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segunda-feira, junho 23, 2025

AVANTI! (1972)

AMOR À ITALIANA
Um Filme de BILLY WILDER



Com Jack Lemmon, Juliet Mills, Clive Revill, Edward Andrews, Gianfranco Barra, etc.

EUA-ITÁLIA / 144 min / COR / 
16X9 (1.85:1)

Estreia nos EUA a 17/12/1972
Estreia em Portugal (Lisboa) a 11/10/1973 (cinema S. Jorge)




J.J. Blodgett: «I don't object to foreigners speaking a foreign language. 
I just wish they'd all speak the same foreign language»

Uma das melhores características dos filmes de Billy Wilder é o nunca se saber se deverão ser catalogados como dramas ou como comédias, embora sejam invariavelmente muito divertidos. Herdeiro directo de um Lubitsch que venerava, Wilder sempre se divertiu a sublinhar os aspectos mais frágeis da natureza humana. “Sabrina” (1954), “Love in the Afternoon” (1957), “The Apartment” (1960) ou “The Fortune Cookie” (1966) constituem pinturas da cobiça e da ambição do poder de rara dureza, dentro da comédia americana. Por outro lado, em filmes como “The Seven Year Itch” (1955), “Some Like It Hot” (1958), “Irma La Douce” (1963) ou “Kiss Me, Stupid” (1964), o que se encontra em destaque é a visão muito pouco lisonjeira de Wilder relativa à atitude dos seus concidadãos perante o sexo.

Este “Avanti!” de 1972 (um filme que me traz uma rara e estranha sensação de felicidade sempre que o revejo - e por isso o amo incondicionalmente) tem um pouco de tudo, é uma brilhante e deliciosa comédia romântica, pincelada de humor negro, e onde Wilder corrosivamente se ri (e nós com ele) dos clichés que povoam as mentes dos cidadãos americanos. Quinta colaboração de I.A.L. Diamond e Jack Lemmon com Wilder, “Avanti!” é baseado na peça homónima de Samuel Taylor e fala-nos da viagem dum industrial de Baltimore, Wendell Armbruster III (Jack Lemmon) à ilha de Ischia, em Itália, onde vai buscar o corpo do seu pai, recentemente falecido num desastre de viação. Lá chegado, descobre atónito que no veículo sinistrado se encontrava a amante do pai, também falecida, e cuja existência desconhecia por completo. Rapidamente se apercebe que não se trata de um caso esporádico mas que efectivamente existia uma longa relação de dez anos entre os dois, que todos os anos se encontravam no mesmo hotel, onde já eram figuras populares, respeitadas por todo o pessoal. Irritado por essa inesperada revelação e pela lentidão da burocracia italiana, Wendell tem ainda que lidar com Pamela (Juliet Mills), a filha dessa mulher, que insiste para o casal ser enterrado lado a lado em solo italiano. A intransigência inicial de Wendell vai esmorecendo no contacto diário com Pamela, acabando por se transformar numa nova relação de amor que no futuro irá prolongar a história dos respectivos progenitores.


Mesmo com toda a indulgência do mundo dificilmente se percebe porque é que este magnífico filme de Wilder foi considerado durante anos como uma comédia menor do realizador. Na verdade estamos perante uma atmosfera melancólica e nostálgica, que poderia parecer pouco propícia ao desenvolvimento de uma comédia clássica. Mas tal não impede(antes pelo contrário) que “Avanti!” seja uma das melhores e mais ácidas sátiras de Wilder, e simultâneamente uma comédia romântica e delicada, que se atravessa docemente com um sorriso permanente. Ao longo de duas horas e vinte minutos o lado sórdido do poder, dos compadrios e da corrupção anda de braço dado com a ligeireza contagiante de uma história de amor. Só um grande cineasta, na posse total da sua criatividade, poderia conciliar dois lados tão antagónicos e revertê-los num fabuloso ensaio cinéfilo. Um filme claramente à frente do seu tempo, tendo sido por isso mesmo um rotundo fracasso de bilheteira, a ponto da obra se ter eclipsado durante tanto tempo. Hoje basta vê-la de novo para comprovar toda a sua genialidade.

A propósito de um dos grandes momentos deste filme, a cena passada na morgue, onde toda a subtileza de Wilder se revela na sua arte de misturar o cómico com o trágico, a ternura e a sátira, a ferocidade e o pudor, dou a palavra a João Bénard da Costa, que numa das suas exemplares “folhas da Cinemateca”, escreveu: «Se pensarmos friamente – tão friamente como Wilder dá a ver naquela radiosa paisagem – não há casal menos atraente do que o que se estabelece entre Lemmon e Juliet Mills. Por alguma razão, estão ligados por cadáveres (os do respectivo pai e da respectiva mãe) e tudo começa, para eles, numa morgue. Eles próprios cheiram tanto a morte como o barão das enfermeiras e o que os leva um para o outro nada tem de redentor. Querem três exemplos (todos geniais)? O primeiro pode ser o do banho matutino, com o “strip tease” algo obsceno de Miss Piggott e as cuecas perdidas por Lemmon. Quando os dois se aquecem ao sol, no rochedo, não são propriamente Adão e Eva perdidos – ou achados – no paraíso, mas dois corpos de quarentões flácidos em que o erotismo não será seguramente valor predominante. Talvez por isso Lemmon tanto se indigne com as fotos da “Polaroid”, embora, depois de as rasgar, guarde perversamente um bocadinho.

Segundo exemplo é a transferência de Miss Piggott do Quarto 126 para a Suite 121-122. Antecedida pelo passeio matinal da dita carregado de pormenores equívocos (as freiras e o “Love Story”, os quatro gelados todos para ela, etc.) a pujante Pamela entra exultante no quarto de Lemmon, até perceber que só a espera mais uma humilhação. Mas não era uma questão de peso, era uma questão de altura e a balança fatal se encarrega de compensar essa falta de tamanho. E ao segundo “avanti” é de vez, com Juliet Mills a ensinar a Jack Lemmon algumas coisas que provavelmente a mulher nunca lhe ensinou. Ensinamento que tem suprema ilustração no mais perverso plano do filme: Jack Lemmon a receber na cama já compartilhada o telefonema do homem do State Department e o rosto de Juliet Mills espelhado nas costas da cama revelando uma posição mais do que “comprometedora”. E há um pijama dividido ao meio: para ele as calças, para ela o casaco.»


