Mostrando postagens com marcador Cidade. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Cidade. Mostrar todas as postagens

7.5.08

Entrevista a Daniela Name

Dada a discussão sobre o meu artigo "O sentido da vanguarda", resolvi postar a versão integral da entrevista que dei a Daniela Name e que foi publicada, com alguns cortes, em O Globo, em 24/07/2002:



Antonio Cicero mistura cidades e palavras num mundo a se descobrir


1- "A cidade e os livros" parece ser um livro que tem mais unidade, que é mais orgânico do que "Guardar" - e aí não vai nenhum juízo de valor dos poemas. Vc concorda com isso? Por quê?

Concordo. O que ocorre é que “Guardar” foi o meu primeiro livro de poesia. Cerca de 30% dos seus poemas eram novos; os outros haviam sido escritos em diferentes épocas de minha vida. O critério que usei para selecionar cada poema foi o sentimento de que ainda hoje poderia escrevê-lo e me orgulhar de assiná-lo. Entretanto, o fato é que só os 30% novos haviam sido feitos para integrar um livro. Já os poemas de “A cidade e os livros” foram feitos nos últimos quatro anos, e, com uma ou outra exceção, feitos para integrar esse livro.

2- Um dos aspectos mais interessantes do livro - e o Wisnik o destaca lindamente na orelha - é a fusão que você faz entre os mitos clássicos (Prometeu, Ícaro, Narciso) e a vida de todo dia, das ruas cariocas, da praia, das angústias presentes. Como fazer esta mistura? Como lidar com todo este patrimônio clássico, que é berço da nossa palavra, nosso teatro e nossa filosofia de um jeito que transmita frescor e uma certa autenticidade?

Para mim, a literatura clássica constitui grande parte das idéias e do vocabulário com os quais pensamos e imaginamos o mundo em que vivemos. Por direito, o mundo clássico pertence aos brasileiros, assim como nos pertence a língua portuguesa. Como diz Ezra Pound, “o que bem amas é tua herança verdadeira / o que bem amas não te será arrancado”. A grande poesia grega e latina está viva, mas está viva por tornar mais vital a minha própria vida (e a vida de todos aqueles que amam as línguas e a literatura clássicas), no século XXI.

3- O Centro do Rio e suas livrarias estão presentes em "A cidade..." em muitos poemas, inclusive na dedicatória à dona Vanna. Queria que você comentasse este aspecto labiríntico da cidade, que se confunde com o labirinto da própria construção de um texto. Falasse também do aspecto de libertação X claustrofobia que há nos labirintos de ambos os casos e de como, tantos anos depois de ter vindo para cá, vc enxerga hoje o Rio-labirinto. (nossa, que pergunta tagarela!!!)

Na verdade, eu sou carioca, do Leblon. Mas, quando criança, fora o Leblon e Ipanema, o resto da cidade era off-limits, para mim. O que descrevo no poema “A cidade e os livros” é a descoberta de que o centro da cidade – e, por extensão, todo o resto desta e das demais cidades do mundo – era um território aberto à minha exploração: que tudo isso me pertencia, por direito, assim como, por direito, me pertencia tudo o que havia sido escrito. Mas acho que os poemas do meu livro falam melhor sobre as coisas que você me pergunta do que eu poderia fazê-lo aqui.

4- Você usa soneto, decassílabo, odes, enfim, recorre a formas "clássicas" de fazer poema. Como se dá o processo de escolha da forma, que é tudo num poema? E como esta herança clássica se relaciona com a confusão e uma certa decadência contemporânea, que também aparece no livro?

Para falar a verdade, não penso que o mundo esteja em decadência, nem tenho nada contra a “confusão” contemporânea. Estou longe de pensar que o mundo seja velho ou que tudo já tenha sido dito, ou que o melhor já tenha passado. Como diz um verso de um poema desse livro, “ontem nasceu o mundo”. Mil vezes pior do que as “confusões” que observamos são as reações religiosas e políticas a elas, as tentativas de voltar atrás e de “organizar” ou “simplificar” o mundo. Essas reações incluem tanto o terrorismo dos fundamentalistas quanto a violência dos ideólogos da guerra – também religiosos – que tomaram o poder nos Estados Unidos. É essa gente terrível que, querendo reprimir a liberdade do mundo moderno, o acusa de estar em decadência.

Quanto à questão da forma, é verdade que, muitas vezes, uso formas tradicionais. Entretanto, não as idolatro. Em si, nenhum formato é melhor do que nenhum outro. Tanto a invenção de um novo formato quanto o uso de um formato tradicional se justificará ex post facto, caso o poema, estando pronto e bem realizado, retroativamente pareça tornar necessário o formato em que foi feito: embora necessário apenas para o poema individual em questão. A poesia é o que transforma o arbitrário em necessário. Gosto das formas fixas porque me estimulam. Acho o soneto conveniente principalmente tem quatorze versos de igual tamanho, o que, em geral, é muito adequado para os meus projetos líricos.

