Resposta a Maurício Tuffani
Lembro aos leitores que, em 15/05, escrevi um artigo, na Folha de São Paulo, intitulado “Irracionalismo” em que, entre outras coisas, especulo que, paradoxalmente, uma das razões para a popularidade de Heidegger entre os intelectuais franceses pós-modernistas tem a ver com o seu feroz anticartesianismo.
A partir disso, Maurício Tuffani escreveu, no mesmo jormal, um artigo afirmando, sem nenhum fundamento, que Heidegger não era sequer anticartesiano.
Em resposta, mostrei – creio que de modo claro, apesar de sucinto – que o anticartesianismo não é episódico, mas estrutural ao pensamento de Heidegger, de modo que este ficaria sem dúvida horrorizado com essa malograda tentativa de “salvá-lo” do anticartesianismo. Ademais, chamei atenção para o fato de que praticamente todos os grandes comentadores da obra de Heidegger o consideram anticartesiano. Caberia, portanto, a meu adversário refutar meus argumentos e citar vários e importantes comentadores de Heidegger que pensam o contrário (não valeriam textos em que Heidegger parece RESPEITAR Descartes, pois, como observo no mesmo artigo, “naturalmente, reconhecer alguém como seu inimigo fundamental é antes respeitá-lo do que desprezá-lo”).
Em vez disso, Tuffani escreveu um artigo intitulado “Uma ameaça maior que o dogma”. E qual seria a ameaça maior que o dogma? Segundo ele, trata-se da banalização da filosofia. Já isso está errado, é claro. O dogma é pior do que a banalização, pois, além de ser banalizado, é também esclerosado, intolerante e surdo a críticas.
Mas onde está a banalização da filosofia? “Está”, segundo Tuffani, “no apelo exagerado aos ‘ismos’ – o humanismo, o niilismo e outros – e em chavões manipuláveis ao gosto de cada intérprete”. É disso que ele me acusa. Há dois problemas nessa acusação. O primeiro é que ele não cita nenhum exemplo concreto do meu suposto afã banalizador; o segundo é que ele se esquece de que o próprio Heidegger, o filósofo que ele pretensamente quer salvar da minha banalização, escreveu uma obra chamada “Sobre o HUMANISMO” e outra chamada “O NIILISMO europeu”...
Ou será que, para Tuffani, estou banalizando Heidegger ao chamá-lo de “anticartesiano”? Creio que se eu tivesse escrito um artigo para provar que Heidegger era “anticartesiano”, isso seria, para os filósofos – embora não para os leigos – banal, uma vez que uma verdade muito repetida é banal. Contudo, o tema do meu primeiro artigo não foi esse. Só toquei nesse assunto porque minha intenção era mostrar a curiosa relação entre o anticartesianismo de Heidegger e sua popularidade entre intelectuais franceses; e, no segundo artigo, só falei do anticartesianismo exatamente porque Tuffani questionara – e, para ser sincero, penso que ele simplesmente ignorava – o fato de que Heidegger era anticartesiano.
No mais, como digo que Heidegger tentou relativizar a razão, Tuffani afirma que não notei que ele “contestara essa rotulação” (sic) no parágrafo 6 de “Ser e tempo”. Engano dele: já em “O mundo desde o fim”, de 1995 (p.96-7 da edição brasileira ou p.89 da edição portuguesa), eu ironizava a pretensão de Heidegger no § 6, dizendo:
“Negando que tenha a pretensão de efetuar uma "má relativização" (schlechte Relativierung) de pontos de vista ontológicos, Heidegger explica que tenciona levar a cabo uma "comprovação da procedência dos conceitos ontológicos fundamentais como exposição investigadora das suas 'certidões de nascimento'", tendo em vista "delimitar [a tradição ontológica] em suas possibilidades positivas"; e complementa: "e isso sempre quer dizer em seus limites". Em suma, ele pretende realizar uma boa relativização dos conceitos ontológicos -- para nós, noético-ontológicos – fundamentais”.
Quanto à atitude de Heidegger em relação a Descartes, em “A questão fundamental da filosofia”, não é verdade que, como Tuffani afirma, o “alvo” dele fosse apenas a tradição acadêmica dogmática e louvadora do cartesianismo. Heidegger diz, efetivamente, que a importância atribuída a Descartes é sinal de falta de pensamento e irresponsabilidade das universidades alemãs e, logo depois, explica:
“COM O PROPÓSITO DE DETERMINAR A POSIÇÃO REAL DE DESCARTES NA HISTÓRIA DA FILOSOFIA OCIDENTAL, NO TOCANTE ÀS QUESTÕES FUNDAMENTAIS, e ao fazê-lo, realçar o predomínio decisivo da ideia matemática do método, AFIRMO O SEGUINTE:
“1. A RADICALIDADE DA DÚVIDA DE DESCARTES E O VIGOR DA NOVA FUNDAMENTAÇÃO DA FILOSFIA E DO SABER EM GERAL É UMA APARÊNCIA E, ASSIM, FONTE DE ILUSÕES FATAIS, HOJE MUITO DIFÍCEIS DE SEREM ELIMINADAS.
“2. ESSE PRETENSO NOVO PRINCÍPIO DA FILOSOFIA MODERNA, COM DESCARTES, NÃO APENAS NÃO CONSISTE, COMO É, SOBRETUDO, O INÍCIO DE MAIS UMA DECADÊNCIA DA FILOSOFIA. DESCARTES NÃO LEVA A FILOSOFIA DE VOLTA PARA SI MESMA, PARA SEU FUNDO E SEU CHÃO, MAS A DISTANCIA MAIS AINDA DO QUESTIONAMENTO DA QUESTÃO FUNDAMENTAL” (Ser e verdade. Trad. de Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis, Ed. Vozes, 1007.