O grande legado de “Avanti!” é a sua simplicidade, o modo fácil com que nos coloca um sorriso na alma, lembrando-nos da beleza do mundo e como a vida pode ser agradável se disfrutada de braços abertos. E não é por acaso que toda a trama se passa no Verão, essa estação do ano que é propícia aos amores e à poesia das madrugadas. No princípio Jack Lemmon é um homem de negócios, apressado e rude, que viaja para Itália apenas porque o sentido do dever o impele a fazer tal viagem. No fim do filme é um homem bem diferente aquele que regressa, um convertido romântico em busca do melhor que o futuro lhe poderá trazer ainda. O mesmo ocorre com Juliet Mills. A inglesa infeliz e paranóica com a obsessão das dietas transforma-se numa mulher linda e radiosa, com os mesmos anseios de Lemmon pelos prazeres descobertos.

No final o caixão do pai de Wendell regressará a casa mas com um ocupante diferente lá dentro. No enterro, já em solo americano, Lemmon fará provavelmente o pio descurso que tanto ensaiou. Por outro lado Miss Piggott regressará a Inglaterra onde voltará a ser caixeira onze meses por ano. Mas antes das respectivas partidas ambos selam a garantia de no final desse tempo voltarem a usufruir de uma felicidade conjunta, nem que seja por apenas um escasso mês de ilusão milionária num hotel de luxo de Itália. E não será essa meta de excepção, continuamente renovada, a chave da verdadeira felicidade?

CURIOSIDADES:

- Juliet Mills, irmã mais velha de Haley Mills, engordou cerca de 12 quilos para desempenhar o papel de Pamela Piggott. Foi a única intervenção digna de registo da actriz no mundo do cinema, visto ter-se especializado, ao longo da carreira, em papéis de séries televisivas.

-  Jack Lemmon ganhou o Globo de Ouro na categoria Musical / Comédia, tendo o filme sido nomeado para mais 5 Globos: Filme (Musical / Comédia), Realizador, Actriz (Musical / Comédia), Argumento e Actor Secundário - Clive Revill.

domingo, junho 15, 2025

VISKNINGAR OCH ROP (1972)

LÁGRIMAS E SUSPIROS
Um filme de INGMAR BERGMAN

 Com Harriett Andersson, Liv Ullmann, Kari Sylwan, Ingrid Thulin, Anders Ek, Inga Gill, Erland Josephson, Henning Moritze, etc.

 SUÉCIA / 92 m / COR / 4X3 (1.66:1)

Estreia nos EUA: 21/12/1972 (NY)
Estreia na Suécia: 5/3/1973
Estreia em Portugal: 14/12/1973 (cinemas Apolo 70 e Pathé)
Estreia em Moçambique (L.M.): 14/11/1974 (teatro Manuel Rodrigues)


A DOR EM VERMELHO

«Importam-se de me escutar por um instante, só por um instante? Apenas quero dizer-vos que fiz um filme para vós... Possivelmente só para vós. Escrevi uma história acerca de 4 mulheres que se encontram durante alguns dias em circunstâncias dramáticas. Escolhi 4 actrizes maravilhosas, minhas amigas pessoais, para o desempenho dos vários papéis. Harriet Andersson, Ingrid Thulin, Kari Sylwan e Liv Ullmann. Pedi ao meu amigo Sven Nykvist para fazer o trabalho das câmaras pela forma habitual. Pedi aos meus restantes colegas para virem de novo trabalhar comigo. Descobrimos uma antiga casa senhorial, rodeada por um jardim tranquilo. Durante 40 dias trabalhámos na feitura de um filme de que todos gostámos. O seu nome é "Lágrimas e Suspiros". Se me perguntassem se o filme é bom ou mau, teria de responder: 'Não sei!' Tudo o que sei é que é um filme pelo qual tenho uma particular estima. É por isso que vos convido a vê-lo. Quero que gostem dele.»

Poucos meses antes, Ingmar Bergman escreveu uma longa carta que posteriormente enviaria a todos os elementos da equipa de filmagem de "Lágrimas e Suspiros". Aqui fica um excerpto dessa carta:

«A acção desenrola-se no começo do século. As mulheres vestem roupas requintadas, caras, que dissimulam e valorizam. Os interiores devem ser construídos em função de todas as suas possibilidades de oferecer as condições de luminosidade que desejamos obter: alvoradas que não se parecem com crepúsculos, a luz doce de um bosque, a misteriosa iluminação indirecta dos dias de neve, a luz atenuada de um candeeiro de petróleo, a doçura dos dias de Outono com sol, uma vela perdida nas trevas da noite e todas as sombras movediças. Haverá uma particularidade: todos os interiores serão vermelhos, em tons diferentes. Não me perguntem porque devem ser assim, porque não sei. Eu próprio procurei encontrar uma razão e descobri explicações, umas mais tontas do que outras. A mais obtusa, mas também a mais defensável, é a de haver a possibilidade de existir qualquer coisa interna, já que desde a minha infância sempre vi o interior da alma como uma membrana humedecida com tintas vermelhas.

Os móveis, as decorações e outros acessórios devem ser muito exactos e devemos servir-nos deles segundo a nossa fantasia e na medida em que se adaptem às nossas intenções. Como nos sonhos: Qualquer coisa existe porque nós a desejamos ou dela temos necessidade nesse momento preciso. O drama comporta quatro protagonistas. Quatro mulheres. Vou-lhes apresentá-las rapidamente, sem qualquer ordem de classificação.

AGNÈS (Harriet Andersson) - É a proprietária da casa, que habita desde a morte dos pais. Nunca se decidiu a deixá-la. Faz parte de si desde o nascimento e nela deixou a sua vida derramar-se tranquila e imperceptivelmente sem prazer nem desgosto. Ela tem vagas ambições artísticas, pinta um pouco, toca às vezes piano, tudo de uma maneira um bocado patética. Nenhum homem entrou na sua vida. Para ela, o amor ficou um segredo bem guardado e nunca divulgado. Com cerca de 30 anos está atingida por um cancro no útero e prepara-se para deixar o mundo com a mesma calma e resignação com que viveu. Passa a maior parte do dia na cama, a grande cama do quarto de dormir dos pais. Mas ela pode levantar-se de vez em quando, até que as dores a prostem de novo. Nunca se queixa e não pensa que Deus seja cruel. Nas orações endereça a Cristo as suas humildes esperanças. Está terrivelmente descarnada e o seu ventre inchou como se estivesse grávida de vários meses.