Entretanto, os formatos tradicionais são, na verdade, dispositivos dotados da propriedade de produzir determinados efeitos. A métrica dos versos, por exemplo, é um método que propicia a obtenção de certos ritmos. Assim, o decassílabo tende a ser acentuado na sexta e na décima sílabas (verso heróico), o que resulta em pentâmetros jâmbicos, ou então na quarta, na oitava e na décima sílabas (verso sáfico), o que produz dois dijambos e um jambo. Pois bem, para mim, justamente tais efeitos tornaram-se excessivamente gastos e, por isso, enjoativos. Para evitá-los, pratico freqüentemente o enjambement e uma pontuação que quebra internamente os versos. Desse modo, eles se tornam mais sujos e menos previsíveis. Assim também as rimas, quando perfeitas, são excessivamente calculáveis e restritivas. Uso, por isso, rimas assonantes. Meus sonetos são, portanto, desnaturados.

Contudo, quero ressaltar que a minha intenção, ao desnaturar os sonetos, não é conspurcar o seu formato. Longe disso: desnaturo-os somente na medida em que essa é a única maneira pela qual torno interessante, para mim, escrevê-los. Faço uso dos sonetos porque, ao contrário tanto dos que os idolatram quanto dos que os vilipendiam, não os tenho como fetiches. Sou justamente contra a associação automática de qualquer soneto, ou de qualquer forma dada, a uma postura determinada: tradicionalista ou vanguardista. Todo o repertório formal e lingüístico já dado está disponível a meu uso e nenhum preconceito me obrigará a abrir mão do direito de fazê-lo, exatamente como não abro mão do direito de inventar novas palavras ou formas, se isso me parecer necessário.

5- Ainda sobre esta questão formal, "Guardar" trazia vários poemas que viraram letras de música. Isto também está acontecendo/vai acontecer com alguns versos de "A cidade..."? Você me contou que os primeiros poemas foram musicados por Marina sem a sua autorização. Mas hoje, como isso se dá?

Não escrevi esses poemas com a pretensão de que fossem musicados. Tenho a impressão de que a maior parte deles não seriam facilmente musicáveis, isto é, não ficariam bem numa canção. Isso não impede que um ou outro possa sê-lo. Alguns poemas de “Guardar” foram musicados depois de publicado o livro. Na verdade, um trecho do poema “Don’Ana” e o poema “Francisca” são recitados à maneira de um rap, no disco novo da Marina.

6- No livro, há Citera e Narciso, mas também personagens como Don'Ana e
Francisca. Como esta memória pessoal, no primeiro caso, e um certo ar de
crônica, no segundo, invadem o poema?


Don’Ana foi personagem da minha infância e Francisca, da vida inteira. Eu quis “guardá-las”, no sentido em que uso essa palavra no poema “Guardar”. Mas não sei explicar exatamente por que é que uma coisa entra num poema e outra não.

7- A filosofia de um lado, a poesia de outro. Duas vertentes clássicas quase opostas. Às vezes, pinta em vc uma sensação esquizofrênica? (risos) Foi a filosofia que retardou seu primeiro livro de poemas, já lançado numa idade madura?

Há, de fato, certa esquizofrenia na relação entre a poesia e a filosofia, tais como as concebo. São extremidades opostas do meu espírito. Lutam para se apossar do tempo que me é dado. Não me é fácil administrar esse tempo. Sou um palco microcósmico em que se representa a velha rixa entre a poesia e a filosofia. Quando me dedico a escrever sobre filosofia, não consigo escrever poemas, pois, para escrevê-los, é necessário pôr à disposição da poesia la crême de la crême do meu tempo livre: Ovídio o diz muito bem: vacuae carmina mentis opus, isto é, os poemas são obra de uma mente desocupada; e para que o creme do creme do meu tempo livre esteja disponível à poesia, não posso estar preocupado com questões filosóficas.

Embora, desde a adolescência, eu escrevesse tanto em prosa quanto em verso, nada do que fazia parecia-me estar à altura dos critérios que eu mesmo me impunha, isto é, à altura de mim mesmo. O destino de quase todos os meus escritos era o lixo, após terem passado por uma gaveta qualquer. Mesmo sabendo que, em parte, isso se devia ao medo de me definir ou limitar, isto é, ao medo de escolher uma realidade finita no lugar da potencialidade infinita, e soubesse que como diz Hegel, “quem tem demasiado desprezo pelo finito não chega a realidade alguma, permanece no abstrato e consome-se a si próprio”, eu não conseguia agir de outro modo.

