O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 1 de novembro:
Sobre o "Roubo da História"
Livro de Jack Goody desfaz confusões entre o Ocidente e a modernidade
NOS SÉCULOS 19 e 20, a esmagadora superioridade científica, tecnológica e econômica da Europa e dos Estados Unidos sobre o resto do mundo (com exceção, no século 20, do Japão) intrigou inúmeros cientistas sociais. O sociólogo Max Weber, por exemplo, perguntava-se: "Que encadeamento de circunstâncias levou a que precisamente no terreno do Ocidente, e somente aqui, tenham surgido fenômenos culturais que se desenvolvem numa direção -pelo menos é o que gostamos de pensar- de significado e validade universais?".
Trata-se da questão da originalidade do Ocidente. Não é apenas que o Ocidente seja considerado diferente, mas que a sua diferença, a sua singularidade, pareça se encontrar precisamente no seu caráter universal. Entre outros, Karl Marx já havia enfrentado essa questão antes de Weber e, ainda hoje, ela continua a instigar inúmeros cientistas sociais.
Em livro recente publicado este ano no Brasil, "O Roubo da História: Como os Europeus se Apropriaram das Idéias e Invenções do Oriente" (editora Contexto), o antropólogo Jack Goody procura mostrar o caráter em última análise etnocêntrico das respostas que têm sido propostas por praticamente todos esses estudiosos.
Reconhecendo que o Ocidente tem ostentado uma inegável superioridade científica, tecnológica e econômica sobre o resto do mundo, Goody chama atenção, entretanto, para o fato de que essa vantagem é relativamente recente, sendo discutível que tenha ocorrido antes do século 17 ou mesmo antes da Revolução Industrial. Assim, por exemplo, desde o início da Idade Média na Europa até o século 16 ou 17, a China esteve à frente do Ocidente, no que diz respeito à tecnologia e à economia. Basta lembrar que foi do Oriente que vieram as inovações que Francis Bacon, no século 16, considerava centrais para a sociedade moderna, isto é, a bússola, o papel, a pólvora, a prensa, a manufatura e mesmo a industrialização da seda e dos tecidos de algodão.
Ademais, hoje em dia, a ciência, a tecnologia e a economia do Japão, dos "tigres asiáticos", da China e da Índia talvez estejam perto de, novamente, retomar a hegemonia mundial. O etnocentrismo dos estudiosos ocidentais está em projetar no passado da Europa a atual superioridade ocidental nas esferas mencionadas, de modo que essa superioridade -que, considerando-se a história como um todo, não passa de conjuntural- pareça pertencer essencialmente à cultura ocidental.
Tal é o resultado, por exemplo, do esquema conceitual marxista segundo o qual, na Europa, foi a dissolução do escravagismo antigo que produziu as condições necessárias para o estabelecimento do feudalismo medieval, e a dissolução deste que produziu as condições necessárias para o surgimento do capitalismo e da modernidade.
Segundo esse esquema, onde não se encontrem tais condições, o capitalismo não surge espontaneamente. É assim que se pretende explicar por que a Ásia não teria conhecido o capitalismo, antes de ser presa do colonialismo e do imperialismo: ela teria ficado, por milênios, atolada na estagnação daquilo que Marx chamava de "modo de produção asiático". Ora, Goody argumenta convincentemente que essa estagnação mesma jamais passou de um mito.
A meu ver, o grande mérito de "O Roubo da História" é desfazer a confusão entre o Ocidente e a modernidade. Com isso, ele destrói as bases do etnocentrismo verdadeiramente inaceitável -que se encontra na base, por exemplo, da teoria do "choque de civilizações", de Samuel Huntington- que é a pretensão de que a modernidade pertença à cultura ou à "civilização" ocidental.
A modernidade não pertence a cultura nenhuma, mas surge sempre CONTRA uma cultura particular, como uma fenda, uma fissura no tecido desta. Assim, na Europa, a modernidade não surge como um desenvolvimento da cultura cristã, mas como uma crítica a esta ou a determinados componentes desta, feita por indivíduos como Copérnico, Montaigne, Bruno, Descartes etc., indivíduos que, na medida em que a criticavam, já dela se separavam, já dela se desenraizavam.
A crítica faz parte da razão que, não pertencendo a cultura particular nenhuma, está em princípio disponível a todos os seres humanos e culturas. Entendida desse modo, a modernidade não consiste numa etapa da história da Europa ou do mundo, mas numa postura crítica ante a cultura, postura que é capaz de surgir em diferentes momentos e regiões do mundo, como na Atenas de Péricles, na Índia do imperador Ashoka ou no Brasil de hoje.
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2.11.08
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