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quarta-feira, janeiro 15, 2014

O UNIVERSO DE BERGMAN


ANDERSSON, BIBI

Na família das actrizes de Bergman, Bibi Andersson representa, sobretudo, a força da carne. De facto, depois de ter desempenhado uma série de pequenos papéis no cinema do autor durante a segunda metade da década de 50, Andersson cedo passou a simbolizar o poder magnético da atracção e da tentação sexual no cinema do sueco. Em termos bíblicos, ela é a mulher que – sob o fascínio da serpente – convida o homem ao pecado (assim foram a Eva Vergerus e a Katarina Egerman que respectivamente interpretou em “Paixão”, de 1969, e em “Cenas da Vida Conjugal”, de 1973). Não será pois por acaso que, em “O Olho do Diabo” (1960), ela dá corpo à mulher que seduz o mais inveterado dos sedutores: Don Juan.

BJÖRNSTRAND, GUNNAR

Foi um dos actores-fétiche de Bergman com quem trabalhou desde a pré-história do cineasta (“Tortura”, em 1944, argumento de Bergman, realização de Alf Sjöberg) até a um papelinho, só uma vénia final, em “Fanny e Alexandre” (1982). Central na obra do cineasta, sobretudo nos anos 50 e 60, foi o empertigado advogado Egerman, com um casamento por consumar e uma ex-amante que faz dele o que quer (“Sorrisos de Uma Noite de Verão”), o racionalista escudeiro Jöns que voltou das Cruzadas descrente de Deus e da bondade dos pregadores (“O Sétimo Sêlo”), o frio Evald, inepto nas relações sentimentais (“Morangos Silvestres”), o pastor Ericsson que prega à sua pequena comunidade uma verdade em que começa a não acreditar (“Luz de Inverno”) – isto para citarmos apenas alguns papéis mais significativos.

JOSEPHSON, ERLAND

Amigo de longa data de Bergman (que conheceu nos anos 30, quando trabalharam juntos no teatro), Erland Josephson foi – de entre os actores que habitam o panteão bergmaniano – o que mais cedo começou a colaborar com o cineasta (em “Chove Sobre o Nosso Amor”, de 1946), mas também o que mais tempo demorou a impor-se como uma figura central no seu universo fílmico. Com efeito, esse estatuto haveria apenas de ser obtido por Josephson no início da década de 70, quando – sucedendo na função a Max Von Sydow – se assumiu como o último alter-ego de Bergman, o corpo onde o velho cineasta projectou o incomunicável isolamento de um homem contemporâneo que é incapaz de se relacionar com o seu próximo (vejam-se os papéis interpretados em “Cenas da Vida Conjugal”, de 1973, “Depois do Ensaio”, de 1984 ou “Saraband”, de 2003).

KULLE, JARL

Ainda que a sua passagem pelo cinema de Bergman tenha sido breve (participou apenas como actor em cinco filmes do cineasta), Jarl Kulle encarnou, nesse quadro, um tipo bem específico de figura masculina: o do sedutor (assim foi em “Segredos de Mulheres”, de 1952, e – trinta anos depois – em “Fanny e Alexandre”). De facto, nas suas comédias sexuais, o cineasta estabeleceu por vezes o corpo de Kulle como o centro de um jogo de volúpia sem fronteiras, onde a força do sexo fraco leva quase sempre a melhor. Para percebê-lo, basta ver “O Olho do Diabo” (1960), onde Kulle interpreta uma figura literária que o cineasta revisitou amiúde: a de Don Juan.

NYKVIST, SVEN

Trabalhou pela primeira vez com ele em “Noite de Circo” (1953), tornou para “A Fonte da Virgem” (1960), mas foi a partir de “Em Busca da Verdade” (1961), que se tornou o invariável director de fotografia de Bergman. Tão exímio no preto e branco (nunca nos esqueceremos de “O Silêncio”) como na cor (superlativo em “Lágrimas e Suspiros”, com que ganhou um Óscar, como em “Fanny e Alexandre”, com que ganhou outro), Sven Nykvist foi um parceiro criativo tão íntimo e fiel que Bergman, nas suas memórias, lamenta saber que nunca mais voltará a trabalhar com ele. Usava pouquíssimos projectores, era de uma enorme simplicidade de meios, e os resultados, assombrosos: é possível fotografar melhor do que em “A Máscara”?