Há também uma razão, digamos, conjuntural para a minha relutância. É que, no Brasil, no terreno da poesia, a vanguarda mais consistente era a concretista, que, no seu “Plano-Piloto”, havia dado por encerrado o “ciclo histórico do verso”. Ora, por um lado, ideológica e intuitivamente, eu queria ver o mundo com olhos novos e tinha horror à mistificação conservadora dos gêneros e das formas tradicionais, de modo que me identificava com a vanguarda na vontade de fazer tabula rasa dos preconceitos e das convenções; por outro lado, pelo feitio da minha sensibilidade, eu preferia e ainda prefiro a poesia discursiva e, em particular, a poesia feita em versos. Por essas razões, não me identificava totalmente nem com os concretistas (embora admirasse então e admire ainda a primeira geração da poesia concreta, isto é, Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignattari) nem com os seus inimigos. Havia também, é claro, a poesia marginal, que tendia a confundir poesia e vida; mas essa jamais me interessou, pois, para mim, era claro que a poesia não era vida, mas escritura, isto é, produção de formas. Tal isolamento no que diz respeito às tendências dominantes da poesia brasileira tornava-me ainda mais recalcitrante quanto a publicar.

Esse quadro começou a mudar a partir do momento em que minha irmã, Marina, pôs música em alguns poemas meus. Tendo sido musicado, um poema se transformava na letra de uma canção; ora, como eu sempre pensara em ser escritor, mas nunca em ser compositor, meus critérios eram literários e não se aplicavam imediatamente a canções. Esse fato me ajudou a contornar o meu superego. Além disso, como as canções não eram somente minhas, mas também da Marina, acontecia que, quando me dava por mim, elas já tinham sido cantadas perante outras pessoas, gravadas etc. É verdade que, como as minhas letras eram, de certo modo, publicadas nas canções dos discos, isso me aliviou a angústia de não publicar um livro de poemas: o que me permitiu demorar ainda mais um pouco para publicar... Mas, por outro lado, eu tinha, por assim dizer, perdido o cabaço. A partir daí, comecei a publicar em periódicos, e o futuro livro me apareceu no horizonte das coisas realmente exequíveis.

Hoje penso que, independentemente da música, eu devia ter exercido menos autocensura e publicado mais poemas mais cedo. Dei-me conta de que, enquanto a gente não publica, tende a sempre reescrever as mesmas peças. Entre outras coisas, o poema “Guardar” exprime essa percepção. No entanto, eu detestaria que alguém tivesse recolhido os textos que joguei fora, e jamais permitiria que algo que eu mesmo não tivesse destinado à publicação fosse publicado agora ou no futuro.

8- Em "Merde de poète", você faz graça com a poesia "visceral". Sua poesia parece estar mais ligada ao clássico e a uma linhagem do modernismo maduro brasileiro (Cabral, Drummond) do que às chamadas vanguardas. A experimentação dos anos 50 ficou datada? Ou passou a haver outras formas de se experimentar?

No Brasil, a poesia que se quer “visceral” é, de certo modo, o oposto da poesia praticada pela vanguarda mais forte, que era, ao contrário, construtivista. É da poesia “visceral” que não gosto. Gosto de poesia construída.

Acho que, de certo modo, toda poesia boa é experimental, pois ela tenta exceder os limites do que se considera possível, ela força ou explode os limites do possível. Isso não surgiu com a época moderna: toda boa poesia sempre foi assim. A partir do uso da palavra ácros pelo poeta Calímaco, chamo esse tipo de ambição de “acroísmo”.
Num sentido mais estreito, diz-se “poesia experimental” aquela que experimenta com novas formas, linguagens, veículos, suportes etc. Chamo esse exercício de poesia de “experimentalismo”. Penso, por exemplo, em Eduardo Kak, que usa a holografia em alguns trabalhos. Pois bem, creio que sempre haverá lugar para o experimentalismo. Entretanto, o que torna um poema bom não é o fato de ser experimentalista. Um poema experimentalista pode ser bom ou ruim. E, evidentemente, nem toda poesia tem que ser experimentalista.

Finalmente, chama-se de “experimental” também a poesia da vanguarda. Mas, se toda vanguarda é experimentalista, nem todo experimentalismo é vanguardista. As vanguardas foram o experimentalismo que teve a função cognitiva – já cumprida com êxito – de revelar uma coisa muito importante sobre a natureza da arte.
Independentemente das ambições e das ilusões dos seus protagonistas, o que as vanguardas efetivamente mostraram – e não o fizeram com seus manifestos, mas com seus poemas – foi o fato de que a poesia é compatível com uma infinidade de formas. É verdade que o corolário disso é que as formas tradicionais eram meramente tradicionais e não essenciais à poesia, isto é, que elas têm origem na convenção e não na natureza. Ao revelar esse fato, as vanguardas relativizaram essas formas; mas relativizar uma coisa é diferente de destrui-la. Do século XII ao século XVII, foram inventadas diversas formas de poesia escrita adequadas às línguas modernas. Do século XVII ao XIX, essas formas estiveram institucionalizadas, principalmente pelas academias. No século XIX, elas se apresentavam como “naturais” e infringi-las parecia anti-natural. As vanguardas simultaneamente abriram caminho para as infinitas possibilidades que haviam sido excluídas e mostraram que as formas “naturais” eram na verdade formas que haviam sido fetichizadas. Bastou essa revelação para se desmontar o fetiche. Uma vez feito isso, as vanguardas haviam cumprido a sua função histórica.