KARIN (Ingrid Thulin) - Dois anos mais velha do que Agnès, fez um casamento rico e instalou-se noutra região. Verificou depressa que o casamento foi um fracasso. O marido, vinte anos mais velho do que ela, só lhe inspira repugnância, física e moral. Mãe de cinco crianças, não parece, no entanto, tocada pelas suas maternidades nem pela tristeza do seu casamento. Aparece sempre irrepreensível e passa por arrogante e de contacto difícil. A sua lealdade a respeito do casamento é inabalável. Mas este aparente controlo de si mesma dissimula um ódio impotente contra o marido e um rancor contra a vida. A sua angústia e o seu desespero só se manifestam nos sonhos, que a atormentam de tempos a tempos. Não obstante esse furor contido, tem momentos de afecto, de ternura e de convivência. Mas esta imensa riqueza interior está escondida e inutilizada.

MARIA (Liv Ullmann) - É a benjamim das irmãs, também rica e bem casada com um homem belo e de excelente posição social. Tem uma filha de 5 anos e ela própria é uma criança mimada, doce, alegre, risonha, constantemente curiosa e sensual. Dá um grande valor à sua própria beleza e às possibilidades de prazer que o seu corpo lhe oferece. Não tem a menor ideia do mundo que a rodeia, basta-se a si mesma e nunca se atormenta com constrangimentos morais, perante si e os outros. A sua única regra é agradar.

ANNA (Kari Sylwan) - É a criada da casa. Com cerca de 30 anos, jovem ainda, teve uma filha que Agnès tomou à sua conta. Isto criou um secreto laço entre as duas, uma amizade tácita e nunca expressa entre duas mulheres sós. A criança morreu aos 3 anos, mas o laço entre elas permaneceu. Anna é muito taciturna, muito esquiva, de contacto difícil. Está sempre presente, vê, espia, escuta. Tudo é pesado em Anna: o seu corpo, o seu rosto, a boca, o olhar. Não diz nada e talvez nem pense. Quando o filme começa, a situação é a seguinte: A doença de Agnès agrava-se bruscamente e o médico declara que ela tem já pouco tempo de vida. As duas irmãs (a sua única família) vêm passar o tempo que lhe resta à sua cabeceira.»


Este é apenas o primeiro capítulo dos dezasseis que compõem a carta escrita por Bergman na ilha Farö, a 3 de Junho de 1971, uma 5ª feira. Tal como era usual na maioria dos grandes cineastas, nada é deixado ao acaso, tudo é planeado ao mais pequeno pormenor de modo que, quando chegasse o tempo da rodagem, bastava apenas filmar tudo quanto se encontrava há muito visualizado na cabeça do realizador. Raramente Ingmar Bergman terá ido tão longe na expressão cinematográfica do sofrimento físico e moral, o quadro de um universo sem esperança, a perseguição de seres feridos, encarcerados na sua solidão: «Senti sempre uma impressão estranha perante os mortos que pude ver à minha volta, na minha família ou entre os meus amigos. Sempre tive, no momento em que morreram, ou nos instantes precedentes, a impressão da sua solidão. A minha imaginação sempre foi apaixonadamente alertada por esta solidão que precede a morte... Quando se sofre, o sofrimento ajuda, mas quando se morre, está-se sózinho.»

Poucos cineastas terão levado tão longe o dispositivo da representação e narração cinematográficas como Bergman e poucos também, como ele, terão compreendido que a estética do instante perfeito não tem a ver com o puro prazer formalista mas tem, sobretudo, a ver com a necessidade da arte saber escolher os seus referentes e se denunciar abertamente irreal, irrealista, artificial ou, se quiserem, demonstrativa e exemplar. Finalmente, recusando agora a metafísica católica, a aventura de Bergman continua a ser a do espírito, a de uma membrana interior a que ele, aliás sem ingenuidade, chama alma e a que nós – à falta de melhor – poderíamos dar o nome tão simples de consciência.

Esta obra de agonia poderia ser uma ilustração literal da famosa frase de Cocteau: «O cinema é a arte de filmar a morte em acção.» Nesta fúnebre oratória, o autor cria areais de lirismo campestre (as quatro mulheres de vestido branco passeando-se no parque), que alternam com cenas de uma crueza absoluta (em particular aquela, horrorosa, em que Karin afunda na vagina cacos de vidro). Doçura e dor estão indissoluvelmente ligadas na imagem admirável da criada semi-nua com a morta nos seus braços no final do filme, qual majestosa Pietá, que se converte num dos mais sublimes e arrepiantes planos da história do cinema. E, em voz-off, ouve-se o que Agnès escreveu na última página do seu diário:

«Dia de verão. Está fresco devido à proximidade do outono, mas o tempo está bonito e calmo. As minhas irmãs, Karin e Maria, vieram ver-me. É maravilhoso podermos estar juntas como dantes, quando éramos crianças. Sinto-me muito melhor, pudemos até dar um passeio as três, um grande acontecimento, sobretudo para mim que não saio de casa há tanto tempo. Passeámos calmamente até ao velho baloiço suspenso do carvalho. Em seguida ficámos sentadas as quatro (Anna também estava connosco)  e deixámo-nos embalar, vagarosamente, docemente. Fechei os olhos e senti o vento e o sol acariciarem-me o rosto. As dores tinham desaparecido. Os seres que mais amo no mundo estavam ao pé de mim, podia ouvi-las falar baixinho à minha volta, sentia a presença dos seus corpos. O calor das suas mãos. Mantive os olhos fechados, queria reter esses instantes e pensava: isto é certamente a Felicidade. Não posso desejar nada de melhor. Neste momento, e durante alguns minutos, posso saborear a plenitude. E sinto-me cheia de gratidão para com a minha vida que me dá tanto.»


O que mais me apaixona - é o termo - neste filme de Ingmar Bergman é a serena simplicidade da narrativa, em profundo contraste com o universo carregado de “gritos e murmúrios” que povoa esta “homenagem à mãe”, como o próprio Bergman confessou. Neste aspecto, neste silenciar de sentimentos gritados, neste serenar faustoso de emoções em fúria, Tchekov seria o termo de comparação ideal e foi François Truffaut, por isso mais uma vez certeiro, que disse que este filme começava como “As Três Irmãs” e terminava como “O Cerejal”. Se se tratasse de Godard, bastaria dizer que se falava “do mais belo dos filmes”, porque isso seria dizer tudo. Em algumas entrevistas, Bergman declarou que, em “Lágrimas e Suspiros”, quis exprimir quatro aspectos da sua mãe, uma mulher extraordinária, que ele adorava. Para o filme, esforçou-se por descobrir alguma coisa dela. Sem pretender traçar um retrato ou uma biografia, encontrou um meio de melhor a conhecer (e de melhor a dar a conhecer), fazendo interpretar os diferentes caracteres por quatro mulheres, três irmãs e uma criada.