Segundo Tuffani, “Verfall” (“decadência”) não exprime, para Heidegger, qualquer avaliação negativa. Novamente, ele confunde as coisas. Segundo Heidegger, o termo “Verfall” não exprime qualquer avaliação negativa quando aplicado ao “Dasein”, isto é, ao ser humano situado no mundo. Observo, en passant, que, na verdade, é altamente questionável que palavras como “decadência”, e “inautenticidade” possam ser usadas sem carga valorativa. Como diz Adorno em Die Jargon der Eigentlichkeit (Frankfurt: Suhrkamp, 1964, p.81): “As expressões terminologicamente escolhidas não se esgotam nos seus usos que são escolhidos com liberdade subjetiva, mas – e Heidgger, o filósofo da linguagem, devia ser o primeiro a concordar – conservam como seu conteúdo objetivo as normas das quais Heidegger as separa”. De todo modo, é verdade que separá-las das suas cargas valorativas é, de fato, o que Heidegger diz PRETENDER, no livro Ser e tempo, de 1927.
Depois disso, porém, e fora desse contexto, Heidegger continuou a empregar a palavra “Verfall” – “decadência” – pejorativamente, como todo o mundo. O texto sobre Descartes como decadente é de 1933-34. Pela mesma época, em Introdução à metafísica, de 1935, por exemplo, Heidegger declara que “a decadência espiritual da terra já foi tão longe que os povos estão ameaçados de perderem a última força espiritual que lhes permite ver e avaliar enquanto tal a decadência”.
Se Tuffani não percebe a carga pejorativa do vocábulo “decadência” nesse texto, então receio que, se não no que diz respeito à terra como um todo, ao menos no que diz respeito a ele essas palavras de Heidegger foram proféticas.
Em suma, nenhuma das acusações de Tuffani contra mim tem procedência.
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12.6.10
3.5.09
Foucault e o fundacionismo
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 2 de maio:
Foucault e o fundacionismo
O RELATIVISMO e o antifundacionismo filosóficos, tão comuns em nossos dias, são frequentemente apresentados não somente como resultados de uma pretensa falência da racionalidade moderna, mas como reações libertárias ao domínio, tido como totalitário, da razão absolutista e fundacionista. Mas pode ocorrer que o relativista, tentando escapar do fundacionismo, acabe por se enredar no fundamentalismo. Um episódio da vida intelectual de Michel Foucault ilustra o que acabo de dizer.
A partir dos cursos que deu sobre a hermenêutica do sujeito, em 1981, Foucault se dedicou a investigar o que chama de "cuidado de si". Trata-se de uma postura filosófica que ele encontra na antiguidade entre, por exemplo, os filósofos estoicos e epicúrios. Para ela, a verdade não é dada ao sujeito como simples ato de conhecimento. Para conseguir acesso à verdade, o sujeito precisa se transformar – se converter –, por meio de um longo trabalho de ascese. A verdade alcançada com esse esforço retorna ao sujeito como uma iluminação que lhe proporciona a beatitude e a tranquilidade da alma. A essa relação com a verdade Foucault chama de "espiritualidade".
Segundo ele, a espiritualidade foi quase esquecida no mundo moderno. "Entrou-se na idade moderna", diz Foucault, "no dia em que se admitiu que o que dá acesso à verdade, as condições segundo as quais o sujeito pode ter acesso à verdade são o conhecimento e somente o conhecimento".
Sendo assim, a modernidade filosófica consiste na perda da espiritualidade. Ora, tanto a palavra "espiritualidade" mesma quanto o modo em que seu sentido é determinado por Foucault – como um processo que inclui ascese, conversão, transfiguração, iluminação, beatificação pela descoberta da verdade – remete-nos à religião.
Não há como não lembrar que três anos antes desses cursos, em 1978, Foucault defendia a Revolução Iraniana, liderada pelo aiatolá Khomeini, afirmando que ela representava a tentativa de "abrir na política uma dimensão espiritual". Trata-se de uma coisa, comenta ele, "de cuja possibilidade nós [os modernos] nos esquecemos desde a Renascença e as grandes crises do cristianismo: uma espiritualidade política". A Revolução Iraniana estava, segundo ele, "atravessada pelo sopro de uma religião que fala menos do além que da transfiguração deste mundo aqui".
Nesse ponto ele tem razão. Como, na mesma época, observou Maxime Rodinson, importante especialista no Islã:
"Mesmo um fundamentalismo islâmico mínimo exigiria, segundo o Alcorão, que as mãos de ladrões fossem cortadas e que a partilha da mulher na herança seja cortada pela metade. Se houver um retorno à tradição, como os religiosos querem, então será necessário chicotear aquele que beber vinho e chicotear ou lapidar a adúltera. Nada será mais perigoso que a acusação venerável: meu adversário é um inimigo de Deus".
Como é possível que Foucault tenha ignorado essa realidade, sem falar na realidade da opressão das mulheres, da censura à imprensa, da prisão de dissidentes, da execução de apóstatas e homossexuais etc., se ele declarava que seu papel intelectual era "mostrar às pessoas que elas são muito mais livres do que pensam"?
Parece-me que ele conseguia minimizar esses desrespeitos aos direitos humanos no Irã por já ter relativizado de antemão a própria verdade. Simplesmente, como ele dizia, os iranianos "não têm o mesmo regime de verdade que nós". E ele observava que o nosso regime de verdade, aliás, "é bem particular, mesmo embora se tenha tornado quase universal".