É importante ressaltar que o resultado realmente importante dessa história não foi nenhum progresso artístico, isto é, nenhum progresso da própria poesia, mas um progresso cognitivo. O resultado objetivo de todo o afã da vanguarda foi a aquisição de um conhecimento de caráter negativo sobre a essência da poesia. Descobriu-se que nenhuma forma é essencial à poesia. Isso significa que por princípio não se pode receitar como deve ser um poema. Pela mesma razão, não há critérios prontos para serem aplicados a cada poema que surja. É nesse ponto que nos encontramos hoje. Trata-se, evidentemente, de uma situação muito diferente tanto daquela (pré-vanguardista) em que se supunha conhecer as formas essenciais à poesia quanto daquela (vanguardista) em que ainda se buscava determinar as formas essenciais à poesia. O grande erro que alguns vanguardistas cometeram foi confundir os progressos cognitivos que obtiveram com um progresso artístico.

Outro erro não menos grave, porém, é cometido pelos inimigos da vanguarda e da modernidade que, ao ridicularizarem a confusão que acabo de apontar, entre conhecimento e arte, negam à vanguarda qualquer sentido e se recusam a reconhecer o que ela realizou do ponto de vista cognitivo. Mas não é possível voltar atrás e é preciso dizer a verdade: as vanguardas acabaram; mas acabaram, não porque não tenham dado certo, mas porque cumpriram a missão de legar ao mundo a liberdade da qual, hoje, a poesia da nossa geração se beneficia. Quanto a mim pessoalmente, alguns dos poetas mais importantes na minha formação foram vanguardistas ou ex-vanguardistas, como Carlos Drummond de Andrade.

9- Faz parte da atividade do poeta uma certa superexposição de sentimentos. Em "A cidade... " você volta a fazer declarações rasgadas e despudoradas de amor. Como é amar em público?

Na realidade, de maneira geral, faço questão de manter a diferença entre o que é público e o que é privado. Tenho horror a essa mania contemporânea de se falar em público sobre coisas íntimas.
No entanto, sou um servo da poesia. Se ela me ordena falar de amor, eu obedeço.

10 - Esta última pergunta vai além da entrevista. Vc tb é leitor de Lewis
Carroll? Sou fanática!!!


Sim. Desde criança até hoje adoro Lewis Carroll.

23.3.08

O moderno e o pré-moderno

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 22 de março:


O moderno e o pré-moderno

QUALQUER HOMEM moderno, medianamente culto, e que viva numa sociedade aberta, consideraria intolerável que lhe fosse negada a perspectiva de ascensão social, de viajar, de se mudar ou de mudar de profissão.

Naturalmente, o fato de que o homem moderno não possa admitir tal imobilidade não significa que ele seja mais feliz -no sentido de mais contente- do que o homem pré-moderno. Ao contrário: quando nem a possibilidade de mudança, nem o suicídio são concebíveis, não há alternativa senão contentar-se com o que se é e o que se tem.

Para o homem que nasceu em determinada casta, não existe a possibilidade, nem em pensamento, de mudar para outra. A casta em que nasceu faz parte do seu ser tanto quanto a família à qual pertence ou o seu próprio corpo; e é desse modo também que ele pertence à religião em que nasceu. Sua vida possui, portanto, uma estabilidade social impensável para o homem moderno. Logo, tal homem é contente, no sentido de ser livre da frustração de querer ser, ter ou saber mais do que aquilo que supõe convir a quem nasceu em sua casta.

Já o homem moderno, faustiano, não conhece limites pré-estabelecidos. Em princípio, tudo lhe é possível. E não é apenas de maneira abstrata que ele pressente as infinitas possibilidades de transformação da sua vida, mas elas lhe são mostradas constante e concretamente através do cinema, da televisão, da internet, da cidade, das vitrines, do teatro, dos jornais e revistas, dos livros etc.

Ora, sendo infinitas as suas possibilidades e finita a sua realidade, o homem moderno não pode deixar de conhecer intimamente a frustração, ao passo que mal conhece a segurança da estabilidade social ou a felicidade do contentamento.

Isso não significa necessariamente que ele inveje o homem pré-moderno. O Fernando Pessoa de "Mensagem", por exemplo, afirma a superioridade do seu espírito moderno nas palavras: "Triste de quem é feliz! / Vive porque a vida dura. / Nada na alma lhe diz / Mais que a lição da raiz / Ter por vida a sepultura".

Mas nem todos pensam assim e, para muitos dos nossos contemporâneos, são sobretudo a instabilidade e as múltiplas frustrações que pesam. De qualquer maneira, serão essas, sem dúvida, as razões pelas quais é tão forte, no mundo moderno, a nostalgia pela comunidade tradicional. As religiões prometem não só felicidade e contentamento no outro mundo, mas a estabilidade de uma solidariedade comunitária aos que renegam a sociedade moderna, tida por caótica, atéia, infernal. O fascismo e o nazismo se alimentaram em grande parte do anseio por condições de vida mais estáveis, comunitárias.

