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3.12.13

Helio Jaguaribe: "Breve referência aos deuses gregos"




A importância que o Professor Helio Jaguaribe teve na minha formação intelectual é imensa. Ele era um dos grandes amigos do meu pai, Ewaldo Correia Lima. Quando fiz quinze anos, meu pai foi trabalhar no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), situado em Washington DC, para onde toda nossa família se mudou. O Professor Helio, nessa época, lecionava na Universidade de Harvard, em Cambridge, Massachussets. Corria a fama de que era tal o brilhantismo de suas aulas que lhes acontecia serem, de vez em quando, interrompidas pelos aplausos dos estudantes entusiasmados: aplausos que ele acabou por proibir, por julgar que prejudicavam o clima de distanciamento intelectual mais propício às atividades acadêmicas.

Pois bem, nessa época, de vez em quando o Professor Helio nos visitava em Washington, e eu era um ouvinte deslumbrado das conversas dele com meu pai. Já tive em minha vida vários excelentes professores, tanto no Brasil quanto no exterior, mas jamais conheci alguém cujo discurso fosse tão fecundamente luminoso quanto o do Professor Helio Jaguaribe. Faço agora questão de lhe agradecer publicamente, pois foi a partir de suas palavras que descobri um dos maiores prazeres da minha vida, que é o de estudar filosofia.


Agradeço-lhe também por uma razão pontual. É que, a meu pedido, o Professor Helio Jaguaribe concedeu-me autorização para aqui postar o seguinte, belíssimo texto de sua autoria:




BREVE REFERÊNCIA AOS DEUSES GREGOS

 Como o poeta Hölderlin (1770-1843), quase acredito na existência dos deuses gregos.  Por quê?  Qual a causa desse profundo fascínio?  Por que um brasileiro, escrevendo estas linhas em Petrópolis, nos albores do séculos XXI, experimenta essa profunda atração por Pallas Athenea e seus irmãos olímpicos, pelos Titans, pelas Musas, pelas Erinyas e pelas Moiras?
Questões desse tipo envolvem muitas dimensões.  Uma primeira e principal é obviamente, a paixão pela Grécia.  Amar o mundo clássico significa, no fundamental, nele encontrar, em múltiplos sentidos, as expressões máximas do humano.  Ora o mundo clássico significa, por um lado, essa extraordinária gesta que vai dos descendentes de Deucalion a Alexandre, de Homero a Eurípides, de Thales a Aristóteles e, por outro lado, essa fabulosa mitologia que vai de Gaia e Uranus aos Olímpicos e aos deuses chtonianos.
No âmbito do amor à Grécia, destaca-se o fascínio por seus deuses.  Esse fascínio, mais uma vez, tem múltiplas causas.  Mencionaria duas como particularmente relevantes.  A causa mais imediata é o fato de os deuses gregos serem, no fundamental, expressões antropomórficas das grandes qualidades e das grandes expectativas do homem.  Assim Zeus, onipotente, representa o poder ordenador do mundo e dos homens.  Apolo é a perfeição masculina, a luminosidade e a poesia.  Atenas é a sabedoria.  Afrodite, o amor, Dionísio, o êxatase e o vinho, Heracles, a força e o heroísmo.
A segunda razão tem a ver com o que eu denominaria de ateísmo transcendente.  Para os que chegaram, filosoficamente, à convicção de que Deus não existe mas, ao mesmo tempo, acreditam em valores transcendentais – o Bem, a Justiça, a Verdade, o Belo – os deuses gregos personificam esses valores e constituem, miticamente, seus promotores e defensores.  Tenho em meu escritório um lindo busto de Atenas, a quem rendo, diariamente, o equivalente a um culto.  Não se trata, ainda que miticamente, de implorar sua proteção, porque não estão em jogo, por razões de elementar realismo, relações de causa e efeito.  Trata-se de uma invocação inspiradora, como a dos poetas que apelam para a Musa.
Para um intelectual com minhas características pessoais, freqüentar, imaginativamente, os deuses gregos, é uma forma de imprimir a minhas elucubrações uma motivação transcendental.
Trata-se de um delicioso faz-de-conta, que me leva a pretender receber o apoio dos deuses para minhas iniciativas, conferindo-lhes uma validade superior a que tenham.  É algo, por outro lado, que estreita minhas relações de identificação com a cultura clássica e com as figuras do panteon
helênico-romano, com os pré-socráticos, notadamente Heráclito e Demócrito, com a tríade Sócrates, Platão, Aristóteles, como o mundo helenístico de Epicuro e Zeno e com o mundo romano, de Cícero e César a Sêneca e Marco Aurélio.
O que é extraordinário, nos deuses clássicos é a fusão que neles se realiza entre o humano e o super-humano.  Dispõem das qualidades super-humanas requeridas para os eternos habitantes do Olimpo.  Mas se conservam profundamente humanos em suas motivações, com muitos dos defeitos do homem.  Dispondo de um corpo super-humano, não padecem de limitações como o sofrimento físico, a doença, o envelhecimento e a morte.  Tampouco estão  sujeitos à gravidade e à cronologia, deslocando-se instantaneamente no espaço e no tempo.  Mas padecem do amor e do ciúme, da inveja e da cólera e de expectativas que nem sempre logram realizar, como a paixão de Apolo por Daphne.
Os deuses gregos não prescrevem, salvo em termos muito genéricos, (basicamente contra a perfídia), uma conduta ética.  Minha pessoal preocupação ética não decorre deles nem neles se baseia.  O que deles decorre e neles se baseia é minha aspiração à excelência.  Todos os deuses gregos são personificações de excelência nas qualidades que lhes são peculiares.  Uma excelência para a qual estimulam os que protegem, como Atenas em relação a Odisseus.  Uma excelência, por outro lado, que leva alguns a não suportar a de outrem, como Apolo sacrificando Marsyas por sua superior capacidade de tocar a flauta.
Além de poderoso estímulo os deuses gregos proporcionam indispensável apoio para a compreensão do mundo clássico.  Como é sabido, o panteon helênico se transferiu aos romanos, alguns deuses conservando o mesmo nome, como Apolo, mas a maioria adquirindo nomes latinos, como Júpiter para Zeus, Diana para Ártemis, Baco para Dionísio.  Conservaram, em sua versão romana, as características que ostentavam na helênica, embora, em alguns casos, tenham experimentado certa degradação, Vênus tornando-se mais sensual que Afrodite, Marte mais militar que Ares, Baco mais grosseiro que Dionísio, Vulcano, mais artesão do que Hefaisto.
O apelo aos deuses gregos, no quotidiano de nossos dias, é uma forma amável de referir criscunstâncias superiores sem recorrer ao divino das religiões monoteístas.  Assim “dei volendi”, em lugar de se Deus quiser.  O que torna particularmente simpático, para um ateu transcendente, a referência aos deuses, notadamente tomados no plural, é o fato de dessa forma se assinalar o que supera o correntemente humano sem se incidir em mitos sobrenaturais.  Os deuses gregos são supremos entes da cultura, não objetos de fé.