A suposição de que há diferentes "regimes de verdade" irredutíveis uns aos outros e de que o nosso regime de verdade, sendo apenas um entre outros, não tem privilégio nenhum quanto aos demais conduz a impasses teóricos jamais adequadamente enfrentados por Foucault.
Por exemplo, se não temos o direito de julgar as verdades dos iranianos porque eles têm um diferente regime de verdade, então não temos sequer o direito de afirmar que eles têm um diferente regime de verdade: principalmente se levarmos em conta que, a partir do seu próprio regime espiritual de verdade -segundo o qual o Islã é a verdade absoluta-, os iranianos jamais reconheceriam a "verdade" de que o nosso regime de verdade seja diferente do deles: ou mesmo de que existam diferentes regimes de verdade.
A verdade é que não são casuais esses tropeços práticos e teóricos de Foucault. Eles radicam no relativismo e antifundacionismo de todo o seu pensamento.
Foucault e o fundacionismo
O RELATIVISMO e o antifundacionismo filosóficos, tão comuns em nossos dias, são frequentemente apresentados não somente como resultados de uma pretensa falência da racionalidade moderna, mas como reações libertárias ao domínio, tido como totalitário, da razão absolutista e fundacionista. Mas pode ocorrer que o relativista, tentando escapar do fundacionismo, acabe por se enredar no fundamentalismo. Um episódio da vida intelectual de Michel Foucault ilustra o que acabo de dizer.
A partir dos cursos que deu sobre a hermenêutica do sujeito, em 1981, Foucault se dedicou a investigar o que chama de "cuidado de si". Trata-se de uma postura filosófica que ele encontra na antiguidade entre, por exemplo, os filósofos estoicos e epicúrios. Para ela, a verdade não é dada ao sujeito como simples ato de conhecimento. Para conseguir acesso à verdade, o sujeito precisa se transformar – se converter –, por meio de um longo trabalho de ascese. A verdade alcançada com esse esforço retorna ao sujeito como uma iluminação que lhe proporciona a beatitude e a tranquilidade da alma. A essa relação com a verdade Foucault chama de "espiritualidade".
Segundo ele, a espiritualidade foi quase esquecida no mundo moderno. "Entrou-se na idade moderna", diz Foucault, "no dia em que se admitiu que o que dá acesso à verdade, as condições segundo as quais o sujeito pode ter acesso à verdade são o conhecimento e somente o conhecimento".
Sendo assim, a modernidade filosófica consiste na perda da espiritualidade. Ora, tanto a palavra "espiritualidade" mesma quanto o modo em que seu sentido é determinado por Foucault – como um processo que inclui ascese, conversão, transfiguração, iluminação, beatificação pela descoberta da verdade – remete-nos à religião.
Não há como não lembrar que três anos antes desses cursos, em 1978, Foucault defendia a Revolução Iraniana, liderada pelo aiatolá Khomeini, afirmando que ela representava a tentativa de "abrir na política uma dimensão espiritual". Trata-se de uma coisa, comenta ele, "de cuja possibilidade nós [os modernos] nos esquecemos desde a Renascença e as grandes crises do cristianismo: uma espiritualidade política". A Revolução Iraniana estava, segundo ele, "atravessada pelo sopro de uma religião que fala menos do além que da transfiguração deste mundo aqui".
Nesse ponto ele tem razão. Como, na mesma época, observou Maxime Rodinson, importante especialista no Islã:
"Mesmo um fundamentalismo islâmico mínimo exigiria, segundo o Alcorão, que as mãos de ladrões fossem cortadas e que a partilha da mulher na herança seja cortada pela metade. Se houver um retorno à tradição, como os religiosos querem, então será necessário chicotear aquele que beber vinho e chicotear ou lapidar a adúltera. Nada será mais perigoso que a acusação venerável: meu adversário é um inimigo de Deus".
Como é possível que Foucault tenha ignorado essa realidade, sem falar na realidade da opressão das mulheres, da censura à imprensa, da prisão de dissidentes, da execução de apóstatas e homossexuais etc., se ele declarava que seu papel intelectual era "mostrar às pessoas que elas são muito mais livres do que pensam"?
Parece-me que ele conseguia minimizar esses desrespeitos aos direitos humanos no Irã por já ter relativizado de antemão a própria verdade. Simplesmente, como ele dizia, os iranianos "não têm o mesmo regime de verdade que nós". E ele observava que o nosso regime de verdade, aliás, "é bem particular, mesmo embora se tenha tornado quase universal".
A suposição de que há diferentes "regimes de verdade" irredutíveis uns aos outros e de que o nosso regime de verdade, sendo apenas um entre outros, não tem privilégio nenhum quanto aos demais conduz a impasses teóricos jamais adequadamente enfrentados por Foucault.
Por exemplo, se não temos o direito de julgar as verdades dos iranianos porque eles têm um diferente regime de verdade, então não temos sequer o direito de afirmar que eles têm um diferente regime de verdade: principalmente se levarmos em conta que, a partir do seu próprio regime espiritual de verdade -segundo o qual o Islã é a verdade absoluta-, os iranianos jamais reconheceriam a "verdade" de que o nosso regime de verdade seja diferente do deles: ou mesmo de que existam diferentes regimes de verdade.
A verdade é que não são casuais esses tropeços práticos e teóricos de Foucault. Eles radicam no relativismo e antifundacionismo de todo o seu pensamento.
22.3.09
A ética e a religião
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 21 de março.
A ética e a religião
EMBORA TALVEZ já se tenha falado até demais sobre o episódio da excomunhão da mãe que autorizou o aborto da filha de 9 anos estuprada pelo padrasto, bem como dos médicos que a fizeram abortar, quero ainda chamar atenção para uma coisa. É que a condenação quase unânime, pela opinião pública, tanto ao arcebispo que anunciou a excomunhão quanto à Igreja Católica foi de natureza moral.
