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26.8.21

Alberto da Costa e Silva: "O amor aos sessenta"

 



O amor aos sessenta



Isto que é o amor (como se o amor não fosse

esperar o relâmpago clarear o degredo):

ir-se por tempo abaixo como grama em colina,

preso a cada torrão de minuto e desejo.


Ser contigo, não sendo como as fases da lua,

como os ciclos de chuva ou a alternância dos ventos,

mas como numa rosa as pétalas fechadas,

como os olhos e as pálpebras ou a sombra dos remos


contra o casco do barco que se vai, sem avanço

e sem pressa de ausência, entre o mito e o beijo.

Ser assim quase eterno como o sonho e a roda

que se fecha no espaço deste sol às estrelas


e amar-te, sabendo que a velhice descobre

a mais bela beleza no teu rosto de jovem.





COSTA E SILVA, Alberto da. "O amor aos sessenta". In: Antonlogia poética da Academia Brasileira de Letras. Brasília: Edições Câmara,, 2020.


25.12.20

Alberto da Costa e Silva: "Soneto de Natal"

 



Soneto de Natal



Como esperar que o dia pequenino,

com a mesa, a cama, o copo, as cousas simples,

desate em nossas mãos os lenços cheios

de canções e trigais e ninfas tristes?


Menino já não sou. Como de novo

conversar com os pássaros, o peixes,

invejar o galope dos cavalos

e voltar a sentir os velhos êxtases?


A linguagem dos grãos, do manso pêssego,

a bem-amada ensina e novamente

sinto em mim o odor de esterco e leite


dos currais onde a infância tange as reses,

sorve a manhã e permanece neste

cantor da relva mínima e dos bois.





COSTA E SILVA, Alberto da. "Soneto de Natal". In:_____. "Poemas dos vinte anos". In:_____. Poemas reunidos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. 


26.8.20

Alberto da Costa e Silva: "Soneto a Vermeer"




Soneto a Vermeer


De luto, a minha avó costura à máquina,
e gira um cata-vento em plena sala.
Vejo seu rosto, sombra que a janela
corrompe contra um pátio amarelado

de sol e de mosaicos. Sobre a mesa,
a tesoura, um esquadro, alguns retalhos
e a imóvel solidão. A minha avó,
com seus olhos azuis, o tempo acalma.

A minha avó é jovem, mansa e apenas
a limpidez de tudo. Sonho vê-la
no seu vestido negro, a gola branca,
contra o corpo de cão, negro, da máquina:

a roda, de perfil, parece imóvel
e a vida não se exila na beleza.




COSTA E SILVA, Alberto da. "Soneto a Vermeer". In:_____. Poemas reunidos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.


29.1.20

Alberto da Costa e Silva: "Imitação de Botticelli"




Imitação de Botticelli


Como a luz numa caixa de laranjas
ou a chuva sobre a mesa de verduras no mercado,
desce a manhã neste jardim, descalça,

e as flores que traz, na involuntária beleza,
parecem, contra seu corpo de verão enfunado,
musgo, limo, ferrugem, as feridas que os pássaros

abrem na casca lisa e perfeita de um fruto.





COSTA E SILVA, Alberto. "Imitação de Botticelli". In:_____. Poemas reunidos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.

27.8.18

Alberto da Costa e Silva: "Ode a Marcel Proust"



Ode a Marcel Proust

Teus olhos, no retrato,
destilam lágrimas
e abraçam silentes o horizonte.
Tua face, na noite,
é um soluço inútil.

Por entre as moças em flor,
revejo o silêncio das ruelas
dos teus passeios noturnos,
assombrados de insônia,
pelos caminhos insondáveis
do amor e da infância.

Retiras da memória
um mundo ignoto e novo,
e acompanhas, nas tuas vigílias,
os passos dos homens nos tapetes
e as palavras doces que não foram pronunciadas.

A cada instante, um encontro inesperado:
um peixe, uma gravata ou uma flor apenas entreaberta.
Tuas mãos repelem a morte, enluvadas,
e escrevem como se nada mais existira
a não ser a torre da matriz de Combray.

Proust, repercute em mim
toda a tua agonia, companheiro.
Deixa, Marcel, que recolha tua tristeza,
como lágrimas num lenço,
do tumulto das páginas de teus livros,
e
grave na minha boca
o sentido mais oculto de tuas palavras.

Teus olhos, no retrato,
derramam-se na bruma.
E colocas, agora, mansamente,
com requintes de estranha vaidade,
uma flor – talvez orquídea –
            na lapela.




COSTA E SILVA, Alberto da. "Ode a Marcel Proust". In:_____. Poemas reunidos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.




4.10.16

Alberto da Costa e Silva: "Elegia"




Elegia

Sofrer esta infância, esta morte, este início.
As cousas não param. Elas fluem, inquietas,
como velhos rios soluçantes. As flores
que apenas sonhamos em frutos se tornaram.
Sazonar, eis o destino. Porém, não esquecer
a promessa de flores nas sementes dos frutos,
o rosto de teu pai na face do teu filho,
as ondas que voltam sobre as mesmas praias,
noivas desconhecidas a cada novo encontro.
As causas fluem, não param. As folhas nascem,
as folhas tombam longe, em longínquos jardins.
Em silêncio, vives a infância de teus olhos
e, morto, és tão puro que te tornas menino.



SILVA, Alberto da Costa e. "Elegia". In:_____. "Poemas dos vinte anos". In:_____. Poemas reunidos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.

16.10.13

Alberto da Costa e Silva: "Hoje: gaiola sem paisagem"





Hoje: gaiola sem paisagem

Nada quis ser, senão menino. Por dentro e por fora, menino.
Por isso, venho de minha vida adulta como quem esfregasse na pureza e na graça o pano sujo dos atos nem sequer vazios, apenas mesquinhos e com frutos sem rumo.
Como se escovar os dentes fosse montar num cavalo e levá-lo a beber água ao riacho! Como se importasse à causa humana ler os jornais do dia!
Era melhor, talvez, ficar olhando, completo, perfeito, os calangos a tomar sol no muro, sem trair o silêncio, sentindo o dia, para conhecer o mundo, para saber que estou vivo.
Se não se têm esses olhos de infantil verdade, todas as cousas nos
enganam, tornam-se as palavras sem carne com que construímos a árida abstração que é o curral dos adultos.
Depois dos quinze anos, quase nada aprendemos: a dar laço em gravatas, por exemplo.




COSTA E SILVA, Alberto da. Poemas reunidos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.

5.6.13

Alberto da Costa e Silva: "Mais um poema de avô"






Mais um poema de avô


                                    Para o Filipe



Se te disserem, "vê, a vida é breve",

ao falarem de mim, no meu descanso,

repara ao teu redor, vê como para

em cada cousa o tempo e se faz leve.



Vou sob o sol desta manhã de março,

e eis o musgo, e eis o risco que no muro

pôs no meu teu olhar limpo de enganos.

Ou pus no teu o meu, o antigo e puro.



Que não te deixe a distração da brisa

pensar que já não és este minuto.

Cada instante que fomos sempre somos

e canta, ainda que pareça mudo.





Costa e Silva, Alberto da. Poemas reunidos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.