JAGUARIBE, Helio. "Breve referência aos deuses gregos". In:_____. Estudos filosóficos e políticos. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2013. 

29.6.12

Entrevista ao jornal Correio da Bahia

A seguinte entrevista, que concedi a Salvatore Carrozzo, do jornal Correio da Bahia, de Salvador, foi publicada em 27 de junho:



Qual foi o seu objetivo ao fazer este livro? Qual pergunta queria responder?


A pergunta que motiva o livro é a que frequentemente me fazem: qual a diferença entre poesia e filosofia? Como penso, contra as tendências da moda, que são empreendimentos diferentes, aproveitei para não apenas falar dessa diferença, mas sobretudo para expor minhas ideias sobre a especificidade da poesia.


O brasileiro ainda liga poesia e filosofia a algo hermético?

Muita gente realmente despreza tudo o que não tem alguma utilidade prática. Pior: despreza tudo o que não dá dinheiro. Além disso, enquanto é possível fazer coisas práticas, como trabalhar, comer, transar ou ler o jornal ouvindo música, por exemplo, não é possível fazer nada disso ao mesmo tempo em que se lê um poema ou um ensaio de filosofia. Estes exigem tempo e concentração. Sendo assim, a poesia e a filosofia acabam sendo desprezadas. A ciência não é desprezada do mesmo modo somente porque é associada à tecnologia, logo, à técnica, logo, à utilidade prática.


Em um momento do livro, o senhor cita a lenda segundo a qual filósofo Tales, olhando os astros, caiu em um poço, e foi caçoado: "Pretendendo conhecer os céus, ignorava o que se encontrava aos seus pés". A filosofia tem virado muito as costas para os problemas do Brasil?