Em outras palavras, considerou-se, de maneira geral, que a Igreja estava moralmente errada ao condenar esse aborto; ao dar mais importância à sobrevivência do feto do que à vida e ao bem-estar da criança de nove anos; ao excomungar a mãe, que pôs a vida e o bem-estar da filha que ama acima da vida do neto ainda nem sequer nascido, e concebido em circunstâncias traumáticas tanto para ela quanto para a filha; e ao excomungar os médicos que agiram segundo a sua ética profissional e de acordo com as leis do país. Ora, é evidente que essa condenação moral à Igreja não é de origem religiosa.
Pois bem, as religiões se consideram a fonte de toda ética. É assim que, sempre que a imprensa destaca seja um crime hediondo, seja o aumento dos índices de criminalidade, seja um episódio de corrupção de políticos, os moralistas religiosos aproveitam para se manifestar na imprensa. Em artigos ou cartas de leitores, eles apontam, como a causa da proliferação de tais acontecimentos lamentáveis, o descaso contemporâneo de grande parte da população pela religião e, consequentemente, pelos valores cristãos.
Ultimamente esse descaso tem sido associado – quando não atribuído – ao relativismo. O exemplo foi dado pelo cardeal Ratzinger que, às vésperas de se tornar o papa Bento 16, advertiu que "estamos a caminho de uma ditadura do relativismo que não reconhece coisa nenhuma como certa".
Supõe-se, assim, que uma pessoa que ache, por exemplo, que não há certo ou errado absolutos, mas que tudo depende da cultura a que cada qual pertence, relativiza, ipso facto, as regras morais e as leis que imperam na sua própria cultura, o que lhe torna mais fácil contemplar a violação dessas regras e leis.
Digamos que isso seja verdade. Dado esse "diagnóstico", o "remédio" prescrito pelos moralistas é, evidentemente, a volta às "certezas absolutas" da religião. Mas isso é impossível, pois as "certezas absolutas" das religiões caíram exatamente porque jamais foram realmente indubitáveis.
Não é possível racionalmente voltar para aquém do relativismo. O relativista cultural, por exemplo, sabe que foi por uma série de circunstâncias aleatórias que ele veio a ser, digamos, cristão; sabe, portanto, que, se tivessem sido outras as circunstâncias, ele teria sido, talvez, muçulmano ou budista. Basta-lhe saber isso para reconhecer o caráter contingente – e por isso relativo – de todas as religiões, inclusive da sua. Como, então, fingir que as "verdades" dela sejam superiores às das outras, ou às do irreligioso? É claro que ele poderia declará-las superiores exatamente por serem as suas: os outros que tenham outras verdades. Mas o que seria isso senão exatamente... relativismo?
Contudo, se não se pode voltar para aquém do relativismo, por que não ir além dele? Não será possível superar o relativismo, justamente ao levá-lo às suas últimas consequências? Não será exatamente o reconhecimento de que é possível que a verdade não esteja comigo, mas sim com o outro, o princípio de uma ética universal? Por esse princípio, obrigo-me (seja quem eu for) a respeitar a liberdade do outro (seja quem ele for) até o ponto em que a sua liberdade não tolha a minha.
Esse princípio se manifesta também na chamada "regra de ouro", que diz "não faças ao outro o que não queres que te façam". Tal regra não pertence a esta ou àquela religião positiva. Exprimindo simplesmente um procedimento racional de reciprocidade na convivência social, ela foi, por meio das mais diferentes formulações, expressa não apenas por cristãos, mas por zoroastristas, confucianistas, judeus, hinduístas, budistas, ateus etc. É desse modo que o relativismo é superado pelo reconhecimento de um princípio absoluto puramente racional e negativo.
Por um lado, a proclamação do caráter absoluto de regras pertencentes a religiões ou culturas positivas e particulares é evidentemente falsa; por outro lado, também é falsa – além de incorrer no que em lógica se chama de "autocontradição performativa" – a proclamação do caráter relativo de absolutamente todas as regras concebíveis.
A saída desse dilema é exatamente a proposição puramente racional que afirma o caráter relativo das regras positivas e particulares pertencententes a diferentes religiões ou culturas igualmente positivas e particulares. Tal proposição não pertence a nenhuma religião ou cultura positiva ou particular, logo, não é relativa nem incorre em autocontradição performativa. Ela é de natureza puramente negativa, universal e absoluta.
Voltando agora ao episódio mencionado da excomunhão, podemos dizer que é esse princípio puramente racional, negativo, universal e absoluto que, em última análise, permite-nos julgar os preceitos das religiões positivas, particulares e relativas; e que são estas que, ao mesclar regras positivas, particulares e relativas a princípios éticos racionais, universais e absolutos, acabam por promover a ilusão de que também estes últimos são relativos.
A ética e a religião
EMBORA TALVEZ já se tenha falado até demais sobre o episódio da excomunhão da mãe que autorizou o aborto da filha de 9 anos estuprada pelo padrasto, bem como dos médicos que a fizeram abortar, quero ainda chamar atenção para uma coisa. É que a condenação quase unânime, pela opinião pública, tanto ao arcebispo que anunciou a excomunhão quanto à Igreja Católica foi de natureza moral.
Em outras palavras, considerou-se, de maneira geral, que a Igreja estava moralmente errada ao condenar esse aborto; ao dar mais importância à sobrevivência do feto do que à vida e ao bem-estar da criança de nove anos; ao excomungar a mãe, que pôs a vida e o bem-estar da filha que ama acima da vida do neto ainda nem sequer nascido, e concebido em circunstâncias traumáticas tanto para ela quanto para a filha; e ao excomungar os médicos que agiram segundo a sua ética profissional e de acordo com as leis do país. Ora, é evidente que essa condenação moral à Igreja não é de origem religiosa.
