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21.7.12
Octavio Paz: de "Poesia e modernidade"
O mundo de Dante era finito e por isso pôde traçar a geografia do inferno, do purgatório e do paraíso. Mas esse mundo limitado era eterno: os homens estavam destinados a viver pelos séculos dos séculos e, depois do Juízo Final, sem experimentar mudança alguma. A eternidade dissipa o tempo e a sucessão. Seremos para sempre o que somos. Nisso consiste a diferença radical entre o mundo medieval e o moderno. O cristão medieval vivia num espaço finito e estava destinado à eternidade dos bem-aventurados ou dos réprobos; nós vivemos num universo infinito e estamos destinados a desaparecer para sempre. Nossa condição é trágica num sentido que nem os pagãos da Antiguidade nem os cristãos da Idade Média suspeitaram.
PAZ, Octavio. "Poesía y modernidad". In:_____. La otra voz. Poesía y fin de siglo. Barcelona: Seix Barral, 1990.
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25.7.10
As ilusões pós-modernistas
O seguinte artigo foi publicado no sábado, 24 de julho, na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo:
As ilusões pós-modernistas
AS NOÇÕES de "pós-modernidade" e "pós-modernismo" entraram em voga há cerca de trinta anos, a partir da publicação de "La condition postmoderne", do filósofo francês Jean-François Lyotard. Hoje, "pós-modernismo" designa apenas uma tendência eclética, maneirista e inteiramente datada. Já a noção de "pós-modernidade" -- que significa uma pretensa superação da época moderna -- não passou de uma ilusão, que a pós-pós-modernidade, isto é, a modernidade mesma, encarregou-se de desmentir.
De nada adianta substituir a expressão "pós-modernidade" por "contemporaneidade", como faz o famoso crítico norte-americano Arthur Danto. O conceito de contemporaneidade simplesmente não é epocal e, se conseguisse sê-lo, não se distinguiria do de modernidade.
Antes da modernidade, eram quase sempre nomes próprios, de lugares, dinastias, monarcas ou fundadores de religiões que denominavam ou demarcavam as diferentes épocas. Na Roma republicana, por exemplo, demarcava-se o tempo tendo por referência a fundação (mítica ou real, pouco importa) de Roma. Os chineses e egípcios usavam os nomes das suas dinastias para diferenciar as épocas, inclusive aquelas em que viviam. Já os primeiros cristãos passaram a demarcar o tempo tendo por referência o nascimento (mítico ou real, pouco importa) de Cristo: para eles, sua época era a época cristã. Um francês do século 12 d.C., por exemplo, não supunha haver qualquer solução de continuidade entre a sua época e a do apóstolo Paulo.
A partir principalmente dos séculos 14 e 15 d.C., porém, a Europa começou a passar por uma espécie de desprovincianização. Com as descobertas geográficas, "viu-se a terra inteira de repente / surgir redonda do azul profundo", como diz o Fernando Pessoa de "Mensagem". Isso relativizou a Europa, do ponto de vista espacial. Do ponto de vista temporal, ela foi relativizada pela valorização, graças aos humanistas, da cultura clássica e pagã.
Contra seus contemporâneos escolásticos, os humanistas ambicionaram emular o modo de pensar e escrever, assim como o gosto dos antigos. Entre estes e aqueles, porém, se interpunha um período extenso, que tivera início na invasão e na destruição do Império Romano pelos bárbaros. A essa longa intermissão, que passaram a desprezar como um período de barbárie entre a morte da civilização antiga e seu moderno renascimento, por eles promovido, chamaram de "medium aevum", de onde "medioevo", isto é, "Idade Média". Entre os séculos 16 e 18, estabeleceu-se o esquema tríplice de periodização que persiste até hoje. Tem-se a Antiguidade, a Idade Média e a Modernidade.
Ora, "moderno", etimologicamente, quer dizer referente a agora ou, se quisermos, "agoral". Modernidade, portanto, é a "agoralidade". Isso significa que, pela primeira vez, a palavra com a qual se denomina uma época é um conceito universal. Há nisso um paradoxo. Sendo um universal, "moderno" não se reduz a coisa alguma que possa particularizar a época assim autodenominada. Em princípio, qualquer época poderia ter-se chamado "moderna" ou "agoral". Entretanto, justamente o fato de que, apesar disso, nenhuma outra o tenha feito, constitui, para a época que o faz, uma diferença mais radical do que qualquer outra concebível.