Acho mais lamentável que os brasileiros virem as costas para a filosofia. Então devemos deixar o pensamento mais ambicioso e profundo para os franceses, alemães, americanos, isto é, para os outros, limitando-nos a pensar sobre o que está aos nossos pés? Então um alemão, quando filosofa, pode perguntar-se sobre o ser, sobre o universo ou sobre os problemas da humanidade, mas nós, brasileiros, devemos nos ater aos problemas do Brasil? A Grécia antiga é hoje admirada como um dos pontos altos da história exatamente por causa de gente como Tales, que era capaz de voltar o olhar para o que se encontra muito além do chão que pisava, e não por causa dos que caçoavam de Tales.


O senhor diferencia pensar sobre o mundo e pensar o mundo. Poderia explicar melhor isso?

Em 2004, Adauto Novaes concebeu um ciclo de conferências intitulado “Poetas que pensaram o mundo”. Pareceu-me importante que ele o tivesse intitulado assim e não, como seria de esperar, “Poetas que pensaram SOBRE o mundo”. Refletindo sobre a diferença entre essas duas formulações, pareceu-me que, de fato, são os filósofos que pensam SOBRE o mundo, enquanto os poetas pensam O mundo. É como se os filósofos estivessem ACIMA, o que implica que estivessem FORA do mundo, ao pensar sobre ele. Já o pensamento dos poetas tende a se confundir com o mundo. O poeta, enquanto poeta, isto é, nos seus poemas, pensa não apenas com conceitos que pretendam abarcar o mundo, mas também com os sons, os ritmos, as imagens do próprio mundo: pensa, por isso O mundo, e não sobre o mundo.


O termo "poético" é usado para dizer algo muitas vezes pueril. "Fulano tem um olhar poético da vida", por exemplo. Isso faz parte da construção da poesia como algo supérfluo?

Creio que sim. É como se os poetas, como as crianças, não tenham caído na “real”, que é, segundo o senso comum, ver a vida com um olhar pragmático, utilitário, instrumental.


Em seu livro, o senhor fala de textos que podem, simultaneamente, ter uma contribuição original ao pensamento filosófico e ser um bom poema. Isso é raro hoje em dia?

Não é raro apenas hoje em dia. Sempre foi muito raro que um texto fosse, ao mesmo tempo e no mesmo trecho, um bom poema e uma contribuição original ao pensamento filosófico. É que aquilo que torna um texto poético bom não é o que torna um texto filosófico bom. O valor de um texto filosófico depende, por um lado, da originalidade e da capacidade das teses filosóficas que propõe de darem conta de questões lógicas, ontológicas, epistemológicas e estéticas, bem como da qualidade da argumentação com que o faz. Já o valor de um poema é função de sua capacidade de estimular o jogo de todas as nossas faculdades: inteligência, sensibilidade, emoção, sensualidade, memória etc. São coisas inteiramente diferentes.


O senhor diz, no livro, ser perfeitamente concebível um filósofo não produzir uma obra sequer em sua vida. Isso de alguma forma não corrobora a ideia do filósofo como um ser superior, que não faz parte do mundo?

Não necessariamente. Sócrates, por exemplo, era considerado filósofo porque suas ideias, mesmo não tendo sido escritas, foram discutidas e divulgadas pelos seus discípulos. Tanto ele quanto Pitágoras, outro filósofo que jamais escreveu, diziam preferir colocar suas doutrinas em seres dotados de alma (os discípulos) do que em seres sem alma (os livros). No fundo, eles achavam que, desse modo, essas doutrinas fariam mais integralmente parte do mundo.


Muitos poetas, o senhor incluído, dizem que, a rigor, o poema não serve para nada. Muito já foi declamado sobre esse assunto. Não é algo radical demais?

Não. É que o poema não precisa se justificar por nenhuma utilidade ulterior a ele mesmo. Sua leitura compensa a si própria. Nesse sentido, o poema vale por si. Isso não significa nenhum formalismo. É o poema como um todo, em que forma e conteúdo, não podem ser separados um do outro, que vale por si.


O senhor se refere muito a Carlos Drummond de Andrade no seu livro. Uma predileção especial? Podemos tratá-lo como um filósofo?

Não. Drummond não foi um filósofo. Foi o nosso maior poeta. Enquanto tal, ele não foi inferior a filósofo nenhum. A poesia é diferente, mas não é inferior nem superior à filosofia. Como eu já disse, um poema é capaz de mexer com todas as nossas faculdades: e é capaz de mexer com tudo o que sabemos, inclusive com a filosofia, a história, a geografia, a mitologia, a física que conheçamos. Um poema pode, por exemplo, falar do ser, da Grécia, de vulcões, de Zeus, de “partículas elementares” ou de “buracos negros”. Mas isso não quer dizer que ele seja uma obra de filosofia, história, geografia mitologia ou física. Ele é uma obra de poesia apenas, e isso basta.