Obcecado pelo tempo, “Lágrimas e Suspiros” inicia-se por algumas panorâmicas sobre relógios que marcam o tempo. Da natureza, onde reina a paz, para o interior de uma mansão sueca, nos fins do século passado. Os relógios estabelecem esta ligação, caminhando da vida para a morte, do exterior para o interior, da serenidade da madrugada para a agonia. «É manhã e eu sofro», escreve Agnès (Harriet Andersson) no seu diário, depois de ter olhado pela janela. Uma frase que encerra, desde logo, uma das dualidades mais graves que o filme de Bergman procura analisar: nasce o dia e Agnès morre lentamente. Nascimento e morte, dualidade que terá, no final do filme, termos de uma equação equivalente; da morte (da Agnès) para o renascimento da vida, nessa majestosa Pietá que se converte num dos mais sublimes e arrepiantes planos da história do cinema. Numa mansão da Suécia, portanto, em fins do século passado (em Faro, mais precisamente, ilha para onde Bergman se costumava desterrar, sempre que queria rodar um novo filme, irá assistir-se à agonia de uma mulher: Agnès, no seu leito de moribunda. Sofre. Pelos sintomas, pode pensar-se num cancro no útero. A doença mina o corpo que se crispa de dores e grita a sua revolta, perante a impotência, o medo, o amor de quem a rodeia. À volta de Agnès, duas irmãs: a mais velha, Karin (Ingrid Thulin), a mais nova, Maria (Liv Ullman) e uma criada, Anna (KarI Sylwan). Agnès vivia isolada no campo, acompanhada unicamente por Anna. Quando a morte se aproxima. Karin e Maria viajam para junto da irmã, procurando auxiliá-la nos derradeiros momentos de vida. Mas a doença, a dor, a proximidade da morte, finalmente, a presença física de um corpo sem vida faz oscilar o equilíbrio existente entre as três irmãs.

Assim, se o centro de “Lágrimas e Suspiros” é, efectivamente, a agonia de Agnès, essa agonia acaba por repercutir-se a vários níveis, sendo como que a mola accionadora de um mecanismo que irá definir as relações entre as irmãs, entre irmãs e respectivos maridos (relações estas conhecidas através da introdução de alguns flashbacks) e entre irmãs e criada. Através de uma despojada meditação sobre a morte (e a vida) o amor (e o ódio), a dor e a doença (e a felicidade), Bergman retrata-nos uma época, uma sociedade de privilégios e os preconceitos de uma classe, a falência de uma instituição (o casamento) os laços instáveis de uma relação (a família), o desespero de um mundo descrente de Deus (e a fé vertiginosa no homem e nas possibilidades da sua obra), as relações de profundo desequilíbrio social que se estabelecem entre as diversas classes (irmãs e maridos, em função de Anna), etc. Um acontecimento motor desenrolará um mecanismo preciso. A genial maestria de Bergman irá, porém, pôr a funcionar este mecanismo, desmontando-o, quase sem qualquer tipo de ficção a servir-lhe de suporte. Na verdade, toda a “história” de “Lágrimas e Suspiros” se resume a duas linhas: a agonia de uma mulher, assistida por duas irmãs e uma criada. Não há, portanto, vestígios de uma intriga clássica. Situações, sentimentos, emoções, memória, tudo isto resulta de uma admirável mise-en-scène, na qual Bergman se serve predominantemente de olhares, de gestos, de movimentos, por vezes imperceptíveis, de sons (toda a banda sonora tem um volume de som aparentemente desmedido, fazendo com que os ruídos assumam uma importância decisiva na criação de um ambiente de uma densidade invulgar), de cor. 


Sobre a cor. Raras vezes a cor adquiriu no cinema um papel tão significativo como neste filme de Bergman. Tanto mais que a secura e a nudez dos cenários, o hierarquismo das composições, a gravidade de todos os movimentos (dos gritos aos murmúrios, do trágico estertor aos sussurros de reconciliação) parecem participar no resfolegar sanguíneo, onde a preponderância de tons vermelhos indica uma única substância unificando a vida e a morte: o sangue. Na verdade, é o vermelho cor de sangue, quente e vivo, que dá a tonalidade a esta célebre obra de Bergman: são as paredes da mansão, são as alcatifas, são, sobretudo, as fusões de planos nas admiráveis viragens a vermelho, donde emergem e onde desaparecem náufragos rostos. O vermelho, plasma de vida e de morte, sinaliza toda a obra, pautando espaços, silêncios, unindo e desagregando imagens. Nestes cenários de uma cor dominante, as figuras centrais: de início, o branco dos «anjos da guarda» de Agnès (quando o filme principia, as irmãs deixaram-se adormecer, velando por Agnès: a dominante é o branco de uma pureza ofuscante). Depois, à medida que a morte vai ganhando terreno, o negro do luto invade o écran. Mas, outras cores delimitam planos e cenas (o castanho, com Maria, a filha e a boneca; o azul, quando Anna acorda e atravessa uma sala por onde a manhã procura romper).


O rosto. O rosto, sua imagem e memória. Em "Lágrimas e Suspiros", quatro rostos abrem como que o episódio relativo a cada um. Quatro rostos de mulher, cada um deles interrogando-se sobre uma personagem; "Agnès, Maria, Karin e Anna. Agnès, a moribunda, recorda a infância, junto à mãe, cujos carinhos inveja. Um flashback reconstitui tempos passados: uma sessão familiar com lanterna mágica. De resto, Agnès é uma figura de certo modo neutra, passiva, limitando-se a lutar ingloriamente contra a morte. A sua função, no interior do filme, é mais de centro aglutinador do que de sujeito de acções. O cancro mina-lhe as entranhas que nunca conheceram contactos. Karin, a irmã mais velha, é, por seu turno, a figura dominante. Violenta, odiando um marido que despreza (um diplomata, cuja silhueta se descobre igualmente num flash back), frígida e seca, Karin detesta qualquer tipo de relação física. Para contrariar o marido, amputa-se, introduzindo no sexo um pedaço de vidro. Repele todas as hipóteses de relações possíveis (quando Anna a ajuda a despir-se, manda-a embora, porque o olhar da criada lhe parece suspeito; com a irmã, recusa quase sempre o diálogo, o contacto, com excepção de uma cena, que logo renega). Maria, a irmã mais nova, frívola e sensual, casada com um marido mais ou menos impotente, amante do médico da família, recorda também o suicídio frustrado do marido, quando este descobre as relações existentes entre ela e o médico. Receosa, apavora-se com a morte da irmã. No seu universo de frivolidade e de instantes fugazes de prazer vividos numa casa de boneca, não suporta a presença obcecante da morte. A única saída para tais encontros é a fuga. 