Pois bem, as religiões se consideram a fonte de toda ética. É assim que, sempre que a imprensa destaca seja um crime hediondo, seja o aumento dos índices de criminalidade, seja um episódio de corrupção de políticos, os moralistas religiosos aproveitam para se manifestar na imprensa. Em artigos ou cartas de leitores, eles apontam, como a causa da proliferação de tais acontecimentos lamentáveis, o descaso contemporâneo de grande parte da população pela religião e, consequentemente, pelos valores cristãos.
Ultimamente esse descaso tem sido associado – quando não atribuído – ao relativismo. O exemplo foi dado pelo cardeal Ratzinger que, às vésperas de se tornar o papa Bento 16, advertiu que "estamos a caminho de uma ditadura do relativismo que não reconhece coisa nenhuma como certa".
Supõe-se, assim, que uma pessoa que ache, por exemplo, que não há certo ou errado absolutos, mas que tudo depende da cultura a que cada qual pertence, relativiza, ipso facto, as regras morais e as leis que imperam na sua própria cultura, o que lhe torna mais fácil contemplar a violação dessas regras e leis.
Digamos que isso seja verdade. Dado esse "diagnóstico", o "remédio" prescrito pelos moralistas é, evidentemente, a volta às "certezas absolutas" da religião. Mas isso é impossível, pois as "certezas absolutas" das religiões caíram exatamente porque jamais foram realmente indubitáveis.
Não é possível racionalmente voltar para aquém do relativismo. O relativista cultural, por exemplo, sabe que foi por uma série de circunstâncias aleatórias que ele veio a ser, digamos, cristão; sabe, portanto, que, se tivessem sido outras as circunstâncias, ele teria sido, talvez, muçulmano ou budista. Basta-lhe saber isso para reconhecer o caráter contingente – e por isso relativo – de todas as religiões, inclusive da sua. Como, então, fingir que as "verdades" dela sejam superiores às das outras, ou às do irreligioso? É claro que ele poderia declará-las superiores exatamente por serem as suas: os outros que tenham outras verdades. Mas o que seria isso senão exatamente... relativismo?
Contudo, se não se pode voltar para aquém do relativismo, por que não ir além dele? Não será possível superar o relativismo, justamente ao levá-lo às suas últimas consequências? Não será exatamente o reconhecimento de que é possível que a verdade não esteja comigo, mas sim com o outro, o princípio de uma ética universal? Por esse princípio, obrigo-me (seja quem eu for) a respeitar a liberdade do outro (seja quem ele for) até o ponto em que a sua liberdade não tolha a minha.
Esse princípio se manifesta também na chamada "regra de ouro", que diz "não faças ao outro o que não queres que te façam". Tal regra não pertence a esta ou àquela religião positiva. Exprimindo simplesmente um procedimento racional de reciprocidade na convivência social, ela foi, por meio das mais diferentes formulações, expressa não apenas por cristãos, mas por zoroastristas, confucianistas, judeus, hinduístas, budistas, ateus etc. É desse modo que o relativismo é superado pelo reconhecimento de um princípio absoluto puramente racional e negativo.
Por um lado, a proclamação do caráter absoluto de regras pertencentes a religiões ou culturas positivas e particulares é evidentemente falsa; por outro lado, também é falsa – além de incorrer no que em lógica se chama de "autocontradição performativa" – a proclamação do caráter relativo de absolutamente todas as regras concebíveis.
A saída desse dilema é exatamente a proposição puramente racional que afirma o caráter relativo das regras positivas e particulares pertencententes a diferentes religiões ou culturas igualmente positivas e particulares. Tal proposição não pertence a nenhuma religião ou cultura positiva ou particular, logo, não é relativa nem incorre em autocontradição performativa. Ela é de natureza puramente negativa, universal e absoluta.
Voltando agora ao episódio mencionado da excomunhão, podemos dizer que é esse princípio puramente racional, negativo, universal e absoluto que, em última análise, permite-nos julgar os preceitos das religiões positivas, particulares e relativas; e que são estas que, ao mesclar regras positivas, particulares e relativas a princípios éticos racionais, universais e absolutos, acabam por promover a ilusão de que também estes últimos são relativos.
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13.1.08
O falibilismo versus o relativismo
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 12 de janeiro de 2008:
O falibilismo versus o relativismo
É só no nível extremo de radicalidade analítica que todas as certezas são relativas
ALGUNS LEITORES me disseram não ter achado claro o significado da expressão "modernidade filosófica", que, no artigo passado, contrapus ao relativismo vulgar. Em outra ocasião, havia citado Kant para explicar que a modernidade surge e se mantém como a época da crítica, isto é, da razão crítica.
Criticar é separar ou distinguir. A crítica põe de um lado o que passa pelo seu crivo e de outro lado o que não passa por ele. Já que dar nome às coisas, defini-las, classificá-las etc são modos de distingui-las umas das outras, essas atividades representam manifestações da crítica. Assim, a razão crítica constitui uma condição da própria linguagem que, por sua vez, a potencializa.
A crítica distingue entre as proposições logicamente necessárias e as logicamente contingentes. As necessárias (por exemplo, "A = A") são aquelas cujo oposto é contraditório, logo, inconcebível. As contingentes (por exemplo "a Terra gira em torno do Sol") são aquelas cujo oposto é concebível.