THULIN, INGRID

Na assombrosa galeria de mulheres que são os filmes de Bergman, servida por um naipe de actrizes fiel e duradouro, Ingrid Thulin tem um lugar de destaque. O primeiro filme em que trabalharam juntos foi “Morangos Silvestres” (1957), onde faz a amargurada nora do professor Borg, em viagem para um possível divórcio. Será, mais tarde, a mulher sem esperança, desgostada da sua própria sexualidade quando não por ela abominada (em “O Silêncio” falará do «cheiro horroroso do esperma», do «cheiro a peixe podre» que o sexo exala; em “Lágrimas e Suspiros” mutilará a própria vulva com um pedaço de vidro partido, numa das cenas mais abissais de todo o cinema de Bergman). Despediu-se do cineasta com o papel de uma actriz alcoólica e gasta, envelhecida, em “Depois do Ensaio” (1984). Crueldade até ao fim.

ULLMANN, LIV

No cinema de Bergman (e por oposição à sensualidade afirmativa de Bibi Andersson) ela é a expressão consumada da fragilidade humana, um rosto sempre em vias de colapsar, que se mantém em equilíbrio precário entre duas emoções de sinal contrário, transformando-se assim num “ringue de boxe de sensações” (Deleuze) cujos micro movimentos o cineasta procura surpreender em grande plano. E, se é verdade que Ullmann chegou tardiamente ao cinema de Bergman (apenas em “A Máscara”, de 1966), também é verdade que, ao longo da fase final da carreira do cineasta, ela se constituiu como a testemunha preferencial da crueldade masculina (veja-se, por exemplo, a cena de “Lágrimas e Suspiros” em que ela se deixa humilhar por Erland Josephson) e, por essa via, dos fantasmas que habitam as relações conjugais.

VON SYDOW, MAX

A cena mais célebre de todo o cinema de Bergman tornou-se um ícone: um cavaleiro (Max Von Sydow) joga xadrez com a Morte, com o mar ao fundo e um céu nublado. Trata-se de atrasar o inevitável; o cavaleiro, acabado de chegar das Cruzadas onde não viu obra de Deus, precisa de saber mais, antes de se entregar ao desconhecido. O cavaleiro chegará a tentar fazer batota – mas a Morte joga bem e tem memória. Não tem é noção do que há do outro lado, sequer se há um outro lado ou apenas o oblívio. “O Sétimo Sêlo” foi, em 1957, um sucesso internacional (Prémio do Júri, em Cannes), firmou Bergman e pôs no mapa um dos rostos que iríamos sempre associar ao seu cinema: Max Von Sydow. Fizeram mais dez filmes juntos, depois o actor partiu para se tornar a vedeta internacional que ainda por aí anda.

(Vasco Marques e Jorge Leitão Ramos in revista Atual do semanário Expresso de 11/1/2014)

quarta-feira, dezembro 04, 2013

LA CADUTA DEGLI DEI (1969)

OS MALDITOS 
Um filme de LUCHINO VISCONTI

Com Dirk Bogarde, Ingrid Thulin, Helmut Griem, Helmut Berger, Renaud Verley, Umberto Orsini, Reinhard Kolldehoff, Charlotte Rampling, Albrecht Schönhals, Florinda Bolkan, Nora Ricci, Irina Wanka, etc.

ITÁLIA - RFA / 156 min / COR / 16X9 (1.66:1)

Estreia em ITÁLIA a 14/10/1969 (Roma)
Estreia nos EUA a 18/12/1969
Estreia em PORTUGAL a 1/4/1975
(Lisboa, cinema Império)


Aschenbach: «You must realize that today in Germany anything can happen, even the improbable, and it's just the beginning, Frederick. Personal morals are dead. We are an elite society where everything is permissible. These are Hitler's words. My dear Frederick, even you should give them some thought.»

Ao perguntarem-lhe porque, sendo ele italiano, não fazia um filme sobre o fascismo mas antes sobre o nazismo, Visconti respon­deu que, com "La Caduta Degli Dei", quizera dirigir uma tragédia e não uma comédia. Retratan­do a aliança fatal entre os industriais do ar­mamento e Hitler, o cineasta ergue um fresco terrível dos anos que antecederam a II Guerra Mundial. Partindo do particular para o geral, Visconti concentra a sua atenção numa poderosa família, os Von Essenbeck, donos de uma fábrica de aço, começando por nos introduzir nas lutas intestinais que dividem os componentes dessa família na busca de um sucessor para o velho patriarca, o Barão Joachim Von Essenbeck (Albrecht Schönhals). O nazismo é uma espécie de serpente que penetra lentamente naquele núcleo familiar, separando os fortes dos fracos e favorecendo a ascensão dos elemen­tos mais negativos. Que, precisamente, são os que, por interesse ou perversidade, melhor se adaptam às suas tácticas insi­diosas.