Anna, a criada, é a sombra da família, uma mulher humilde, dedicada, discreta, silenciosa. No enquadramento dos planos de Bergman, Anna ocupa quase sempre um plano secundário, afastado da câmara, movimentando-se por detrás das irmãs. É também a presença reconfortante, quente, a dádiva generosa. Quando todos fogem da morte, Anna é a única que despe a camisa e oferece o calor do seu peito ao rosto frio de Agnès, que procura a paz e a doçura que lhe permitam transpor os limites da vida e entrar no desconhecido. Tal como Agnès (mas de forma diferente), Anna não tem um papel activo nesta obra que seria de um maior e angustiante pessimismo sem a sua presença. Reservados para Karin e Maria os papéis activos (elas detêm o poder, só elas podem resolver, mandar, deliberar) Agnès e Anna assumem a solidariedade dos marginais. Tendo perdido uma filha, Anna faz de Agnès a sua “menina”, que não se cansa de ouvir chorar e chamar por ela. Estes longínquos chamamentos de fraternidade (que só Anna entende, que só Anna não teme) conduzem a essa Pietá sublime de que atrás se falou. Mas o sublime não se concentra neste plano indescritível. Perpassa por toda a obra, infiltra-se de forma absoluta nessa figura de uma doçura inenarrável que Kari Sylwan soberbamente interpreta. Na longa galeria de retratos de mulher que o cinema até hoje nos ofereceu, esta Anna de Bergman ocupará, seguramente, destacado lugar.


Quatro rostos num terrível huis clos. O grito de Angès atravessando a casa: «Ninguém me socorre!». O olhar dos vivos, impotentes perante o espectáculo da morte. A terrível angústia, expressa numa decantada austeridade, numa secura, numa simplicidade de processos que definem um “clássico”. Um filme onde Bergman se expõe integralmente. Com as suas dúvidas, os seus temores, a sua esperança. Um Bergman barroco e metafísico, como o fora Bergman de “O Sétimo Selo” ou “A Fonte da Virgem”? Não, um Bergman linear e profundamente humano, atento ao instante, interrogando o homem, num universo que Deus parece ter abandonado de vez. Quando a morte parece ter conquistado terreno, quando a injustiça e a crueldade mesquinha dos interesses se julgaria ter triunfado, eis que Anna retira do tempo um diário que abre e soletra. É Agnès quem regressa, é a vida, o sol, a natureza que revivem. «Quarta-feira, 3 de Setembro. Sente-se o ar do Outono, embora tudo esteja ameno. Sinto-me muito melhor. As minhas irmãs, Karin e Maria, vieram ver-me. É bom estarmos juntas, como nos velhos tempos. Podemos até ir dar um passeio as três, é um acontecimento para mim. Há muito que não saía de casa. Corremos a rir para o velho baloiço, que não víamos desde crianças. Sentámo-nos as três e Anna empurrou-nos devagar. Todas as minhas dores tinham passado. As pessoas de quem mais gosto no mundo estavam comigo. Podia ouvi-las tagarelar. Senti a presença dos seus corpos e o calor das suas mãos. Quis agarrar-me a esse momento e pensei: Venha o que vier, isto é felicidade. Nada de melhor posso desejar. Agora, por poucos minutos, posso experimentar a perfeição. Sinto grande gratidão pela minha vida, que tanto me deu.» Excerto de um diário, de que se ouve ler ainda uma passagem; «Quinta-feira, 30 de Setembro; Recebi a melhor prenda que alguém pode ter na vida. A prenda tem vários nomes - solidariedade, camaradagem, contacto humano, afeição. Creio que o que se chama graça.»

"Lágrimas e Suspiros" ("Viskningar Och Rop", no seu título original) teria a sua primeira apresentação pública em Nova Iorque, ainda em 1972, próximo do Natal, no dia 21 de Dezembro. Em todos os outros lados, o público só teria acesso à última grande obra do cineasta sueco durante o ano seguinte, inclusivé no seu país natal, a 5 de Março, em Estocolmo. Em Portugal o filme foi estreado no dia 14 de Dezembro, nos cinemas Apolo 70 e Pathé, mas a cena da introdução dos cacos de vidro na vagina de Karin, foi de imediato cortada pela censura ainda existente no nosso país. Curiosamente, é a única cena em que o sangue aparece neste filme. No que me diz respeito, só tive oportunidade de ver esta obra-prima absoluta de Ingmar Bergman quase um ano depois, no dia 15 de Novembro de 1974, uma sexta-feira à noite, no Teatro Manuel Rodrigues em Lourenço Marques, então já sem qualquer corte. Sven Nykvist ganharia o Oscar pela melhor cinematografia e outras 4 categorias seriam também nomeadas: Filme, Realizador, Argumento original (todas estas três creditadas a Ingmar Bergman) e ainda o Guarda-Roupa (Marik Vos-Lundh).


segunda-feira, março 10, 2025

THE GODFATHER TRILOGY (1972 - 1974 - 1990)


O PADRINHO
Um filme de FRANCIS FORD COPPOLA

Com Marlon Brando, Al Pacino, James Caan, Robert Duvall, Richard S. Castellano, Diane Keaton, Talia Shire, Sterling Hayden, Al Lettieri, John Marley, John Cazale, etc.

USA / 180 m / COR / 16X9 (1.85:1)

Estreia nos EUA: 11/3/1972 (NY)
Estreia em Portugal: 24/10/1972 (Lisboa, cinemas Berna, Tivoli e Vox)
Estreia em Moçambique: 14/1/1973 (LM, teatro Manuel Rodrigues)


«I'm gonna make him an offer he can't refuse»


O PADRINHO – Parte II
Um filme de FRANCIS FORD COPPOLA

Com Al Pacino, Robert De Niro, Robert Duvall, Diane Keaton, John Cazale, Talia Shire, Lee Strasberg, Michael V. Gazzo, G.D. Spradlin, etc.