Também a dúvida é uma manifestação da razão crítica. A dúvida metódica, que inaugura a filosofia moderna, lembra que, sendo contingente que eu – seja lá quem eu for – não esteja a delirar ou sonhar, há sempre, em última análise, a possibilidade de que eu esteja a delirar ou sonhar. Conseqüentemente, é uma verdade necessária que, em última análise, não posso ter certeza absoluta da existência ou efetividade de coisa nenhuma. Só não posso, é claro, duvidar da efetividade de mim mesmo, uma vez que, mesmo ao duvidar dela, eu a exerço. Observe-se, entretanto, que, neste contexto, "eu" não sou nenhum ser concreto, de modo que a efetividade em questão é a da própria razão crítica, de que não passo de portador.
A cláusula "em última análise", que tenho repetido, está longe de ser meramente retórica. É só no nível extremo de radicalidade analítica que todas as certezas mencionadas são relativas. No nível dos conhecimentos práticos, usamos as palavras de outro modo.
Isso é um pouco como o que ocorre com a física relativista. A dilatação do tempo, por exemplo, segundo a qual o tempo passa tanto mais lentamente quanto mais rapidamente um objeto se mova, é algo que só se observa a velocidades próximas da luz. Como tais velocidades jamais são alcançadas pelos objetos cotidianos, os efeitos da relatividade não são observáveis na vida corrente. Assim, no dia-a-dia, devemos nos comportar e falar como se o tempo fosse o mesmo para todos os objetos, mesmo sabendo que, em última análise, não é assim.
Do mesmo modo, no nível da vida corrente, considero ter certeza absoluta de estar sentado em frente ao meu computador, terminando de escrever este artigo. Digamos que o artigo estivesse um pouco atrasado e o editor do jornal me telefonasse, perguntando por ele. "Estou terminando de escrevê-lo", diria eu. Talvez ele duvidasse disso e insistisse: "Tem certeza?". Possivelmente, então, eu lhe responderia, por exemplo: "Certeza absoluta!". Com essa resposta, eu estaria sendo muito mais veraz do que se tivesse respondido, no lugar de "certeza absoluta", "certeza relativa". Por quê? Porque, nesse último caso, eu lhe daria a falsa impressão de não estar realmente a terminar o artigo.
Mas por que, então, não abandonar a "última análise" e ficar restrito ao plano das certezas práticas? Porque o reconhecimento da possibilidade de que esteja errado qualquer um dos nossos pretensos conhecimentos empíricos, bem como qualquer um dos nossos sistemas de idéias, tanto laicos quanto religiosos, é importante para, entre outras coisas, a constituição da ciência. Chamamos esse reconhecimento de "falibilismo".
Eis como, no que diz respeito ao conhecimento, se opõem a modernidade filosófica e o relativismo vulgar. Este nivela todos os pretensos conhecimentos, considerando-os como igualmente verdadeiros e/ou igualmente falsos. A modernidade filosófica, ao contrário, permite hierarquizar os conhecimentos.
A partir do falibilismo, ela determina a produção do conhecimento científico como um processo em princípio aberto à razão crítica, público, baseado em premissas imanentes, e cujos resultados são -em última análise- sujeitos a serem revistos ou refutados. A certeza que posso ter da verdade do conhecimento produzido nessas condições não é menor do que a certeza prática que tenho de estar sentado em frente ao meu computador.
Por outro lado, o falibilismo revela o caráter fictício de todo pretenso conhecimento que se subtraia à razão crítica ou à inspeção pública, que se baseie em premissas transcendentes, ou cujas doutrinas sejam impermeáveis a revisões ou refutações.
O falibilismo versus o relativismo
É só no nível extremo de radicalidade analítica que todas as certezas são relativas
ALGUNS LEITORES me disseram não ter achado claro o significado da expressão "modernidade filosófica", que, no artigo passado, contrapus ao relativismo vulgar. Em outra ocasião, havia citado Kant para explicar que a modernidade surge e se mantém como a época da crítica, isto é, da razão crítica.
Criticar é separar ou distinguir. A crítica põe de um lado o que passa pelo seu crivo e de outro lado o que não passa por ele. Já que dar nome às coisas, defini-las, classificá-las etc são modos de distingui-las umas das outras, essas atividades representam manifestações da crítica. Assim, a razão crítica constitui uma condição da própria linguagem que, por sua vez, a potencializa.
A crítica distingue entre as proposições logicamente necessárias e as logicamente contingentes. As necessárias (por exemplo, "A = A") são aquelas cujo oposto é contraditório, logo, inconcebível. As contingentes (por exemplo "a Terra gira em torno do Sol") são aquelas cujo oposto é concebível.
Também a dúvida é uma manifestação da razão crítica. A dúvida metódica, que inaugura a filosofia moderna, lembra que, sendo contingente que eu – seja lá quem eu for – não esteja a delirar ou sonhar, há sempre, em última análise, a possibilidade de que eu esteja a delirar ou sonhar. Conseqüentemente, é uma verdade necessária que, em última análise, não posso ter certeza absoluta da existência ou efetividade de coisa nenhuma. Só não posso, é claro, duvidar da efetividade de mim mesmo, uma vez que, mesmo ao duvidar dela, eu a exerço. Observe-se, entretanto, que, neste contexto, "eu" não sou nenhum ser concreto, de modo que a efetividade em questão é a da própria razão crítica, de que não passo de portador.
A cláusula "em última análise", que tenho repetido, está longe de ser meramente retórica. É só no nível extremo de radicalidade analítica que todas as certezas mencionadas são relativas. No nível dos conhecimentos práticos, usamos as palavras de outro modo.