Friedrich Engels que, como Karl Marx, aplaudia a destruição pelo capitalismo das comunidades tradicionais, mas sonhava com uma espécie de síntese futura entre a sociedade e a comunidade, queixa-se, em "A Condição da Classe Trabalhadora na Inglaterra", de que, em Londres, "a multidão das ruas já tem, por si só, algo de repugnante. [...] Essas pessoas se cruzam correndo, como se nada tivessem em comum, nada a fazer juntas. [...] Essa indiferença brutal, esse isolamento insensível de cada indivíduo no seio dos seus interesses particulares são tanto mais repugnantes e ferinos quanto maior é o número de indivíduos confinados num espaço reduzido."

Mas nem sempre é tão negativamente que o homem contemporâneo se relaciona com a grande cidade. Charles Baudelaire, por exemplo (cuja relação com a grande cidade era bastante ambígua), diz que "estar fora de casa e no entanto se sentir em toda parte em casa: ver o mundo, estar no centro do mundo e continuar escondido do mundo, tais são alguns dos prazeres menores desses espíritos independentes, apaixonados, imparciais, que a linguagem só inadequadamente consegue definir".

Felizmente o homem moderno é também capaz de se dar conta de que, mesmo se a realidade é finita, ela nunca está definida de uma vez por todas e jamais deixa de ser, de algum modo, surpreendente; e ao viajar, através da arte, do pensamento, do conhecimento, da imaginação -e das ruas, dos espaços, dos mares, dos céus- ele é capaz de conhecer incontáveis possibilidades que enriquecem a sua vida finita, tornando-a virtualmente infinita.

Proust, por exemplo, dizia que um belo rosto que passou "é como o encanto de um novo país que se nos foi revelado por um livro. Lemos seu nome, o trem vai partir. Que importa se não partimos, sabemos que existe, temos uma razão a mais para viver".

21.7.07

Comunidade e sociedade

Publico a seguir, com uma leve adaptação, uma seção do meu livro O mundo desde o fim:


§ 27: Gemeinschaft e Gesellschaft

Uma das mais importantes dicotomias sociológicas, estabelecida pelo sociólogo alemão Ferdinand Tönnies, é a que separa a Gemeinschaft, que podemos descrever como a comunidade fechada, e a Gesellschaft, que podemos descrever como a sociedade aberta. Doravante, usarei a palavra "sociedade" no lugar de Gesellschaft e "comunidade" no lugar de Gemeinschaft. Como se sabe, esta última consiste na associação em que se encontra uma espécie de "vontade natural", baseada numa articulação orgânica de seus membros. Tönnies dizia que na comunidade tende a predominar o sentimento de co-pertinência (Zusammengehörigkeitsgefühl), na base de uma concordância espontânea de pontos de vista, interesses e finalidades. Na sociedade, por outro lado, predomina a "vontade racional" ou o cálculo, baseado na mera agregação mecânica de seus membros. Entre os partícipes da sociedade, tendem a generalizar-se as relações competitivas ou contratuais, cada qual mantendo, à parte determinadas convenções explícitas, os seus próprio pontos de vista, interesses e finalidades. É costumário contrastar-se o individualismo típico da sociedade à solidariedade típica da comunidade. Tönnies não conseguia esconder sua simpatia pela última, e o próprio surgimento da sociologia pode ser entendido como uma crítica às pretensões iluministas a explicar a coletividade humana, inclusive a comunidade, a partir do contrato social, isto é, de uma categoria própria à sociedade, quando se supunha que na verdade esta deve ser tomada como derivada em relação àquela.


Tanto Max Weber em A Cidade quanto Marx e Engels em A Ideologia Alemã mostram que mesmo a cidade medieval já surge como uma espécie de sociedade. Pode dizer-se que a cidade é o berço da sociedade e, conseqüentemente, do declínio da comunidade. Se a grande família é o arquétipo da comunidade, a grande cidade é o arquétipo da sociedade. Conhece-se não só a nostalgia da comunidade do passado, mas também a nostalgia da comunidade do futuro, como a de Aragon:

“Ici j'ai tant rêvé marchant de l'avenir
Qu'il me semblait parfois de lui me souvenir.”
“[Aqui tanto sonhei, andando, com o futuro que parecia às vezes dele me lembrar]”

Não é à toa que a palavra "comunismo" é cognata de "comunidade". Esquemáticamente, a história é concebida por Marx e Engels como uma passagem da comunidade primitiva para a sociedade de classes e desta para a síntese comunista, que é a restauração da comunidade sobre a base material proporcionada pela sociedade. O horror ao individualismo burguês (a palavra vem de burgo, cidade) é o mesmo tanto em quem é nostálgico do passado quanto em quem é nostálgico do futuro. Na verdade, o verdadeiro objeto da nostalgia de ambos é a grande família.