Os sobreviventes dos Von Essenbeck acabam assim por se converter nos pilares da nova or­dem e alimentar um monstro devorador – é o fortalecimento do complexo político-industrial que recolocará a Alemanha na posição de potência agressiva, tendo no Nacional-Socialismo um brutal instrumento de poder. O filme reflecte os últimos meses da agonizante República de Weimer, onde a crise que abala o capitalismo alemão abafa toda e qualquer esperança no futuro. As profundas necessidades da população face à subida galopante do custo de vida são exploradas por uma imprensa reaccionária e sensacionalista, que só facilita o aparecimento do Partido Único. Um Partido autoritário e revanchista, que começa a canalizar em proveito próprio os votos de todas as camadas da burguesia, levando-a a acreditar na tarefa messiânica de um novo e carismático líder: Adolph Hitler.  

Na mesma noite em que se encena a grande provocação destinada a fortalecer o nazismo, o incêndio do Reichstag (27 de Fevereiro de 1933), os membros da família Essenbeck reúnem-se num grande jantar, comemorativo do aniversário do velho Barão. Martin (Helmut Berger), o neto e seu aparente herdeiro, é uma pessoa desequilibrada e depravada, de tendências homossexuais, que se irá tornar numa das personagens centrais da tragédia anunciada. Para escândalo dos presentes, irá prestar uma cínica homenagem ao avô representando um travesti de Marlene Dietrich no “Anjo Azul” (uma das mais icónicas sequências deste filme). A mãe, a baronesa Sophia (Ingrid Thulin, actriz tornada famosa pelos filmes de Bergman), sensual e calculista, é de certa maneira a Lady MacBeth desta epopeia de corrupção e violência e quer que a chefia da fábrica fique a cargo do amante, Friedrich Bruchman (Dirk Bogarde), homem temerário, mas sem escrúpulos, capaz de tudo para alcançar a sua ambição.

Os dois outros pretendentes à coroa de aço são Herbert Thalmann (Umberto Orsini), homem de formação liberal, casado com Elisabeth (belissima Charlotte Rampling), sobrinha-neta do velho Barão e Konstantin (Renè Koldehoff), outro sobrinho, e um truculento oficial das SA sem ponta de carácter. Para além destas personagens centrais temos ainda Guenther (Renaud Verley), o benjamim da família, e o frio Aschenback (Helmut Griem numa prestação memorável), parente distante dos Essenbeck, sem interesse na chefia da fábrica da família mas, dado o seu fanatismo nazi, pessoa manipuladora e maquiavélica, que acredita sem reservas no triunfo e implantação do Nacional-Socialismo, contra tudo e contra todos.


Visconti revela-nos a personalidade de cada uma dessas figuras, colocando-as sob a sua câmara como um patologista examinaria ao microscópio um tecido canceroso. É essa biópsia cinematográfica que nos mostra a malignidade do processo sócio-económico do nazismo, tumor que geraria a terrível metástese destruidora de muitos milhões de pessoas. Nesse seu estudo, as cores são sombrias e duras. O filme contém mesmo uma das sequências mais violentas da obra viscontiana, a madrugada em que os SS surpreendem os SA após uma orgia e os massacram sem piedade para fortalecimento dos sectores mais direitistas do Partido. A tropa de choque que venceu para Hitler a batalha das ruas é assim sacrificada como um peão sem importância, nos jogos de poder que sa­cudiam a Alemanha do pré-guerra. Chamou-se a isso "a noite das facas longas" e não há dúvida que a evocação de Visconti dã uma ideia do que ela deveria ter sido. Mas a espiral de assalto ao poder não se fica por aqui. Continua em crescendo até ao final, até ao suicídio inevitável de Sophia e Friedrich, consumado que foi o controlo absoluto de Martin, o herdeiro final da dinastia. Aquela saudação nazi, diante dos cadáveres da mãe e do amante (usurpador do seu lugar de filho incestuoso), personifica o pacto / ajuste de contas entre a riqueza e a tirania. É uma imagem terrífica, por nos dar a entender que a partir dali tudo será possível, que todo e qualquer crime poderá ser justificado.


É evidente o paralelismo que Visconti estabelece com a verdade histórica, demonstrando, por a + b, em progressão aritmética, como se gera um monstro. Todos sabemos o que aconteceu na Alemanha durante esse annus horribilis de 1933. Constitui-se o III Reich, Adolph Hitler é nomeado chanceler, e Joseph Goebbels ministro da Propaganda. Cria-se a Gestapo (polícia secreta). Dissolvem-se os partidos políticos, menos o Nacional-Socialista, que nas eleições obtém 92% dos votos. É abolida a maior parte da legislação da extinta República de Weimer. A Alemanha abandona a Sociedade das Nações Unidas. Começam as primeiras manifestações anti-semitas e constroem-se os primeiros campos de concentração. Queimam-se livros e obras de tendência democrática. Verifica-se o êxodo de grande número de intelectuais e de homens ligados às artes, nomeadamente ao cinema – Fritz Lang é um deles, depois de ver proibido o seu “Testamento do Dr. Mabuse”.