Trata-se de um sintoma da extraordinária cisão experimentada pelos homens da Renascença. É que eles se haviam tornado capazes de criticar, isto é, tanto de se distanciar da própria cultura em que viviam, quanto de questioná-la. Montaigne, por exemplo, reconhecia ser cristão por acaso. "Somos cristãos", dizia ele, "ao mesmo título que somos perigordinos ou alemães".
Descartes, leitor de Montaigne, sabia que "um mesmo homem, com seu mesmo espírito, sendo nutrido desde a infância entre franceses ou alemães, torna-se diferente do que seria se tivesse sempre vivido entre chineses ou canibais". Evidentemente, não foi de dentro da cultura cristã e francesa que Montaigne e Descartes a relativizaram desse modo, mas a partir da razão, que foi capaz de dela se separar e de criticá-la.
Sendo a modernidade a época em que a razão já reconheceu o caráter contingente das culturas, de modo que não se identifica com nenhuma, segue-se que qualquer "superação" dessa época não poderia deixar de ser uma regressão ao estado em que essa verdade ainda fosse ignorada.
25.3.07
Slavoj Zizek: "O cavaleiro dos mortos vivos"
Traduzi e publico a seguir um importante artigo de Slavoj Zizek, aparecido ontem (24/03) no New York Times:
O cavaleiro do mortos vivos
Desde a divulgação das dramáticas confissões de Khalid Shaikh Mohamed, a indignação moral com a extensão dos seus crimes foi acompanhada por dúvidas. Pode-se acreditar em suas afirmações? E se ele confessou mais do que fez realmente, ou por um vão desejo de ser lembrado como o grande “fera” do terrorismo, ou porque se dispôs a confessar qualquer coisa para interromper o afogamento simulado e outras “técnicas aperfeiçoadas de interrogação”?
Se há um aspecto surpreendente nessa situação, ela tem menos a ver com as próprias confissões do que com o fato de que, pela primeira vez em muitos e muitos anos, a tortura foi normalizada: apresentada como algo aceitável. As conseqüências éticas disso deveriam ser objeto da preocupação de todos nós.
Posto que o alcance dos crimes do Sr. Mohamed é claro e horripilante, vale a pena observar que os Estados Unidos parecem incapazes de tratá-lo como trataria o pior dos criminosos: no mundo ocidental civilizado, até o mais depravado assassino de crianças é julgado e punido. Mas qualquer julgamento e punição legal do Sr. Mohamed é agora impossível: nenhuma corte que opere nos quadros dos sistemas legais ocidentais é capaz de lidar com detenções ilegais, confissões obtidas sob tortura ou coisas semelhantes. (E isso corresponde, perversamente, ao desejo do Sr. Mohamed de ser tratado como inimigo, não como criminoso).
É como se não apenas os terroristas mesmos, mas também a luta contra eles tenha agora que continuar numa zona cinzenta da legalidade. Assim temos criminosos “legais” e “ilegais” de fato: os que devem ser tratados de acordo com procedimentos legais (com advogados etc.) e os que estão fora da legalidade, sujeitos a tribunais militares ou encarceramento aparentemente interminável.
O Sr. Mohamed tornou-se o que o filósofo político Giorgio Agamben chama de “homo sacer”: uma criatura legalmente morta, embora biologicamente ainda viva. E ele não é o único a viver num mundo intermediário. As autoridades americanas que lidam com os detidos tornaram-se uma espécie de contrapartida do homo sacer: ao agir como poder legal, operam num espaço vazio que é sustentado pela lei e, no entanto, não é regulado pelo império da lei.
Há quem não considere isso um problema. O contra-argumento realista diz: A guerra ao terrorismo é suja, encontramo-nos em situações em que as vidas de milhares podem depender da informação que obtemos dos prisioneiros, e precisamos tomar medidas extremas. Como Alan Dershowitz, da Escola de Direito de Harvard o formula: “Não sou a favor da tortura, mas, se ela ocorrer, tem que ter aprovação da corte, sim senhor”. Bem, se isso é a “honestidade”, acho que fico com a hipocrisia.
Sim, a maior parte das pessoas consegue imaginar uma situação singular em que poderia recorrer à tortura: por exemplo, para salvar uma pessoa amada de um mal imediato e impensável. Eu consigo. Em tal caso, porém, é crucial que eu não eleve essa escolha desesperada a um princípio universal. Na urgência inevitável e brutal do momento, eu simplesmente o faria. Mas isso não pode se tornar um padrão aceitável: devo reter o sentido próprio do horror do que fiz. E quando a tortura se torna apenas outra coisa na lista das técnicas do contra-terrorismo, perde-se todo sentido de horror.