Pode portanto dizer-se que é impossível apreciar a grande cidade sem apreciar ao menos algumas das qualidades associadas à sociedade, entre as quais o individualismo, as relações contratuais e impessoais, o grande mercado, o descaso pela tradição, a valorização das novidades, a secularidade, o cálculo etc. Para Tönnies, todos os valores geralmente tidos como positivos, tais como amor, lealdade, honra, amizade etc. são emanações da comunidade, que é a comunidade fechada. É sem dúvida isso que explica a ambivalência dos sentimentos dos admiradores das grandes cidades. Baudelaire é o protótipo deles quando, a propósito das gravuras de Méryon, fala da poesia e da solenidade natural de uma grande capital:

“As majestades da pedra acumulada, os campanários a apontar os dedos para o céu, os obeliscos da indústria a vomitar contra o firmamento suas coalições de fumaça, os prodigiosos andaimes dos monumentos em restauração, a aplicar sobre o corpo sólido da arquitetura sua arquitetura efêmera de uma beleza aracnídea e paradoxal, o céu brumoso, carregado de cólera e rancor, a profundidade das perspectivas aumentada pela lembrança dos dramas que contêm, nenhum dos elementos complexos de que se compõe o doloroso e glorioso décor da civilização é por elas esquecido”. [BAUDELAIRE, Ch. Oeuvres completes. Paris: Laffont, 1980, p.779.]

Se substituirmos os campanários por arranha-céus, poderemos pensar em Nova York ou São Paulo, no lugar de Paris. A majestade não é diminuida pela fumaça nem a solidez pela efemeridade nem o céu pela bruma carregada de cólera e rancor nem a glória pela dor: ao contrário, a profundidade das perspectivas é aumentada pela lembrança dos dramas que contém. Anuncia-se aqui a estética -- dramática e brumosa -- do sublime e do terrífico urbano, que se prolongaria até passar pelos Blade Runners de nossos dias.

Em A Condição da Classe Trabalhadora na Inglaterra, Engels diz sobre Londres:


“A multidão das ruas já tem, por si só, algo de repugnante, que revolta a natureza humana. Essas centenas de milhares de pessoas, de todas as condições e de todas as classes, que se apertam e se empurram, não são todas elas seres humanos, possuindo as mesmas qualidades e capacidades e o mesmo interesse na busca da felicidade? E não devem finalmente buscar essa felicidade pelos mesmos meios e procedimentos? E no entanto essas pessoas se cruzam correndo, como se nada tivessem em comum, nada a fazer juntas; e no entanto a única convenção entre elas é o acordo tácito segundo o qual cada um mantém a sua direita na calçada, afim de que as duas correntes de multidão que se cruzam não se empatem mutuamente; e no entanto, não vem à mente de ninguém conceder ao outro ao menos um olhar. Essa indiferença brutal, esse isolamento insensível de cada indivíduo no seio de seus interesses particulares são tanto mais repugnantes e ferinos quanto maior é o número de indivíduos confinados num espaço reduzido. E mesmo se sabemos que esse isolamento do indivíduo, esse egoísmo estreito são em toda parte o princípio fundamental da sociedade atual, eles não se manifestam em nenhum lugar com uma impudência, uma segurança tão totais quanto aqui, precisamente, na multidão da grande cidade. A desagregação da humanidade em mônadas, cada uma das quais tem um princípio de vida particular, essa atomização do mundo é aqui levada ao extremo”. [ENGELS, F. "Die Lage der arbeitenden Klasse in England". In: INSTITUT FÜR MARXISMUS-LENINISMUS BEIM ZK DER SED (Org.). Marx Engels Werke. Vol.2. Berlin: Dietz, 1956, p.257]

Benjamin, que cita esse trecho, comenta que para Engels, vindo “de uma Alemanha provinciana, onde sem dúvida jamais conheceu a tentação de se perder numa onda humana”, [BENJAMIN, W. Charles Baudelaire. Paris: Payot, 1982.
faltava o savoir-faire e a nonchalance do flâneur. De qualquer maneira, a atitude de Engels lembra a de Disraeli em Sybil, que dizia que

“não há comunidade na Inglaterra; há agregação, mas agregação em circunstâncias que a tornam um princípio de dissociação, mais que de associação... É comunidade de propósito que constitui a sociedade... Sem isso, os homens podem ser trazidos à contigüidade mas continuam praticamente isolados. Nas grandes cidades, os homens são reunidos pelo desejo de ganho. No que toca a fazer fortunas, não se encontram em estado de cooperação, mas de isolamento; quanto a tudo o mais, pouco se importam com seus vizinhos. O Cristianismo nos ensina a amar nossos vizinhos como a nós mesmos; a sociedade moderna não reconhece vizinhos”. [Cit. p. NISBET, R. The Sociological Tradition. London: Heinemann, 1970, p. 52]