Isso é um pouco como o que ocorre com a física relativista. A dilatação do tempo, por exemplo, segundo a qual o tempo passa tanto mais lentamente quanto mais rapidamente um objeto se mova, é algo que só se observa a velocidades próximas da luz. Como tais velocidades jamais são alcançadas pelos objetos cotidianos, os efeitos da relatividade não são observáveis na vida corrente. Assim, no dia-a-dia, devemos nos comportar e falar como se o tempo fosse o mesmo para todos os objetos, mesmo sabendo que, em última análise, não é assim.
Do mesmo modo, no nível da vida corrente, considero ter certeza absoluta de estar sentado em frente ao meu computador, terminando de escrever este artigo. Digamos que o artigo estivesse um pouco atrasado e o editor do jornal me telefonasse, perguntando por ele. "Estou terminando de escrevê-lo", diria eu. Talvez ele duvidasse disso e insistisse: "Tem certeza?". Possivelmente, então, eu lhe responderia, por exemplo: "Certeza absoluta!". Com essa resposta, eu estaria sendo muito mais veraz do que se tivesse respondido, no lugar de "certeza absoluta", "certeza relativa". Por quê? Porque, nesse último caso, eu lhe daria a falsa impressão de não estar realmente a terminar o artigo.
Mas por que, então, não abandonar a "última análise" e ficar restrito ao plano das certezas práticas? Porque o reconhecimento da possibilidade de que esteja errado qualquer um dos nossos pretensos conhecimentos empíricos, bem como qualquer um dos nossos sistemas de idéias, tanto laicos quanto religiosos, é importante para, entre outras coisas, a constituição da ciência. Chamamos esse reconhecimento de "falibilismo".
Eis como, no que diz respeito ao conhecimento, se opõem a modernidade filosófica e o relativismo vulgar. Este nivela todos os pretensos conhecimentos, considerando-os como igualmente verdadeiros e/ou igualmente falsos. A modernidade filosófica, ao contrário, permite hierarquizar os conhecimentos.
A partir do falibilismo, ela determina a produção do conhecimento científico como um processo em princípio aberto à razão crítica, público, baseado em premissas imanentes, e cujos resultados são -em última análise- sujeitos a serem revistos ou refutados. A certeza que posso ter da verdade do conhecimento produzido nessas condições não é menor do que a certeza prática que tenho de estar sentado em frente ao meu computador.
Por outro lado, o falibilismo revela o caráter fictício de todo pretenso conhecimento que se subtraia à razão crítica ou à inspeção pública, que se baseie em premissas transcendentes, ou cujas doutrinas sejam impermeáveis a revisões ou refutações.
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30.12.07
O relativismo e a modernidade
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 29/12/2007:
O relativismo e a modernidade
A proposição de que toda verdade é relativa, tão ouvida hoje em dia, é insustentável
As ideologias "pós-modernas" abraçaram o relativismo com a mesma inconseqüência com que atacavam a modernidade. Parece-me claro que muitas das teses de pensadores extremamente influentes, como Michel Foucault, Gilles Deleuze, Jacques Derrida, Richard Rorty e seus discípulos, podem ser consideradas relativistas, mesmo se eles próprios, como é natural, jamais tenham querido assim se rotular.
É mais comum um filósofo relativizar, de algum modo, a verdade, do que confessar-se relativista. Nietzsche, um dos pensadores mais citados hoje em dia, é claramente relativista, embora seja mais freqüentemente classificado de "perspectivista".
O fato é que é comum ouvir-se hoje em dia que "toda verdade é relativa". Essa proposição, porém, é insustentável. Por quê? Porque incorre no que os lógicos chamam de autocontradição performativa. Essa se manifesta no seguinte dilema: se a própria proposição "toda verdade é relativa" for relativa, segue-se que nem toda verdade é relativa; por outro lado, se a proposição "toda verdade é relativa" não for relativa, segue-se, igualmente, que nem toda verdade é relativa. Desse modo, o relativismo universal se desmente ao ser afirmado.
Mas o relativismo é inviável também do ponto de vista prático ou político. Embora ele seja muitas vezes defendido a partir de uma atitude pluralista, em que o relativista, negando-se a tomar qualquer verdade como absoluta, aceita que haja verdades diferentes daquelas em que acredita, ele, com isso, acaba por minar a sua própria posição.
É que, como diz Platão sobre o relativista Protágoras: "ele é vulnerável no sentido de que às opiniões dos outros dá valor, enquanto que esses não reconhecem nenhuma verdade às palavras dele". Assim, enquanto o relativista aceita, por princípio, que sejam relativamente verdadeiras as crenças do anti-relativista ou absolutista (seja ele, por exemplo, um terrorista jihadista), esse não reconhece absolutamente nenhuma verdade nas teses -que, para ele, não passam de manifestações de fraqueza, decadência etc- do relativista.
Pior ainda: o relativismo é capaz de se transformar no seu oposto. "Da equivalência de todas as ideologias, todas igualmente ficções", afirmava Mussolini, sob a influência de Nietzsche, "o relativismo moderno deduz que cada qual tem o direito de criar-se a sua própria e impô-la com toda a energia de que é capaz".
E qual foi a ideologia que Mussolini criou e impôs com toda a energia de que foi capaz? O fascismo, para o qual, como afirmou em "A Doutrina do Fascismo", "o Estado é um absoluto". Eis como é simples a transformação do relativismo em absolutismo.
A modernidade filosófica mesma não é nem jamais foi relativista, pelo menos nesse sentido vulgar. É verdade que, desde o princípio, Descartes e, mesmo antes dele, Montaigne, por exemplo, puseram em questão todos os pretensos conhecimentos dados ou positivos -o que, de certo modo, equivale a relativizá-los. Entretanto, os pretensos conhecimentos positivos são relativizados por esses pensadores a partir da crítica efetuada pela razão: a partir, portanto, da razão crítica.
