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11.2.17

Antonio Cicero: "Tzvetan Todorov libertou a literatura dos asfixiantes jogos formais"

O seguinte artigo meu foi publicado hoje em O Globo:



Tzvetan Todorov libertou a literatura dos asfixiantes jogos formais



Conheci pessoalmente Tzvetan Todorov em 1995, quando, convidado por mim e pelo poeta Waly Salomão, ele participou de um ciclo de conferências que organizamos em São Paulo. Desde então, reencontrei-o várias vezes em Paris, e trouxe-o ao Rio em 2011, para participar do ciclo de conferências “Forma e sentido contemporâneo: Poesia”, que organizei no centro cultural Oi Futuro Flamengo.

Era uma delícia conversar com Todorov, pois ele foi um dos intelectuais mais abertos a novas ideias e menos dogmáticos que conheci. Penso que isso talvez se devesse ao fato de que ele tinha intimamente conhecido o totalitarismo e sido vítima do dogmatismo. Foi certamente por isso que ele combateu, cada vez mais, aqueles que considerava os “inimigos íntimos” da democracia, como o populismo, o ultraliberalismo e o messianismo.

Mas é interessante como esse seu horror ao totalitarismo e ao dogmatismo já fica bem claro quando examinamos a evolução, ao longo de sua vida, de sua relação com a literatura.

Todorov nasceu em Sófia, na Bulgária, em 1939. Pelo menos desde 1946, isto é, quando ele tinha sete anos, a Bulgária passou a fazer parte dos países da Cortina de Ferro. 

O controle político e ideológico do Partido Comunista sobre toda a sociedade ficou então sendo total. Todorov conta que, quando entrou para a Universidade de Sófia para estudar letras, em 1956, apenas metade do que se ensinava nos cursos de literatura era erudição; a outra metade não passava de propaganda ideológica marxista-leninista.

Ao final do quinto ano de universidade, era necessário redigir uma monografia de fim de curso. Para fazê-lo sem se curvar à ideologia dominante, Todorov resolveu “abordar a própria materialidade do texto, suas formas linguísticas”, como ele mesmo veio a explicar muito mais tarde, em seu extraordinário livro “A literatura em perigo”.

Em 1963, tendo terminado seu Mestrado em Filologia pela Universidade de Sófia, ele emigrou para a França, onde estudou com Roland Barthes. Em 1965, Todorov organizou o livro “Teoria da literatura”, compilação de obras que revelou à França e, de maneira geral, ao Ocidente, a existência de uma notável escola de análise literária russa, cujos expoentes ficaram célebres como os “formalistas russos”. A partir de então, publicando obras como “Literatura e significação”, ele ficou conhecido como semiólogo e estruturalista.

Entretanto, vivendo na França, país que respeitava as liberdades individuais, de modo que o conteúdo das obras, isto é, o pensamento e os valores que elas continham não se encontravam mais “aprisionados numa coleira ideológica preestabelecida”, Todorov verificou que não tinha mais razão para se dedicar exclusivamente ao estudo da matéria verbal dos textos.

Ele pôde então considerar a totalidade forma/conteúdo de cada obra literária e criticar a tendência – produzida, em parte, exatamente pelas modas estruturalistas a que ele próprio fora associado – a reduzir os estudos literários aos métodos linguísticos e estilísticos, deixando de lado a compreensão geral dos textos e de suas relações com o mundo.

Para Todorov, todos os métodos são bons, desde que não se tornem o fim, mas apenas o meio de captar a verdade da obra. O sentido da literatura é ampliar nosso universo, apresentando-nos novas maneiras de apreender o mundo. 

Assim, diz ele, em “A literatura em perigo”, que devemos “libertar a literatura do espartilho asfixiante em que está presa, feito de jogos formais, queixas niilistas e ‘umbiguismo’ solipsista. Isso poderia, por sua vez, levar a crítica a percorrer horizontes mais amplos,  retirando-a do gueto formalista que interessa apenas a outras críticas, proporcionando a ela a abertura para o grande debate de ideias do qual participa todo conhecimento do homem”. 

14.12.08

A autonomia da arte

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 13 de dezembro:


A autonomia da arte

Lançado neste ano no Brasil, o livro de Peter Bürger "Teoria da Vanguarda" (Cosac Naify) afirma que o conceito de autonomia da arte não passa de uma categoria ideológica burguesa. Segundo ele, é a separação relativa na sociedade burguesa entre, por um lado, a obra de arte, e, por outro lado, a prática da vida, que favorece a extrapolação para a idéia errônea de que a obra de arte é totalmente independente da sociedade.