Quando, na quinta série do programa de TV “24”, torna-se claro que o gênio que arquitetara o plano terrorista era o próprio presidente, ficamos ansiosos por saber se Jack Bauer aplicará ao “líder do mundo livre” sua técnica padrão, ao lidar com terroristas que se recusam a divulgar segredos que possam salvar milhares de pessoas. Ele torturará ou presidente?
A realidade superou a TV. O que “24” ainda tinha a decência de apresentar como a escolha inquietante e desesperada de Jack Bauer agora se apresenta como um negócio rotineiro – business as usual.
De certo modo, os que se recusam a defender a tortura explicitamente mas a aceitam como um assunto legítimo de debate são mais perigosos do que os que a endossam explicitamente. A moralidade jamais é apenas um assunto da consciência individual. Ela só vige se for sustentada pelo que Hegel chamava de “espírito objetivo”, pelo conjunto de regras ágrafas que formam o contexto da atividade de todo indivíduo, dizendo-nos o que é aceitável e o que é inaceitável.
Por exemplo, um sinal claro de progresso na sociedade ocidental é que não é necessário discutir sobre a violação: é “dogmaticamente” claro a todo o mundo que a violação é errada. Se alguém defendesse a legitimidade da violação, seria considerado tão ridículo que se desqualificaria de qualquer consideração ulterior. E o mesmo deveria valer para a tortura.
Será que temos consciência do que está no fim da estrada aberta pela normalização da tortura? Um detalhe importante da confissão do Sr. Mohamed dá uma pista. Conta-se que os interrogadores se submeteram ao afogamento simulado e só conseguiram suportá-lo em média por menos de 15 segundos, antes de se disporem a confessar seja lá o que for. O Sr. Mohamed, porém, obteve a admiração relutante deles por suportá-la por dois minutos e meio.
Será que temos consciência de que a última vez em que tais coisas fizeram parte do discurso público foi no final da Idade Média, quando a tortura ainda era um espetáculo público, um modo honrável de testar um inimigo capturado que ganharia a admiração do populacho que agüentasse a dor com dignidade? Será que queremos realmente voltar a esse tipo de ética de guerreiro primitivo?
É por isso que, no final, as maiores vítimas da banalização da tortura somos nós, o público informado. Uma parte preciosa da nossa identidade coletiva perdeu-se irrecuperavelmente. Estamos no meio de um processo de corrupção moral: os que estão no poder estão literalmente tentando quebrar uma parte da nossa coluna dorsal ética, amortecer o que talvez seja a maior conquista da nossa civilização, a criação da nossa sensibilidade moral espontânea.
O cavaleiro do mortos vivos
Desde a divulgação das dramáticas confissões de Khalid Shaikh Mohamed, a indignação moral com a extensão dos seus crimes foi acompanhada por dúvidas. Pode-se acreditar em suas afirmações? E se ele confessou mais do que fez realmente, ou por um vão desejo de ser lembrado como o grande “fera” do terrorismo, ou porque se dispôs a confessar qualquer coisa para interromper o afogamento simulado e outras “técnicas aperfeiçoadas de interrogação”?
Se há um aspecto surpreendente nessa situação, ela tem menos a ver com as próprias confissões do que com o fato de que, pela primeira vez em muitos e muitos anos, a tortura foi normalizada: apresentada como algo aceitável. As conseqüências éticas disso deveriam ser objeto da preocupação de todos nós.
Posto que o alcance dos crimes do Sr. Mohamed é claro e horripilante, vale a pena observar que os Estados Unidos parecem incapazes de tratá-lo como trataria o pior dos criminosos: no mundo ocidental civilizado, até o mais depravado assassino de crianças é julgado e punido. Mas qualquer julgamento e punição legal do Sr. Mohamed é agora impossível: nenhuma corte que opere nos quadros dos sistemas legais ocidentais é capaz de lidar com detenções ilegais, confissões obtidas sob tortura ou coisas semelhantes. (E isso corresponde, perversamente, ao desejo do Sr. Mohamed de ser tratado como inimigo, não como criminoso).