USA / 220 m / COR / 16X9 (1.85:1)

Estreia nos EUA: 3/12/1974 (San Francisco)
Estreia em Portugal: 14/10/1977 (Lisboa, cinema Eden)

«Keep your friends close, but your enemies closer»


O PADRINHO – Parte III
Um filme de FRANCIS FORD COPPOLA


Com Al Pacino, Diane Keaton, Talia Shire, Andy Garcia, Eli Wallach, Joe Mantegna, Sofia Coppola, George Hamilton, Bridget Fonda, Raf Vallone, etc.

USA / 162 m / COR / 16X9 (1.85:1)

Estreia nos EUA: 20/12/1990 (California)
Estreia em Portugal: 15/03/1991


«Real power can't be given. It must be taken»



"The Godfather" estreou-se a 11 de Março de 1972, em New York, faz amanhã 53 anos. Meio século é muito tempo, uma vida inteira, mas a saga está longe de se esgotar. A cada visionamento há sempre algo a descobrir. É assim o cinema dos grandes mestres, é assim o cinema de Francis Ford Coppola: rico, profundo, atravessado por mil matizes, que têm sempre o condão de nos encantar. Com o passar dos anos, a trilogia do "Padrinho" ultrapassou o simples estatuto fílmico para se enraizar como um ícone na cultura americana do século XX e não só. Um pouco por todo o lado se escreveram, e continuam a escrever, críticas, livros, teses sobre os filmes e sobre o impacto e influência por eles desencadeados. As citações e alegorias são permanentes e não é preciso ser-se cinéfilo para se sentir uma admiração sem limites por estas obras de arte de Coppola.



A minha estreia pessoal ocorreu no Cine 1000, em Johannesburg, no dia 6 de Outubro de 1972, uma sexta-feira. Apesar de não ter entendido muita coisa (dadas as minhas limitações da língua inglesa na altura), ficou-me desde logo a força das imagens na retina. Passados três meses revi o filme no Teatro Manuel Rodrigues, em Lourenço Marques (a 19 de Janeiro de 1973), agora já devidamente legendado. «I believe in America. America has made my fortune». Assim começa, com estas palavras que vêm do escuro, "The Godfather". A longa sequência inicial do filme é uma das introduções mais inquietantes da história do cinema, sobretudo para quem vê o filme pela primeira vez. Alternando entre a luz aberta dos exteriores e o tom rembrandtiano dos interiores, essa longa sequência, a do casamento da filha de Don Vito Corleone, tem uma concepção musical cujo movimento mais intensamente emotivo é o do encadeado que nos faz passar da pose de fotografia de família ao plano em que Don Vito conduz a noiva para a pista de baile, num gesto que prefigura já a dança.


"The Godfather" está povoado destes pequenos instantes em que se parece sentir a elevação poética das coisas domésticas. Coppola põe neles a mais romântica sinceridade emocional. Mas o cineasta sente-se obrigado a disfarçar o que seja emoção subjectiva. Deve, portanto, universalizar as emoções, atribuindo-lhes um prolongamento metafísico ou racional: vai, por isso, procurar convencer-nos de que a mola real destes rituais, dos beijos que os homens trocam, das mãos que se afloram provocando o rubor dos pintores renascentistas, só pode ser a ambição do poder. "The Godfather" transforma-se então num Macbeth moderno, em que recorrem as mesmas imagens: sangue e morte, escuridão e insónia. Lembro ao acaso: a aterradora impertinência da cabeça do cavalo sob um lençol; a genial montagem do atentado contra Don Vito; o assassínio retórico de Sony; o lúgubre deslizar do personagem de Michael para o sonambulismo, depois da vigília ao pai no hospital.


"The Godfather, Part II" não tem essa poesia escandalosamente simples, como se tivesse deixada lá por acaso. É o filme de um cineasta que acaba de perder a juventude e chegou à idade da experiência. Não admira que nele a poesia ceda o lugar ao ensaio: "The Godfather, Part II" quer ser a análise do percurso implacável e brutal de um homem obsessionado com o seu próprio poder. Mas mesmo este modo de o definir é ainda uma concessão ao romanesco. Não é só o conceito do Poder ou o exercício pragmático da autoridade, mas igualmente uma teia de fundo de corrupção política e as estruturas económicas e sociais do capitalismo, que o filme toma por objecto.


"The Godfather, Part II" começa no grande plano do rosto de Michael. Começa onde acabava o primeiro filme, no beijo de vassalagem que alguém depõe na mão de Michael. Depois, os personagens saem e fica, soberana, a imagem da cadeira vazia. Todo o posterior desenvolvimento está, em potência, nesta imagem-conceito. Do primeiro para o segundo filme assiste-se a uma mudança (melhor seria dizer, ao aparecimento) da perspectiva moral. Num jogo de rigorosas equivalências, de um filme a outro passa-se de um tempo antigo, esplendidamente anacrónico e afectivo, a um tempo moderno, em que a vontade domina, mesmo quando a mecânica de conspiração em que nele assentam as relações humanas nos faça lembrar o que fictícia ou autenticamente tenha sido o pior do Império Romano.


Na teia dessas conspirações, a solidão é menos do que humana e não pára de se expandir. Não há exemplo mais acabado de loner na obra de Copolla do que Michael Corleone. Em "The Godfather" o assunto era a morte do pai. Em "The Godfather, Part II" é o espectáculo da solidão do filho: uma solidão que pretende demonstrar pelo absurdo a inutilidade do poder, uma solidão que exprime, como o auto-retrato de Van Gogh, um profundo desejo de comunicação com os seus semelhantes.



Por norma, existe a tendência de se considerar a 3ª parte como o “patinho feio” da trilogia. Nada de mais erróneo. Sem esse epílogo ficaria sempre um vazio, a sensação da história incompleta. E basta recordar aquela montagem final, ao som da Cavalleria Rusticana (vinte minutos que deveriam constar do programa curricular de qualquer curso de cinema), para compreendermos estar em presença de uma jóia rara. À semelhança, aliás, do que já acontecia nas duas primeiras partes, nomeadamente na segunda (talvez a mais perfeita de todas), em que a técnica do flashback é elevada à arte suprema de bem contar uma história, a qual vai alternando a actualidade (fim dos anos 50, durante a pré-revolução cubana) com os anos 20 (inícios da imigração maciça italiana para os EUA). Vamos assistindo à tomada do poder por parte de Michael Corleone (Al Pacino), enquanto, paralelamente, nos é mostrada a ascendência do pai, Vito Corleone (Robert De Niro), que no primeiro episódio da saga (localizado entre 1945 e 1955) seria, como se sabe, interpretado por Marlon Brando. Coppola chegou a afirmar que a razão base de ter feito o segundo filme foi exactamente o desejo de mostrar as vivências de um pai e de um filho em simultâneo, como se elas acontecessem na mesma época.