Directa ou indirectamente, toda esta sucessão de acontecimentos é referenciada neste filme. Mas a cons­trução da obra não denuncia, sequer vagamente, qualquer tipo de simplismo demonstrativo. Visconti é na realidade um fabuloso narrador, um pintor de am­bientes admirável, um soberbo retratista da decadên­cia de uma sociedade. Houve quem apelidasse “La Caduta Degli Dei” uma tragédia de Shakespeare en­cenada como se tratasse de uma ópera de Wagner. Com efeito, o sopro gélido do destino dos Nibelungos é mais do que evidente, e a clareza de análise de um Shakespeare está sempre bem presente. A mistura entre a febre do poder e a corrupção, entre a perversidade e a doença, entre o assasslnio e o estupro, conduzem os Essenbeck a um afundamento gradual quando na aparência a Alemanha ressurgia triunfalista e conquis­tadora. E Visconti consegue transformar esta odisseia da mesquinhez e da traição, numa fa­bulosa lição polltica e num espectáculo sumptuoso, onde a espectacularidade dos meios, em lugar de abafar as intenções, as sublinha discretamente.


ENTREVISTA A LUCHINO VISCONTI
(por Stefano Roncoroni)

- Quais as origens do seu filme?
- A minha ideia era contar a história de uma família no interior da qual acontecem crimes que ficam praticamente impunes. Onde e quando, na história moderna, pode isso acontecer? Sómente durante o nazismo. Havia então massacres, assassínios em massa ou individuais, que ficavam absolutamente impunes. E foi assim que situei a história dessa família, que devia ser a história dos industriais do aço, na Alemanha, durante a ascensão do nazismo.

- A morte do velho Joachim tem o mesmo sentido que a do pai de Sandra, a do pai da familia Valastro ou a da familia Pafundi - quer dizer, de mortes que são antecedentes da acção e nas quais se apoia o drama?
- Sim, é verdade, há sempre um pai morto anteriormente, é você a chamar-me a atenção, não me tinha apercebido. É sempre assim nos meus filmes. O pai morto antes da acção representa até certo ponto o passado, e representa também o ponto de partida da própria história. Mas cada história deve ser interpretada de modo diferente. É preciso considerá-la sob um aspecto humano e social completamente diferente. A morte do pai Pafundi provoca a emigração de toda a família; a do pai Valastro é, como nos Malavoglia, em que o pai morre no mar, um exemplo para os sobrevi­ventes. O tema está igualmente presente em Vaghe stelle dell'orsa, é verdade, mas aí evoca, muito longinquamente, a morte de Agaménon, ou melhor, a vingança dos filhos contra a mãe, depois da morte do pai: é a Oréstia. Aqui, pelo contrário, a morte de Joachim é um facto político, é a eliminação dos homens livres na Alemanha. A propósito, há uma réplica em que Aschenbach diz: «Antes de as chamas do Reichstag se extinguirem, os homens da velha Alemanha serão reduzidos a cinzas, esta noite ainda». Quer dizer: todos os liberais, os que tinham ideias abertas, que ainda estavam ligados à República de Weimar, que não eram nazis. E é a noite do incêndio do Reichstag a marcar a dilta em que o nazismo começa a pousar a sua mão de ferro sobre o país. ( ... )

Parece-me que, de todas as interpretações do fascismo, a mais cor­recta, mais correcta que as de carácter freudiano e psicanalítico, é a que considera o nazismo a última fase do capitalismo no mundo, o último resultado da luta de classes levado à sua última consequência, à sua última solução, a de uma monstruosidade como o nazismo ou o fascismo e que, naturalmente, não pode servir de prelúdio a outra coisa senão a uma evolução no sentido socialista. Penso que as duas interpretações do fas­cismo a que me referi são estas; mas que eu tenha querido abonar uma ou outra, isso nego, pois considerei os acontecimentos como eram, e se em seguida os factos tomaram, por si, um aspecto diferente, se as minhas personagens em certos casos se tornaram símbolos, em vez de serem apenas personagens com os pés na terra, aconteceu quase sem eu querer, quase involuntariamente. (. .. )