Na verdade, são o esteticismo e o formalismo que defendem a independência total da arte em relação à sociedade. Bürger comete o equívoco de confundir a tese da autonomia da arte com o esteticismo ou o formalismo. Por ser um equívoco comum, parece-me importante tentar dissipá-lo.

A fonte do conceito de autonomia da arte é o pensamento estético de Kant. Pois é numa formulação kantiana que está também a origem do equívoco em questão. É que Kant fala da apreciação estética como independente de todo interesse. Isso é comumente interpretado como se significasse que a apreciação estética fosse puramente formal, desprezando conteúdo ou significado.

O que o desinteresse e a autonomia realmente significam, porém, é que aquilo que é objeto de apreciação estética não tem, enquanto tal, nenhuma função prática, moral ou cognitiva. Ora, consideramos que aquilo que não tem função prática, moral ou cognitiva simplesmente não serve para nada.

Sendo assim, praticamente tudo o que fazemos na vida é o oposto da apreciação estética, pois praticamente tudo o que fazemos serve para alguma coisa, ainda que apenas para satisfazer um desejo. Praticamente nada do que fazemos vale, portanto, por si. A própria linguagem funciona como um instrumento através do qual classificamos, isto é, seccionamos o mundo em objetos, para melhor conhecê-lo e usá-lo.

Enquanto objeto de apreciação estética, uma coisa não obedece a essa razão instrumental: enquanto tal, ela não serve para nada, ela vale por si. Assim são as obras de arte tomadas enquanto obras de arte. As hierarquias que entram em jogo nas coisas que obedecem à razão instrumental, isto é, nas coisas de que nos servimos, não entram em jogo nas obras de arte tomadas enquanto tais.

Um retrato numa carteira de identidade serve para identificar seu portador. Um retrato feito por artista como Manet, por exemplo, na medida em que é apreciado esteticamente, jamais tem esse sentido. A identidade do retratado pode até ter alguma relevância, mas não mais do que as demais figuras, o fundo, a luz, a sombra, a composição, os planos, as formas, as linhas, as cores, o tom do quadro, a maneira de todas essas coisas se relacionarem etc. A matéria (tela e tinta) não é menos importante do que as formas; estas não são menos importantes do que o motivo; este não é menos importante do que a identidade do retratado etc. Tudo é relevante; e nenhuma coisa é automaticamente mais relevante que outra. É sem nenhum fim ulterior que a obra de arte mobiliza de maneiras surpreendentes as nossas faculdades, o nosso intelecto, a nossa imaginação e sensibilidade.

Tudo – matérias, formas, significantes, significados –, tudo é relevante para a apreciação estética de uma obra de arte. Ao ler um poema de Brecht, por exemplo, não ponho entre parênteses a política, tal como nele se manifesta; entretanto, a política se converte em apenas um dos elementos através dos quais o julgo: e ela é mediatizada por todos os demais elementos da obra, que, por sua vez, são por ela mediatizados. É nisso que consiste a apreciação estética de uma obra. Isso nada tem a ver com o formalismo ou o esteticismo, pois, longe de excluir qualquer conteúdo social, inclui todos eles.

Na arte, o conteúdo é forma e a forma é conteúdo, e tudo é matéria e tudo é pensamento. Voltando ao quadro de Manet, no final ele não é sobre o retratado, embora o retratado faça parte de tudo o que o quadro é. No fundo, não é o quadro que é sobre coisa alguma: ao contrário, o quadro é aquilo sobre o qual nós pensaremos e falaremos. Longe de existir para falar sobre um objeto, a obra de arte existe para ser um objeto que valerá por si, de modo que, sem nenhuma finalidade ulterior, isto é, desinteressadamente, teremos prazer de pensar sobre ela, e de pensar sobre ela com todas as nossas faculdades, e até com nossos corpos.

Sendo assim, a luta contra a autonomia da arte tem por fim submeter também a arte à razão instrumental, isto é, tem por fim eliminar também da arte a dimensão em virtude da qual, sem servir para nada, ela vale por si. Trata-se, em suma, da luta pelo empobrecimento do mundo.