O filme de 1972 iria constituir um êxito sem precedentes, que ajudou a catapultar as carreiras de Coppola e Al Pacino, ao mesmo tempo que Brando voltava a ocupar o lugar que por mérito próprio sempre lhe pertencera: o do melhor actor da sua geração. Até Mario Puzo, que tinha escrito o romance original, não escondeu que o tinha feito a pensar em Brando na personagem de Vito Corleone. Os produtores, no entanto, não lhe queriam dar ouvidos, uma vez que o célebre actor tinha recentemente acumulado uma série de reveses comerciais, já para não falar na sua personalidade, difícil e conflituosa. Avançaram com vários nomes, entre os quais os de Edward G. Robinson e de Laurence Olivier, mas Coppola convenceu Brando a sujeitar-se a um teste, cujo resultado acabou de vez com as reservas dos homens da Paramount, os quais, ainda assim, exigiram que Brando trabalhasse por um pequeno cachet (100 mil dólares) e uma percentagem dos lucros. Uma decisão que se tornaria extremamente lucrativa para o actor, que posteriormente viria a usufruir de mais de 15 milhões de dólares, dado o grande êxito do filme.


A família siciliana, retratada por Puzo e filmada por Coppola, vai mais além da tradicional família ligada por laços sanguíneos. Nela são de igual modo englobados os chamados “afilhados”, pessoas com problemas sobretudo do foro legal, a quem falha a ajuda das instituições. É por isso que procuram Don Vito, um homem poderoso, com as mesmas origens e raízes culturais, com o qual estabelecem laços de vassalagem, originando desse modo a coesão social tipicamente italiana, baseada na ajuda mútua e tráfico de influências. Mas ao redor da família Corleone existem outras famílias de idênticas características, todas elas interessadas em tomar as rédeas do poder e serem mais poderosas umas do que outras. E será essa rivalidade que estará na origem dos ajustes de contas sangrentos que irão ocorrer ao longo de toda a saga.


Contrariamente ao que possa parecer, a personagem central da trilogia não é Vito Corleone, mas sim o filho mais novo, Michael Corleone. É ele o real protagonista da obra, é à roda dele que tudo gira. Começa timidamente, como o herói de guerra que não se quer envolver nos negócios da família, mas o passar dos anos vai-lhe pouco a pouco moldando a personalidade. É forçado a defender o pai, a matar por ele e, contra todas as expectativas e ambições pessoais, a suceder-lhe na defesa intransigente da família, sempre colocada acima de tudo e de todos. Com uma excepção, a do irmão Fredo (John Cazale), o qual não será perdoado pelo facto de se ter envolvido em negócios contra os interesses familiares, que quase resultariam no assassinato do próprio Michael Corleone. 


Estamos já no segundo filme, com um Michael cada vez mais duro, mais insensível e mais obstinado na expansão e consolidação do império da família Corleone, mesmo que isso se traduza na desagregação dos principais elementos dessa mesma família. Michael vai perdendo tudo à sua volta: a mãe, por razões naturais; a mulher, que aborta apenas com o intuito de interromper a linhagem familiar; o irmão, que ele próprio manda assassinar. Apenas a irmã, Connie (Talia Shire), parece estar firme junto dele, mas provavelmente mais por medo do que por amor fraternal. A segunda parte de “The Godfather” termina envolvida num manto de tristeza, com um Michael sentado no jardim, sózinho, absorto nos seus pensamentos, que mais não são do que os seus próprios fantasmas.



Inicialmente concebida para se chamar “A morte de Michael Corleone” (título que desagradou aos produtores, mas que Coppola acabaria por levar a cabo muitos anos mais tarde através de uma nova montagem), a 3ª parte do “Padrinho” foi realizada 16 anos depois, com Coppola a defini-la mais como um epílogo aos dois primeiros filmes. Vamos encontrar um Michael Corleone precocemente envelhecido, mais sereno, embora carregando o peso do seu passado, que tenta de novo assumir uma posição de legitimidade, e ao mesmo tempo encontrar a redenção dos seus pecados junto à Igreja católica. Com esse intuito delega no sobrinho Vincent (Andy Garcia) toda a responsabilidade, em troca dele renunciar aos encantos da filha Mary (Sofia Coppola). Vincent torna-se assim o novo Don, com direito ao beija-mão e a plenos poderes, os quais não hesita em usar para levar a cabo um novo ajuste de contas com todos os que se lhe atravessam no caminho.  Michael Corleone, uma vez mais, não consegue alterar o seu destino e no fim é a tragédia que se abate sobre os seus entes queridos, lançando-o em definitivo na solidão, que o acompanhará até ao fim dos seus dias.



Falta mencionar outra grande referência da trilogia: a sua magnífica banda sonora. Poucos filmes serão de imediato identificados ao som das primeiras notas musicais dos diferentes temas musicais: “Love Theme”, “The Godfather Waltz”, “Apollonia”, “Connie’s Wedding”, etc. Nino Rota (3/12/1911 – 10/4/1979), o compositor fétiche de Fellini e Carmine Coppola (11/6/1910 – 26/4/1991), o pai do realizador, criaram uma partitura musical para a eternidade. Ao nível das canções destaca-se “I Have But One Heart”, interpretada por Al Martino (a personagem de Johnny Fontane) no primeiro filme e sobretudo a belissima “Promise Me You’ll Remember”, interpretada por Harry Connick Jr. na última parte.



CURIOSIDADES:

- Francis Ford Coppola achava que apenas dois actores poderiam interpretar Don Vito Corleone, Laurence Olivier e Marlon Brando, que considerava serem os dois maiores actores do mundo, em especial o segundo, que chegou a apelidar de “meu herói”. Opinião contrária tinham os produtores que preferiam entregar o papel principal a outros actores, casos de Orson Welles ou Anthony Quinn.

- Talia Shire, que interpreta Connie Corleone, filha de Don Vito, é irmã de Francis Ford Coppola.