- Não deu aval a uma interpretação do fascismo como perversão sexual, historicamente pouco credível ou, pelo menos, tendenciosa e simplificadora?
- O nazismo era negativo em tudo, mas quando se faz um filme sobre o nazismo é preciso pegar num dos lados negativos, não se podem incluí­-los todos, de outro modo, era preciso escrever a história do Terceiro Reich! Quis pegar num pequeno núcleo, então peguei numa família, e nesta família procurei desencadear os instintos mais baixos, menos nobres: é um exemplo. O que não quer dizer que todo o nazismo está ali. O nazismo tem outros aspectos, e eu considerei este lado, desprezando os outros, pois de contrário teria de escrever toda a história do Terceiro Reich, o que não era possível. (. .. )

- O filme começa com as personagens a prepararem-se, cada uma no seu quarto, para o jantar de festa em honra do tio Joachim. Dir-se-ia o princípio dos Buddenbrooks, mas de súbito estala a tra­gédia.
- A sala de jantar como lugar de reunião da família, encontro-confronto dos participantes nesse ritual típico, é algo que aparece em quase todos os meus filmes, no “O Leopardo”, ou em “Rocco e os Seus Irmãos”, por exemplo. E neste lembra os alvéolos de uma colmeia em que cada um trabalha na sua pequena célula para depois se reunirem todos num lugar central onde está a rainha-mãe. É sempre assim que estalam os dramas familiares. Nas grandes famílias chegam quase sempre assim. Efectivamente, não há dúvida que o primeiro jantar é um pouco inspirado no dos Buddenbrooks. Gostaria que a minha representação fosse ainda um pouco mais alemã, mas talvez eu não conheça, infelizmente, bastante bem a Alemanha, embora conheça bem as páginas de Mann. Para melhor compreender certas coisas, deveria ter vivido entre uma família patriarcal alemã.

- No entanto, na primeira versão do argumento não existiam alguns elementos importantíssimos que caracterizam a sua obra, por exemplo, o incesto, que se encontra em “Vaghe Stelle dell'Orsa”. O incesto parece ser o último gesto de dissolução moral, quer para Martin quer para a mãe.
- O incesto aconteceu pouco a pouco, ao longo da escrita do argu­mento, e foi fruto de uma progressão dramático-narrativa nada menos que gratuita, Aqui, é precisamente o último passo de Martin para conquistar o direito a ser um verdadeiro nazi, quer dizer, a não hesitar diante de nada, diante de nenhum crime. O nazismo, que numa primeira fase escolhe para peão no meio familiar um Konstantin violento, ruidoso, brutal, mas no fundo bastante inconsciente do alcance dos factos, vai servir-se, numa segunda fase, de Friedrich, que é acima de tudo um técnico, mas que acaba por ter para os nazis não só o defeito de uma certa cobardia perante o crime - resta-lhe um lampejo de consciência -, mas a pretensão de pensar pela sua própria cabeça. No fim, o nazismo prefere a solução extrema, Martin, um garoto absolutamente inconsciente, um degenerado, uma minhoca, sem qualquer problema de consciência, que não faz qual­ quer distinção entre a prima ou outra garota e se torna um instrumento sem vontade nas mãos dos nazis.

No entanto, Martin é uma personagem complexa, ressente-se de uma profunda deseducação pelo facto de a mãe ter apostado tudo em Friedrich, de no fundo amar e detestar ao mesmo tempo o filho e de o ter transformado num instrumento da sua ambição, embora pretendesse realizá-la através de Friedrich. Por isso, Martin alimenta, desde o início, o desejo de vingança contra a mãe. Assim, o incesto não acontece de um modo forçado, pois é precisamente o último acto de rebelião na crista de uma violência a princípio verbal e finalmente física. Aquela ideia das duas páginas do caderno de Martin, realizei-a precisa­mente para evidenciar esta progressão, para lembrar, ao longo do crescendo e no momento culminante, as suas origens. A ideia ocorreu-me durante a rodagem, quer dizer, quando o filho, moralmente, mata a mãe. Sofia vai esquadrinhar nos livros, nos brinquedos, nas lembranças do filho (naquela cena em que ela toca nos sapatos e nas fotografias de Martin­-menino, vestido de marinheiro), torna-se de novo maternal para com um filho-criança depois de ser possuída por ele.