Assim, ao mesmo tempo em que, por um lado, todos os pretensos conhecimentos positivos são reconhecidos como relativos, por outro lado, a razão (enquanto faculdade de criticar) é reconhecida, desde o princípio da modernidade, como um absoluto epistemológico. Não que ela não possa criticar a si própria: ao contrário, nunca é demais lembrar que, na "Crítica da Razão Pura", de Kant, a razão é tanto sujeito quanto objeto da crítica. Entretanto, justamente ao criticar e questionar a si própria, a razão não pode deixar de se afirmar.
De todo modo, o reconhecimento de que a razão crítica - ou negativa - é epistemologicamente absoluta equivale ao reconhecimento de que nenhum pretenso conhecimento positivo é absoluto: ou, em outras palavras, de que todo pretenso conhecimento positivo é relativo.
Por sua vez, o reconhecimento da relatividade – logo, da falibilidade – de todo pretenso conhecimento positivo é o que torna possível conceber a constituição das condições da produção do conhecimento científico empírico – entre as quais a sociedade aberta – e a concomitante rejeição de toda pretensão de pretenso conhecimento que se furte ao exame aberto e livre das suas pretensões cognitivas.
O relativismo e a modernidade
A proposição de que toda verdade é relativa, tão ouvida hoje em dia, é insustentável
As ideologias "pós-modernas" abraçaram o relativismo com a mesma inconseqüência com que atacavam a modernidade. Parece-me claro que muitas das teses de pensadores extremamente influentes, como Michel Foucault, Gilles Deleuze, Jacques Derrida, Richard Rorty e seus discípulos, podem ser consideradas relativistas, mesmo se eles próprios, como é natural, jamais tenham querido assim se rotular.
É mais comum um filósofo relativizar, de algum modo, a verdade, do que confessar-se relativista. Nietzsche, um dos pensadores mais citados hoje em dia, é claramente relativista, embora seja mais freqüentemente classificado de "perspectivista".
O fato é que é comum ouvir-se hoje em dia que "toda verdade é relativa". Essa proposição, porém, é insustentável. Por quê? Porque incorre no que os lógicos chamam de autocontradição performativa. Essa se manifesta no seguinte dilema: se a própria proposição "toda verdade é relativa" for relativa, segue-se que nem toda verdade é relativa; por outro lado, se a proposição "toda verdade é relativa" não for relativa, segue-se, igualmente, que nem toda verdade é relativa. Desse modo, o relativismo universal se desmente ao ser afirmado.
Mas o relativismo é inviável também do ponto de vista prático ou político. Embora ele seja muitas vezes defendido a partir de uma atitude pluralista, em que o relativista, negando-se a tomar qualquer verdade como absoluta, aceita que haja verdades diferentes daquelas em que acredita, ele, com isso, acaba por minar a sua própria posição.
É que, como diz Platão sobre o relativista Protágoras: "ele é vulnerável no sentido de que às opiniões dos outros dá valor, enquanto que esses não reconhecem nenhuma verdade às palavras dele". Assim, enquanto o relativista aceita, por princípio, que sejam relativamente verdadeiras as crenças do anti-relativista ou absolutista (seja ele, por exemplo, um terrorista jihadista), esse não reconhece absolutamente nenhuma verdade nas teses -que, para ele, não passam de manifestações de fraqueza, decadência etc- do relativista.
Pior ainda: o relativismo é capaz de se transformar no seu oposto. "Da equivalência de todas as ideologias, todas igualmente ficções", afirmava Mussolini, sob a influência de Nietzsche, "o relativismo moderno deduz que cada qual tem o direito de criar-se a sua própria e impô-la com toda a energia de que é capaz".
E qual foi a ideologia que Mussolini criou e impôs com toda a energia de que foi capaz? O fascismo, para o qual, como afirmou em "A Doutrina do Fascismo", "o Estado é um absoluto". Eis como é simples a transformação do relativismo em absolutismo.
A modernidade filosófica mesma não é nem jamais foi relativista, pelo menos nesse sentido vulgar. É verdade que, desde o princípio, Descartes e, mesmo antes dele, Montaigne, por exemplo, puseram em questão todos os pretensos conhecimentos dados ou positivos -o que, de certo modo, equivale a relativizá-los. Entretanto, os pretensos conhecimentos positivos são relativizados por esses pensadores a partir da crítica efetuada pela razão: a partir, portanto, da razão crítica.
Assim, ao mesmo tempo em que, por um lado, todos os pretensos conhecimentos positivos são reconhecidos como relativos, por outro lado, a razão (enquanto faculdade de criticar) é reconhecida, desde o princípio da modernidade, como um absoluto epistemológico. Não que ela não possa criticar a si própria: ao contrário, nunca é demais lembrar que, na "Crítica da Razão Pura", de Kant, a razão é tanto sujeito quanto objeto da crítica. Entretanto, justamente ao criticar e questionar a si própria, a razão não pode deixar de se afirmar.
De todo modo, o reconhecimento de que a razão crítica - ou negativa - é epistemologicamente absoluta equivale ao reconhecimento de que nenhum pretenso conhecimento positivo é absoluto: ou, em outras palavras, de que todo pretenso conhecimento positivo é relativo.
Por sua vez, o reconhecimento da relatividade – logo, da falibilidade – de todo pretenso conhecimento positivo é o que torna possível conceber a constituição das condições da produção do conhecimento científico empírico – entre as quais a sociedade aberta – e a concomitante rejeição de toda pretensão de pretenso conhecimento que se furte ao exame aberto e livre das suas pretensões cognitivas.
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