Não há comunidade na Inglaterra: não há comunidade na cidade. Voltando a Engels, é curioso que todas as suas restrições à metrópole digam respeito a pontos que um cosmopolita pode perfeitamente tomar como positivos. Na grande cidade reúnem-se, indiscriminadamente, pessoas de todas as condições e classes sociais? Mas, segundo Baudelaire, a paixão e a profissão do parfait flâneur é épouser la foule: "O amante da vida universal entra na multidão como num imenso reservatório de eletricidade". [BAUDELAIRE, Ch. Op. cit., p. 795]


As pessoas agem como se nada tivessem em comum, como se nada tivessem a fazer juntas? Mas é porque se livraram da tirania das expectativas e imposições de parentesco ou vizinhança. A simples propinqüidade física não lhes impondo mais intimidades não-eletivas, inevitáveis na sociedade, as pessoas são ao menos formalmente livres para escolher trabalhos, lazeres, amigos e amantes segundo vocação ou inclinação. Além disso, um dos prazeres da vida é justamente -- citando novamente Baudelaire -- o de estar no meio da multidão, sem nada a fazer:

“Estar fora de casa e no entanto se sentir em toda parte em casa: ver o mundo, estar no centro do mundo e continuar escondido do mundo, tais são alguns dos prazeres menores desses espíritos independentes, apaixonados, imparciais, que a linguagem só inadequadamente consegue definir”. [Ibid.]

Cada um cuida isolada e egoisticamente do seu próprio interesse? Mas Adam Smith mostrou que é assim que funciona a engrenagem econômica da sociedade, e o hedonista sabe que, desse modo, produtos e prazeres (e carências e dores) se diversificam ad infinitum:

Vois sur ces canaux
Dormir ces vaisseaux
Dont l'humeur est vagabonde;
C'est pour assouvir
Ton moindre désir
Qu'ils viennent du bout du monde
”.

[“Vê nesses canais
Dormirem esses barcos
Cujo humor é vagabundo;
É por saciar
Teu mínimo desejo
Que vêm do fim do mundo.”]

Por falar nisso, a tese de Adam Smith é de modo geral entendida apenas como uma defesa da economia capitalista liberal. É claro que ela é isso mas, ao mostrar que o mercado basicamente dispensa a intervenção humana consciente, de modo que, segundo a expressão de Mandeville, vícios privados são compatíveis com benefícios públicos, ela também abre espaço para um individualismo radical. Pela primeira vez na história, não é possível invocar o bem comum para impor uniformidade comportamental ou ideológica. Para ser consistente, o laissez-faire deve estender-se também ao que os marxistas chamam de "superestrutura". É esse núcleo absolutamente anti-comunitário e quase anárquico do liberalismo que permite realizar a democracia liberal. Quanto maior a diversidade dos comportamentos e das idéias, mais se diversificam as demandas e as ofertas. Por isso estavam errados os discursos freudianos marxistas, como o de Reich ou de Cooper ou de Lang ou de Mitchell ou de grande parte do Woman's Lib dos anos 60, que julgavam, por exemplo, que entre as condições para a reprodução do capitalismo encontrava-se a compulsoriedade da família monogâmica. Não é verdade. Provou-o a prosperidade dos bairros gays de San Francisco, na época pré-aids. À son insu, Adam Smith permite-nos portanto explicar por que a repressão sexual se liga necessariamente às comunidades, não necessariamente às sociedades e, sobretudo, não às formas supremas de sociedades, que são as megalópoles.


Engels se queixava de que a única convenção entre as pessoas na cidade era o acordo tácito segundo o qual cada um mantinha a sua direita na calçada, afim de que as duas correntes de multidão que se cruzavam não se empatassem mutuamente. Mas precisamente na exclusividade dessa convenção se encontra o auge da civilização. Os regulamentos de trânsito consistem em convenções sistemáticas cuja função é compatibilizar formalmente a liberdade de locomoção de todas as pessoas, através da contenção da locomoção individual no interior dos limites de sua possível universalização. Trata-se da aplicação direta do princípio universal do direito à esfera da locomoção no espaço público. Todas as leis legítimas são baseadas nesse modelo.

Mas creio que já está claro o tipo de unholy alliance que se formou contra a sociedade aberta e moderna. Enquanto os apologistas do ancien régime tentavam desmoralizar não só a Revolução Francesa mas todo liberalismo, os revolucionários garantiam que, o ancien régime já tendo sido derrotado, a luta agora não era mais pela defesa do direito enquanto liberdade mas contra ele, na medida em que ele representava o triunfo do individualismo, inimigo do comunismo. O inimigo principal do revolucionário não eram mais as classes tradicionais e o caráter fechado e particular das antigas instituições e concepções do mundo. A concepção contra a qual ele lutava e que, em aliança com as classes tradicionais, buscava desmoralizar, era a da sociedade aberta que, antes mesmo de ser totalmente explicitada já era considerada "superada". O resultado é que, longe de experimentar as últimas consequências libertárias da abertura da sociedade, o mundo começou a sofrer uma restauração aristocratizante e religiosa da qual ainda hoje não se libertou.