Há um retorno freudiano, sem dúvida: o filho pequeno, os cabelos louros que ela compara aos seus (acha-os da mesma cor) e os cadernos de Martin que encontra em seguida, com aquele desenho onde a câmara no fim se detém, no qual está escrito «Martin totet Mutti» (Martin mata a mãe) e que representa, traçado por mão infantil, Martin-menino, uma faca na mão e uma mulher a sangrar. Ocorreu-me esta cena durante a rodagem, porque senti necessidade de fechar com uma imagem que lembrasse qualquer coisa que na criança já era, se não um verdadeiro começo, pelo menos um risco, um perigo. Então pedi para me procurarem uma criança que fizesse desenhos, e descobriram-na ali mesmo na Cinecittà, uma garota, e disseram-lhe: «Desenha uma criança que mata uma senhora». Ela desenhou a mãe e o garoto, a faca tive de ser eu a acrescentá-la porque a miúda não quis desenhá-la. É bem curioso. Por baixo do desenho escrevi o que teria escrito o garoto, «Martin totet Mutti» e, por baixo de outro, «Mutti und Martin».

- Que representa para si o celeiro? Ao mesmo tempo lugar de esconderijo e de exploração?
- Em pequeno refugiava-me muitas vezes no celeiro, quando tinha tido qualquer choque com a família ou com o meu pai. Talvez tenha ficado como um traço freudiano. Em Os Malditos”  também há qualquer coisa de “La Volpe Nella Soffitta”, um romance de Hugues onde se conta a história de um jovem nazi escondido no celeiro de um palácio alemão. Não é um verdadeiro nazi, mas um daqueles que no fim da guerra constituíam os famosos corpos francos da Letónia, formados por garotos loucos e sangui­nários, assunto que seria interessante ilustrar num filme. Um deles, a certa altura, pede guarida a um amigo, filho de uma família rica que vive perto de Munique, e este esconde-o no celeiro do palácio. Ali fica escondido por muito tempo com uma raposa de cuja existência os donos da casa estão a par e que de noite circula pelo palácio. Depois há uma história de amor entre o jovem e uma rapariga cega. É um romance extraordinário que começa com o golpe de Munique em 1922-23, na sequência do qual ocorre a fuga de Hitler. Este romance é o primeiro de três volumes, Hugues ainda deve escrever os outros dois. Há sempre influências literárias nos meus filmes. Por exemplo, ao longo de todo o episódio com Martin e Lisa, quando ele seduz a rapariguinha e mais tarde confessa que é o sedutor e a causa do suicídio dela, de facto inspirei-me na confissão de Stravoguine em “Os Possessos”, de Dostoievski.

CURIOSIDADES:

- Grande parte da sequência da “noite das facas longas” nunca foi exibida comercialmente nos Estados Unidos. Apenas em 2004 foi reposta integralmente na edição em DVD. Para além disso, o filme foi classificado como “X”, que é a cotação normalmente usada para filmes pornográficos. Estes americanos…

- “La Caduta Degli Dei” era o filme preferido do realizador alemão Rainer Werner Fassbinder (dizia que o tinha visto 30 vezes ou mais), que o considerava «talvez o maior filme de sempre, aquele que eu considero ter tanta importância para o cinema como Shakespeare teve para o teatro»


quinta-feira, julho 28, 2011

NATTVARDSGÄSTERNA (1963)

LUZ DE INVERNO
Um Filme de INGMAR BERGMAN



Com Ingrid Thulin, Gunnar Björnstrand, Gunnel Lindblom, Max Von Sydow, Allan Edwall, etc.

SUÉCIA / 81 min / P&B / 4X3 (1.37:1)

Estreia na SUÉCIA a 11/2/1963
Estreia nos EUA a 13/5/1963 (New York)
Estreia em PORTUGAL a 13/3/1964
(Lisboa, cinema Império)

"Drama that doesn’t deal with man’s relation to God is worthless"
Eugene O’Neill

“Luz de Inverno” é o segundo painel da trilogia realizada por Bergman entre 1961 e 1963 e a que o realizador deu por título "O Silêncio de Deus". Sucedeu a “Em Busca da Verdade” de 1961 e antecedeu “O Silêncio” de 1963. Mas, em “Luz de Inverno”, Bergman levou a depuração ao ponto mais extremo e raras vezes - senão nunca - nos vimos confrontados com uma nudez assim na sua obra. Nudez das duas igrejas - uma diurna, outra nocturna - que praticamente constituem o único décor do filme (só saímos delas, aliás, em viagem entre uma e outra, para o rio gelado junto ao qual Persson se suicidou e para as nuas casas de Marta e de Karin), nudez dos rostos dos protagonistas, caracterizados por forma a reforçar­ -lhe os traços e jamais a adoçá-los. Nudez da mise-en-scène (é o filme de Bergman em que o seu reinado é mais absoluto), nudez da banda sonora, onde o Bach de “Em Busca da Verdade” e de “O Silêncio”, dá lugar à total ausência da música, apenas interrompida pelos hinos religiosos tocados pelo organista durante os Serviços. Esse efeito de nudez é logo abissal no primeiro plano, quando, diante de nós, emerge em plano americano (rara figura na gramática bergmaniana) Gunnar Björnstrand paramentado, olhando-nos frontalmente e pronunciando as palavras «Nosso Senhor Jesus Cristo, na noite em que foi traído». Só depois (plano da Igreja e plano dos sete "comungantes") percebemos que estamos numa cerimónia religiosa e que Björnstrand conclui a sua prática. Esse longo e vertical plano dele é a primeira surpresa do filme, e primeira interpelação que do filme nos vem. A génese desta obra densíssima, como a de “Em Busca da Verdade”, é musical.