É como se não apenas os terroristas mesmos, mas também a luta contra eles tenha agora que continuar numa zona cinzenta da legalidade. Assim temos criminosos “legais” e “ilegais” de fato: os que devem ser tratados de acordo com procedimentos legais (com advogados etc.) e os que estão fora da legalidade, sujeitos a tribunais militares ou encarceramento aparentemente interminável.
O Sr. Mohamed tornou-se o que o filósofo político Giorgio Agamben chama de “homo sacer”: uma criatura legalmente morta, embora biologicamente ainda viva. E ele não é o único a viver num mundo intermediário. As autoridades americanas que lidam com os detidos tornaram-se uma espécie de contrapartida do homo sacer: ao agir como poder legal, operam num espaço vazio que é sustentado pela lei e, no entanto, não é regulado pelo império da lei.
Há quem não considere isso um problema. O contra-argumento realista diz: A guerra ao terrorismo é suja, encontramo-nos em situações em que as vidas de milhares podem depender da informação que obtemos dos prisioneiros, e precisamos tomar medidas extremas. Como Alan Dershowitz, da Escola de Direito de Harvard o formula: “Não sou a favor da tortura, mas, se ela ocorrer, tem que ter aprovação da corte, sim senhor”. Bem, se isso é a “honestidade”, acho que fico com a hipocrisia.
Sim, a maior parte das pessoas consegue imaginar uma situação singular em que poderia recorrer à tortura: por exemplo, para salvar uma pessoa amada de um mal imediato e impensável. Eu consigo. Em tal caso, porém, é crucial que eu não eleve essa escolha desesperada a um princípio universal. Na urgência inevitável e brutal do momento, eu simplesmente o faria. Mas isso não pode se tornar um padrão aceitável: devo reter o sentido próprio do horror do que fiz. E quando a tortura se torna apenas outra coisa na lista das técnicas do contra-terrorismo, perde-se todo sentido de horror.
Quando, na quinta série do programa de TV “24”, torna-se claro que o gênio que arquitetara o plano terrorista era o próprio presidente, ficamos ansiosos por saber se Jack Bauer aplicará ao “líder do mundo livre” sua técnica padrão, ao lidar com terroristas que se recusam a divulgar segredos que possam salvar milhares de pessoas. Ele torturará ou presidente?
A realidade superou a TV. O que “24” ainda tinha a decência de apresentar como a escolha inquietante e desesperada de Jack Bauer agora se apresenta como um negócio rotineiro – business as usual.
De certo modo, os que se recusam a defender a tortura explicitamente mas a aceitam como um assunto legítimo de debate são mais perigosos do que os que a endossam explicitamente. A moralidade jamais é apenas um assunto da consciência individual. Ela só vige se for sustentada pelo que Hegel chamava de “espírito objetivo”, pelo conjunto de regras ágrafas que formam o contexto da atividade de todo indivíduo, dizendo-nos o que é aceitável e o que é inaceitável.
Por exemplo, um sinal claro de progresso na sociedade ocidental é que não é necessário discutir sobre a violação: é “dogmaticamente” claro a todo o mundo que a violação é errada. Se alguém defendesse a legitimidade da violação, seria considerado tão ridículo que se desqualificaria de qualquer consideração ulterior. E o mesmo deveria valer para a tortura.
Será que temos consciência do que está no fim da estrada aberta pela normalização da tortura? Um detalhe importante da confissão do Sr. Mohamed dá uma pista. Conta-se que os interrogadores se submeteram ao afogamento simulado e só conseguiram suportá-lo em média por menos de 15 segundos, antes de se disporem a confessar seja lá o que for. O Sr. Mohamed, porém, obteve a admiração relutante deles por suportá-la por dois minutos e meio.
Será que temos consciência de que a última vez em que tais coisas fizeram parte do discurso público foi no final da Idade Média, quando a tortura ainda era um espetáculo público, um modo honrável de testar um inimigo capturado que ganharia a admiração do populacho que agüentasse a dor com dignidade? Será que queremos realmente voltar a esse tipo de ética de guerreiro primitivo?
É por isso que, no final, as maiores vítimas da banalização da tortura somos nós, o público informado. Uma parte preciosa da nossa identidade coletiva perdeu-se irrecuperavelmente. Estamos no meio de um processo de corrupção moral: os que estão no poder estão literalmente tentando quebrar uma parte da nossa coluna dorsal ética, amortecer o que talvez seja a maior conquista da nossa civilização, a criação da nossa sensibilidade moral espontânea.
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