Revolução Cultural Chinesa, explicava que ela tinha como meta "eliminar a ideologia burguesa, estabelecer a ideologia proletária, remodelar as almas do povo, extirpar o revisionismo e consolidar e desenvolver o sistema socialista". É o totalitarismo em estado puro.

Estou longe de achar o capitalismo perfeito. Mas não se pode tentar superar os seus problemas sem, ao mesmo tempo, preservar, ampliar, universalizar e consolidar a sociedade aberta, o direito à livre expressão de pensamento, a maximização da liberdade individual, a autonomia da ciência, a autonomia da arte etc. Vimos que o marxismo-leninismo é, em princípio e de fato, incompatível com essa exigência. Resta-nos ser radicalmente reformistas.

10.2.08

Marx e o capitalismo

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 9 de janeiro de 2008:


Marx e o capitalismo

MARX CONTA, em nota de pé de página de "O Capital", que, certa vez, uma gazeta teuto-americana criticou o materialismo da sua famosa tese, segundo a qual a estrutura econômica da sociedade é a base real sobre a qual se ergue uma superestrutura jurídica e política, à qual correspondem determinadas formas de consciência social. Para os editores da gazeta, tudo isso certamente estava correto para o mundo contemporâneo, onde dominava o interesse material, mas não para a Idade Média, em que dominava o catolicismo, nem para Atenas ou Roma, onde dominava a política. A resposta de Marx foi que "a Idade Média não podia viver do catolicismo, nem o mundo antigo, da política. Ao contrário, a forma e o modo pelos quais ganhavam a vida é que explica por que ali a política e aqui o catolicismo desempenhavam o papel principal".

Ninguém ignora a importância do catolicismo para o feudalismo, que era o modo de produção dominante na Idade Média. Como diz o historiador Jacques Le Goff, em "O Deus da Idade Média" (ed. Civilização Brasileira), publicado no Brasil no ano passado, "no mundo feudal, nada de importante se passa sem que seja relacionado a Deus. Deus é ao mesmo tempo o ponto mais alto e o fiador desse sistema. É o senhor dos senhores. [...] O regime feudal e a Igreja eram de tal forma ligados que não era possível destruir um sem pelo menos abalar o outro".

Como se sabe, o regime feudal era o modo de produção dominante na Europa, antes do capitalismo. Curiosamente, se pensarmos agora no modo de produção que pretendia superar o capitalismo, que era o socialismo (que, segundo os marxistas-leninistas, era a primeira etapa, de transição, para o comunismo), veremos que, onde ele tentou existir realmente, como na União Soviética, nos países do Leste Europeu etc., o papel da ideologia marxista-leninista não era menor do que o da religião católica havia sido durante a era do feudalismo.

É verdade que, no socialismo, a política também teve um papel importantíssimo, não menor do que o que tivera no mundo antigo; mas, de qualquer modo, a história mostrou que aquilo que Le Goff diz da articulação entre o feudalismo e a Igreja - que eram de tal forma ligados que não seria possível destruir um sem pelo menos abalar o outro - pode ser dito da articulação entre o socialismo real e o partido marxista-leninista. Assim, por exemplo, dado que, no socialismo, as atividades econômicas não seriam mais realizadas tendo em vista a subsistência ou o lucro, era necessário que o partido - como diz uma enciclopédia publicada pelo Instituto Bibliográfico da extinta República Democrática Alemã - orientasse a criação da "unidade moral e política do povo", de modo que o trabalho se transformasse, "de mero meio de subsistência a um assunto de honra". Assim também, um dos líderes da Revolução Cultural chinesa, Lin Piao, explica que ela tinha como meta “eliminar a ideologia burguesa, estabelecer a ideologia proletária, remodelar as almas do povo, extirpar o revisionismo e consolidar e desenvolver o sistema socialista”. Todas essas coisas eram no fundo uma só.

Em semelhante regime, a intolerância em relação a heresias - ideologias alternativas, "desvios", "revisionismos" etc. - não é meramente acidental. A repressão a elas não se reduz - como se poderia supor - a um mero estratagema político, usado por determinado partido ou comitê central, ou líder (como não pensar em Stalin?) para racionalizar a prática de perseguir e eliminar os dissidentes. Ela provém da necessidade estrutural de manter a unidade ideológica indispensável para o funcionamento da própria base econômica.

Já o capitalismo funciona independentemente das idéias, concepções, religiões, atitudes, isto é, das ideologias, dos operários, capitalistas, técnicos, administradores ou consumidores que o fazem funcionar. Ainda que cada indivíduo pense e aja de uma maneira diferente de todos os outros, o capitalismo é capaz de prosperar, desde que seja observado de modo geral um mínimo de leis e regras formais de convivência. É exatamente por isso que ele é compatível com a maximização da liberdade individual, a sociedade aberta e o reformismo.

Os editores da gazeta teuto-americana perceberam de modo invertido a situação real. É o feudalismo (e, como vimos, também o socialismo) que necessita, para o seu funcionamento, de uma ideologia particular, correspondente à sua base econômica, e que, por isso, não é capaz de tolerar ideologias alternativas. O capitalismo, porém, exatamente porque a sua base econômica opera a partir do puro interesse material, independentemente de qualquer ideologia particular, não necessita de nenhuma ideologia específica, de modo que é capaz de tolerar todas, inclusive as que lhe foram ou são hostis, como o catolicismo ou o marxismo-leninismo.