Bergman explicou: «O filme está estreitamente ligado com a peça musical a Sinfonia dos Salmos de Stravinsky. Ouvi-a na rádio, uma manhã, na Páscoa, e acordou-me para a ideia que gostaria de fazer um filme sobre uma igreja solitária nas planicies de Upsala. Alguém que entrasse na igreja, se fechasse nela, subisse ao altar e dissesse: «Deus, vou ficar aqui até que, de uma maneira ou de outra, Tu me proves que existes. E vai ser o fim. Ou o Teu fim, ou o meu». Originalmente, o filme era para ser sobre os dias e noites vividos por essa solitária pessoa na igreja fechada, cada vez com mais fome, cada vez com mais sede, cada vez mais expectante, cada vez mais entregue às suas próprias experiências, visões, sonhos, misturando sonho e realidade, enquanto travava esse estranho, sombrio e arrasante duelo com Deus (. . .) Depois, tudo se modificou, à medida que ia escrevendo. Modificou-se em algo de tangivel, algo de perfeitamente real, elementar e auto-evidente»

Esta passagem é muito importante. Se, formalmente, a grande modificação de “Luz de Inverno” em relação a “Em Busca da Verdade” é o abandono de um universo onírico (não há visões, não há sonhos, não há "filme dentro do filme", não há alucinações) essa unidimensionalidade (esse "realismo") tem a mesma base e a mesma vertigem. Bergman deu como subtítulo a “Luz de Inverno” a expressão "Certeza Desmascarada". Mas essa "desmascaração" (que tem que ver com a aludida nudez das faces) suspende mais a "certeza" do que o "cumprimento" dela em “Em Busca da Verdade” ?

Nesse filme, a certeza era "cumprida" porque a protagonista via - de facto - a porta a abrir-se e Deus que a vinha buscar e elevar aos céus, enquanto o irmão dela ouvia a Voz do Pai. Mas Karin já estava louca, o "deus" era um helicóptero-ambulância e a palavra do Pai talvez se resumisse àquele momento. Aqui não há milagres desses. Tomas Eriksson - o padre - não consegue palavras para ninguém: nem para Persson - que se suicida apesar da "confissão" do padre ou por causa dela -, nem para o sacristão (fabulosa personagem) nem para Marta, Ingrid Thulin na sua mais absoluta criação no universo de Bergman. E termina o filme numa igreja vazia, apenas com os seus acólitos e com a mulher que, apesar de escorraçada, teimou em segui-lo. Tudo é desastre nesse final sombrio. Mas o Pastor insiste na celebração do rito (apesar de ninguém ter comparecido) e a essa assistência (ou a essa não-assistência, deles e de nós formada) fala da Glória do Senhor, na presença e na ausência Dela, na verdade e na mentira Disso. Esse final tanto pode ser a irrisão suprema da crença do padre (e de todos nós, afinal) como a absoluta afirmação de Fé. «Clamei no deserto: preparai os Caminhos do Senhor» ou, como pretende outra tradução do texto bíblico: «Clamei: no deserto, preparai os Caminhos do Senhor».

Sabe-se - pelo próprio Bergman se sabe - que esse episódio foi sugerido durante a preparação do filme, quando pediu ao pai (como é conhecido, um pastor luterano) que o ajudasse a procurar igrejas. Estavam numa delas, quando o sacerdote foi ter com eles a pedir desculpa de não celebrar missa, devido ao reduzido número de presentes. O pai de Bergman - já muito velho e doente - ficou furioso e não aceitou a explicação. Paramentou-se e ele próprio oficiou, do início ao fim. Os comentadores têm querido ver nesse episódio (como na frase «o Pai falou» de “Em Busca da Verdade”) uma reconciliação com a imagem paterna nesta trilogia. Não aprecio particularmente esse jeito de "psicanálise" (de resto desmentida pela crueza com que os "Pais" de ambos os filmes, quer David no primeiro filme, quer o Padre neste, nos são dados) e prefiro ver, em qualquer deles, a irracional resposta a um chamamento que não se sabe explicar, mas tudo determina. Como Tomas, Bergman não tem respostas mas não recusa a pergunta que todos lhe dirigem à luz de inverno. De início, Gunnar Björnstrand dá a comunhão (nas duas espécies) a sete paroquianos. Desse grupo, três (a mãe, com a criança cheia de sono e o velho) são irrelevantes em termos de acção. Uma (a velha) só voltará a ter papel de relevo, quando lhe cabe anunciar o suicídio de Persson. Só os outros três são fundamentais: Marta e o casal Persson.