"Há", diz com razão o historiador Arno Mayer,


“uma clara tendência a subestimar e a desvalorizar a capacidade de resistência das velhas forças e das velhas idéias, e sua habilidade para assimilar, atrazar, neutralisar e subjugar a modernização capitalista, inclusive a industrialização”. [MAYER, A. La Persistance de l'ancien regime. Paris: Flammarion, 1983, p. 12]

Assim, virou senso comum a crença de que a modernidade e a razão são "totalitárias" e de que já foram longe demais.


Fala-se por exemplo do caráter destrutivo da razão. O nosso tempo, em consequência de sua racionalidade exagerada, teria visto a destruição ou a morte do mito, da religião, da moral, da arte em geral e da pintura em particular, dos cânones etc. Que se quer dizer com isso? No que toca a religião, terão as igrejas sido incendiadas ou transformadas em museus, os padres executados e as freiras violentadas? Em alguns países coisas semelhantes de fato ocorreram. Mas nesses casos, diríamos sem dúvida que as pessoas, os partidos ou Estados que assim agiram o fizeram antes contra a razão -- por fanatismo religioso ou político -- do que em virtude de sua racionalidade. De maneira geral porém, nos países em que se costuma acusar a razão de ter sido mais destrutiva, porque mais presente -- na Europa Ocidental e nos Estados Unidos -- não tem havido perseguição significativa à religião. Ao contrário, pode dizer-se que todas as religiões têm conhecido uma liberdade exemplar. Nenhuma religião positiva devendo ser privilegiada pelo Estado laico, todas (como também a ausência de religião) são -- ou melhor, deveriam ser -- igualmente toleradas. Por que, então, a retórica sobre a destruição da religião? Porque no fundo o que se lamenta é justamente a liberdade indiscriminada das religiões. O que se lamenta é a perda do privilégio de determinada ou determinadas religiões em relação às demais e à irreligiosidade ou ao ateísmo. O que se lamenta, em outras palavras, não é que a religião esteja sendo destruída pela razão mas que determinadas religiões, bem como as heresias, a irreligiosidade, o ateísmo e os ateus, não estejam sendo destruídos ou perseguidos pelo Estado laicizado.

Mutatis mutandis, o que acabo de afirmar sobre a religião pode ser repetido sobre os demais itens culturais que se supõe estarem sendo destruídos pelo mundo moderno. No que toca à moral, por exemplo, racionalmente ninguém pode ser impedido de ter os princípios ou valores que queira, nem de se orientar ou de se comportar de acordo com eles, exceto na medida em que impeçam outros de desfrutarem da mesma liberdade. Racionalmente, o Estado não pode favorecer este ou aquele preceito, este ou aquele valor, sobre outros preceitos ou valores positivos, reais ou possíveis, que o contradigam. Assim, no Estado que se pretende racional, cada qual pode ter os valores morais que bem entender -- mesmo que inteiramente contrários aos da "maioria" -- desde que não firam as condições mínimas de possibilidade de haver sociedade. A bem da verdade é preciso dizer que os Estados positivos estão ainda longe de serem totalmente racionais nesse sentido. No entanto, eles já realizaram um grande progresso na direção da racionalidade, em comparação com os Estados reconhecidamente pré-modernos. De qualquer maneira, é evidente que quando alguém diz que a razão trouxe a destruição da moral, o que quer dizer é que os seus pontos de vista no que toca à moral deveriam ser defendidos contra os pontos de vista dos outros. O que está pedindo portanto é a destruição ou o aniquilamento dos princípios alheios.


Da mesma forma, fala-se muito da destruição ou da morte da arte. Os próprios artistas falam assim. Supõe-se obscuramente que os vírus da modernidade -- ou quem sabe simplesmente as forças do mercado -- estaria levando os artistas a aniquilarem a arte. No entanto, ninguém está destruindo as pinturas ou esculturas ou queimando os livros ou matando os artistas. Ao contrário, nunca houve tantos museus, galerias, escolas de arte, livros de arte, filmes sobre arte e artistas, conferências etc. Quem quer pintar, pinta: e mais gente do que nunca o faz. Quem quer pintar segundo técnicas tradicionais -- de qualquer tradição que queira, desde a têmpera medieval até pintura acrílica -- o faz; e nunca tantas técnicas de tantas tradições estiveram disponíveis a tanta gente, sem contar novas técnicas, que surgem todos os dias. Tudo é possível hoje em pintura. Os demais gêneros artísticos tradicionais não se encontram em situação diferente. Além disso, nada do que prentenda ser expressão artística é hoje descartado sumariamente. Tudo merece atenção, discussão, exposição. Por que então dizer que a arte foi ou está sendo destruida pela modernidade? Porque as formas e os gêneros tradicionais de se fazer arte não detêm mais monopólio algum; em outras palavras, porque as formas alternativas de se fazer arte não são mais perseguidas, proibidas ou destruídas. É isso que se lamenta.


CICERO, A. O mundo desde o fim. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995, p.151-166.