No Brasil, a média é de pouco mais de um livro lido por ano. Isso não é muito frustrante para um escritor?

Sim; principalmente considerando que, apesar disso, nenhum governo investe maciçamente na educação.


No livro, o senhor diz que "deve-se às vanguardas do século XX a desfetichização completa de todos os recursos poéticos". Poderia explicar melhor isso?

É muito simples. Certas formas poéticas haviam sido fetichizadas, isto é, enfeitiçadas, pela tradição. Como a maior parte da poesia produzida no Ocidente moderno era metrificada e rimada, por exemplo, supunha-se que a métrica e a rima fossem intrinsecamente poéticas. Elas eram, de maneira geral, tidas como necessárias e como suficientes para a produção de um poema. Viraram fetiches. Ou seja, um texto que não possuísse métrica e rima não era normalmente tomado como um poema; e um texto que as possuísse era automaticamente tomado com um poema. Ora, as vanguardas mostraram que era possível produzir poemas sem métrica, rima ou outras características fetichizadas. Com isso, desfetichizaram tais características.


O senhor lê latim e grego? Ainda são línguas essenciais para o estudo da filosofia como foi no passado?

Tenho a impressão de que nada foi mais importante, para minha formação, do que aprender grego e latim. Nada me estimulou ou ensinou mais do que o estudo dessas línguas, tanto no que diz respeito à poesia, quanto no que diz respeito à filosofia. Mas não tenho o direito de generalizar. Há inúmeros grandes poetas e inúmeros grandes filósofos que não leem nem grego nem latim.


No ano passado, Marina Lima, sua irmã, lançou Climax, o primeiro disco sem colaborações suas. O senhor se incomodou com isso, de alguma forma?

Não me incomodou propriamente porque isso é, em parte, resultado de minha própria opção por me concentrar em escrever ensaios de filosofia e poesia para ser lida. Além disso, nossa parceria era sempre resultado de muitas conversas. Normalmente, eu ia para a casa dela, onde ela me mostrava a música que estava começando a compor e eu, a partir das conversas e do clima da música, começava a esboçar uns versos. Ora, agora Marina está morando em São Paulo e eu, no Rio, de modo que isso se tornou mais complicado. Lamento essa distância, mas tenho certeza de que ainda faremos muita coisa juntos.

11.8.07

Antonio Cicero: O segredo grego

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 11 de agosto de 2007:


O segredo grego

VINTE ANOS atrás, Martin Bernal, professor de estudos mediterrâneos e orientais na Universidade de Cornell, EUA, provocou escândalo entre estudiosos da cultura clássica ao publicar "Black Athena" ("Atena Negra"), em que defende que grande parte da cultura grega é de origem africana, em primeiro lugar, e asiática, em segundo. A África a que ele se refere é sobretudo o Egito. Uma outra tese do livro -de menor importância, mas que justifica o título- é a de que os egípcios teriam sido negróides.
Bernal não pretende que suas idéias sejam absolutamente novas. Elas correspondem, de acordo com ele, a uma revisão do que denomina o "modelo antigo" das origens gregas. Segundo, por exemplo, Heródoto, no século 5 a.C., foi com os egípcios e com os asiáticos que os gregos aprenderam os rudimentos da religião. Observe-se também a extrema reverência que Platão manifesta para com a religião e os mistérios do Egito. O "modelo antigo", comenta Bernal, dominou os estudos da Antigüidade até o fim do século 18.
Esse modelo foi rejeitado nessa época, ao se constituir a disciplina moderna dos Estudos Clássicos. Minimizou-se, então, a importância da influência egípcia e semítica sobre a Grécia. Segundo Bernal, isso se deu principalmente por razões ideológicas. "Não ficava bem que a Grécia, agora considerada o berço da Europa", diz, "tivesse sido civilizada por africanos e asiáticos, que, para a nova 'ciência racial', haviam passado a ser considerados como categoricamente inferiores".
Assim, por volta de 1840, produziu-se o "modelo ariano", segundo o qual a cultura grega teria surgido basicamente a partir das conquistas dos "arianos", vindos do norte. Considerada como absolutamente original, a cultura grega passou a ser contrastada com as culturas que a cercavam como a luz com a escuridão. Como poderia esta influenciar aquela? Lembro que foi, de fato, esse o modelo que aprendi nas aulas de história, no Brasil.
Bernal, com toda razão, afirma que, ainda que a Grécia tenha sofrido invasões de etnias indo-européias vindas do norte, isso não autorizaria a negar a influência egípcia e asiática na formação da sua cultura.
Ele está certo ao criticar o modelo ariano. Entretanto, o seu próprio "modelo antigo revisto" foi rapidamente assimilado ao "afrocentrismo", uma ideologia que, nos seus momentos mais extremos, afirma, por exemplo, que a cultura grega foi roubada da egípcia. Pois bem, longe de se dissociar de tais tolices, Bernal declara, por exemplo, que "os acadêmicos podem preferir a palavra que está na moda, "apropriação", mas a palavra "roubo" não é inteiramente inadequada em tais casos".
Bernal está errado. Apropriação não é eufemismo para roubo. Roubo é uma apropriação ilícita, em que o proprietário do objeto roubado é lesado. Por que considerar ilícitas as apropriações interculturais? Os gregos se apropriaram, por exemplo, do proto-alfabeto fenício. Não só, ao fazê-lo, não lesaram os fenícios mas, tendo transformado esse proto-alfabeto num alfabeto perfeitamente fonético, os gregos o legaram, em princípio, ao resto do mundo.
Não é possível negar nem a capacidade que a Grécia teve de se apropriar de todas as formas culturais que lhe interessaram, nem a originalidade do que foi por ela produzido a partir de tais apropriações. Essa originalidade não se deveu a "raça" nenhuma. Ainda que a Grécia continental tenha sofrido invasões de etnias indo-européias, essas se terão sem dúvida fundido a outras etnias no verdadeiro crisol étnico que era o Mediterrâneo oriental. É o que permite a Isócrates, no século 4 a.C., declarar que "são chamados gregos antes os que participam da nossa educação do que os que participam de uma raça comum".
Qual o segredo da originalidade da Grécia? Talvez Arnold Hauser tenha chegado perto de descobri-lo ao falar de Homero. Para ele, o "espírito sem lei e irreverente" dos príncipes aqueus da idade heróica deve-se ao fato de que eram piratas e saqueadores que haviam obtido uma série fulminante de vitórias sobre povos mais civilizados. Com isso, emanciparam-se da sua religião ancestral, ao mesmo tempo que desprezavam as religiões dos povos conquistados, exatamente por serem religiões de povos conquistados. Pois foi mais ou menos assim que os helenos conseguiram se conservar: unidos em torno de Homero e da língua grega, abertos ao turbilhão cultural mediterrâneo e singularmente livres, tanto de qualquer Igreja quanto de qualquer Estado central.

19.5.07

Heidegger e o latim

Como, a partir do comentário de Osrevni (17/05;2007) sobre o meu artigo “A filosofia e a língua alemã”, de 07/05/2007, dei mais algumas precisões que me parecem importantes sobre o pensamento de Heidegger a respeito do papel das traduções latinas dos conceitos filosóficos gregos, resolvi aqui publicar tanto o comentário quanto a resposta:


Osrevni disse:

É curioso, meu curso sobre o Nascimento da Tragédia de Nietzsche começou justamente com essa associação França-Roma, Alemanha-Grécia, que era moda do Idealismo alemão... mas o Heidegger, se não me falha a memória, atribui o esquecimento do ser já a muitos filósofos gregos; bom, pra isso eu precisaria dar uma olhada mais profunda.
Saravá!

17 de Maio de 2007 13:26


Antonio Cícero disse:

Caro Osrevni,

Heidegger achava que o começo do esquecimento do ser começou a acontecer na filosofia clássica de Platão e Aristóteles. Entretanto, Heidegger era extremamente ambivalente em relação a esse começo do fim. Embora falasse às vezes de decadência, ele também dizia que “apesar de tudo, essa decadência ficou nas alturas, não se afundou na baixeza” (v. Einführung in die Metaphysik. Tübingen, 1987, p.141). Ela era decadência somente em relação ao que ele considerava o momento mais alto – anterior a Sócrates – do pensamento grego. Mas foi Roma que, para ele, realizou plenamente o que havia sido apenas uma tendência do pensamento clássico. Este se teria tornado “indeterminado, vulgarizado e aguado”, segundo ele, “pela ‘tradução’ ao romano” (sic: In Grundfragen der Philosophie. Ausgewählte ‘Probleme’ der Logik’. Frankfurt am Main, 1984, p.70 e 68). Em “A origem da obra de arte”, ele diz explicitamente que “o pensamento tomou as palavras gregas sem a experiência correspondente e originária que elas diziam, sem a palavra grega. A falta de chão do pensamento ocidental começa com essa tradução” (In: “Der Ursprung des Kunstwerkes”. In: Holzwege. Frankfurt am Main, 1977, p.8.).

18 de Maio de 2007 00:13