É este último quem emerge, após o quarto de hora inicial que se limitou a reunir em comunhão aquele estranho grupo, pontuado pelos planos do padre, da igreja e do altar gótico. E é Karin quem conduz o marido (silenciosissimo Max Von Sydow) até junto do padre, cuja radical dúvida (Tomas = Tomé = o Apóstolo da Dúvida) já tinha ficado exposta no episódio com o sacristão. É Karin quem narra a dúvida do marido (a história dos chineses). Perante o insistente silêncio deste (apenas o seu «Porquê ?») pontuado pelo "tic-tac" do relógio, Tomas, em vez de ouvir, fala e em vez de escutar a confissão, confessa-se. Mas destes dois momentos - conversa com o casal e o regresso de Jonas (outro nome com profundas ressonâncias bíblicas) para a conversa que só o conduz ao suicídio - emerge Marta, da profundidade de campo para o esconjurar e responder ao "silêncio de Deus" com o Amor ("aprender a amar").

É nesse momento do filme que Bergman introduz a mais inaudita e a mais ousada das suas sequências. Esse imenso grande plano (com a duração do "magasin") em que Ingrid Thulin se expõe e nos expõe. Corresponde à leitura da carta (a carta que Tomas nunca lera). Mas não há nenhum "flash-back" ou nenhum "encadeado". Logo que Tomas segura no texto, esse encarna na voz e na imagem de Ingrid Thulin. Nem sequer é um "grande, grande plano" como Bergman tantas vezes nos deu. A câmara mantém certa distância, enquanto Thulin fala da sua doença (dos seus" estigmas") do seu medo, da sua amargura, da sua força e da sua fraqueza.


E é quando diz que pediu a Deus: «Dá-me um sentido para a minha vida e eu serei a tua obediente escrava» é quando refere que no "Outono passado" a sua prece foi ouvida, através do amor dela por Tomas, que Bergman corta o plano pela única vez, para nos dar a ver velhas fotografias doutra mulher (supostamente, as da única mulher que teve, a única que amou, "realmente", - sabe-se - as fotografias da sua própria mãe). Aí, como nos futuros confrontos - cada vez mais ácidos e humilhantes - com Tomas, Marta (outro nome para Maria) é uma figura crística (a mulher das dores) e Bergman não negou esse "simbolismo", embora o tenha referido como "racionalização post­-facto". E acrescentou que Marta «é feita da matéria de que os santos são feitos, isto é histerismo, insaciabilidade e vida interior». Sintomaticamente, é Marta quem acusa o Padre de "indiferença para com Jesus Cristo" (fixação ao Pai, Esquecimento do Filho) e quem lhe diz que nunca acreditou na fé dele.


Quando essa "aparição" (não vejo outra palavra para caracterizar essa portentosa sequência) termina, Max Von Sydow está na frente do padre para lhe escutar a confissão e sair para a morte. «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?» é a exclamação de Gunnar Björnstrand antes de Ingrid Thulin voltar de novo "em carne e osso". Depois é a morte no gelo e a espantosa cena dos dois na escola. Mas não há outra escolha para Ingrid Thulin senão segui-lo, como não há outra escolha para Gunnar Björnstrand senão oficiar para ela. De certo modo, e neste "diário de um pároco de aldeia" que “Luz de Inverno” também é, o filme termina, como o de Bresson, com a frase: «Tudo é Graça». No sentido de «Tudo é Mistério». Tão inexplicável como a dúvida de Tomas ou a fé de Marta. Antes, os protagonistas, num dos planos mais misteriosos da obra de Bergman, cruzam­-se com um cavalo negro. É no momento em que partem juntos, na sua forçada reconciliação, antes de irem a casa dos Perssons anunciar a morte de Jonas. O único comentário de Karin a essa notícia é: «Agora, sei que estou sozinha». Desde que se cruzaram com o cavalo, todos o estão. Como figurado nos altares, “Luz de Inverno” é uma Via crucis. E a única relação trágica é a relação com Deus, como dizia O'Neill na frase que tantas vezes Bergman associou e citou a propósito deste filme silenciosíssimo e vazio.
(João Bénard da Costa)