- Antes de Coppola, Sergio Leone foi convidado para dirigir o filme, mas recusou, pois achava que uma história que glorificava a máfia não era interessante o suficiente. Mais tarde, Leone arrependeu-se de o não ter dirigido e acabou fazendo seu próprio filme de gangsters, “Era Uma Vez na América”. Peter Bogdanovich também se recusou a dirigir o filme.

- Marlon Brando queria que o rosto da sua personagem se parecesse com o de um buldogue, pelo que resolveu encher a boca de algodão ao interpretar o teste que Coppola lhe pediu. Para as gravações, foram usadas peças feitas por um dentista, que hoje estão em exposição num museu em Nova York.


- Nos ensaios para a célebre cena com a cabeça de cavalo, foi usada uma cabeça falsa. No entanto, para as filmagens, a produção conseguiu uma cabeça verdadeira, que foi adquirida numa fábrica de alimentos para cães. Segundo o actor John Marley, os seus gritos de susto foram autênticos, porque não sabia que seria usada uma cabeça verdadeira.

- Como era seu hábito, Marlon Brando não conseguiu decorar a maioria das suas falas do filme, tendo espalhado cartões por todo o set com o texto que deveria interpretar.

- O gato que Vito Corleone segura foi encontrado por Brando no estúdio e não fazia parte dos planos do filme tê-lo em cena.

- Apesar de ter ficado conhecida por interpretar Mary Corleone na última parte da trilogia, Sofia Coppola, filha de Francis e hoje também cineasta, participou do primeiro filme. Ela era o bebê de Connie e Carlo (Michael Rizzi), que é baptizado por Michael Corleone.

- A famosa voz rouca de Don Vito é inspirada no mafioso Frank Costello, um dos gangsters mais poderosos da história dos EUA. Marlon Brando viu-o na TV na década de 50 e resolveu imitá-lo.



- Sylvester Stallone chegou a fazer testes para interpretar os personagens Paulie Gatto e Carlo Rizzi, mas não foi aprovado. Anos depois, viria a trabalhar com Talia Shire no clássico “Rocky”. Também Martin Sheen fez testes para interpretar Michael Corleone, mas não foi aprovado. Ele acabou trabalhando com Coppola e Brando em “Apocalypse Now”, em 1979.

- Warren Beatty, Jack Nicholson e Dustin Hoffman foram convidados para interpretar Michael Corleone, mas recusaram. Alain Delon, Burt Reynolds e Robert Redford foram de igual modo sugeridos, mas Coppola recusou aceitá-los.

- Os avós maternos de Al Pacino emigraram da cidade de Corleone, na Sicília, para os Estados Unidos, assim como Don Vito.

- Na cena do atentado a Don Corleone, é possível ver um poster do lutador Jake LaMotta numa janela. O boxeur foi interpretado por Robert De Niro em “Ragging Bull”, de Martin Scorsese, em 1980.

- O nome do tradicional chapéu da Sicília, como os que foram usados pelos guarda-costas de Michael Corleone, é coppola.


 - O actor que interpreta Luca Brasi, Lenny Montana, estava tão nervoso por contracenar com Marlon Brando que errou parte da sua fala. A cena em que ele treina o que vai dizer a Don Corleone, não fazia parte do filme, mas foi incluída na montagem final, pois Coppola gostou do nervosismo verdadeiro do actor.

- O beijo que Vito Corleone dá em Johnny Fontane não estava no argumento e foi improvisado por Marlon Brando. Segundo James Caan, a reacção confusa do actor Al Martino foi real, pois foi apanhado de surpresa.

- O último trabalho que Marlon Brando fez antes de morrer foi a dobragem do seu personagem Don Corleone para o vídeo-game “The Godfather”, que foi lançado em 2006, dois anos após a morte do actor.

- As filmagens de “The Godfather” duraram seis meses, mas as cenas com Marlon Brando foram gravadas em apenas 35 dias, para que ele pudesse cumprir a sua agenda e actuar em “Last Tango In Paris”, de Bernardo Bertolucci.

- Mario Puzo negou que o personagem Johnny Fontane foi inspirado em Frank Sinatra. O cantor ficou furioso na época em que o livro foi lançado e chegou a ofender Puzo quando o encontrou num restaurante. Mais tarde, Sinatra teria pedido a Coppola para interpretar Don Corleone no filme, mas o cineasta já tinha a certeza de que o papel seria de Marlon Brando.


- Coppola enfrentou tantas dificuldades e críticas durante a rodagem que achou que o filme seria um fracasso; e, na época do lançamento, viajou com a família para Paris, afim de não presenciar a decepção que seria nos cinemas. Finalmente, foi convencido por amigos a voltar para os Estados Unidos, pois o filme havia sido um sucesso.

- “The Godfather” pode ser considerado o primeiro blockbuster do cinema. Antes dele, os filmes eram lançados apenas num cinema e nenhuma outra sala num raio de 80 km poderia exibir o mesmo filme. A partir dele, várias salas próximas começaram a lançar filmes simultaneamente.

- Numa reunião com a Paramount, Coppola pediu um Mercedes 600 como prémio, caso o filme atingisse a marca de 15 milhões de dólares. Os executivos prometeram o carro apenas se o filme alcançasse os 50 milhões nas bilheterias. Quando o filme facturou 100 milhões de dólares, Coppola e George Lucas foram a uma concessionária da Mercedes, compraram o carro e enviaram a conta para a Paramount.


- Relativamente a distinções, e falando apenas dos Óscares de Hollywood, a trilogia obteve um total de 29 nomeações, das quais 19 se revelaram vencedoras. Assim, em 1973, “The Godfather” obteve 7 Óscares (Filme, Realizador, Actor principal: Marlon Brando, Argumento adaptado, Actores secundários: Al Pacino, James Caan e Robert Duvall), tendo sido nomeado para mais 4 categorias (Guarda-Roupa, Montagem, Som e Música original). Dois anos depois foi a vez de “The Godfather, Part II” arrecadar um total de 8 Óscares (Filme, Realizador, Actor principal: Al Pacino, Actores secundários: Robert De Niro e Michael V. Gazzo, Argumento adaptado, Direcção artística e cenários, e Música original), tendo concorrido em mais 3 categorias (Actor secundário: Lee Strasberg, Actriz secundária: Talia Shire, e Guarda-Roupa). “The Godfather, Part III” teria um total de 7 nomeações (menos 4 que os filmes anteriores): Filme, Realizador, Actor secundário (Andy Garcia), e ainda Montagem, Música Original e Direcção artística e cenários. Não ganhou nenhum Óscar.


- Na cerimónia de 1973, Marlon Brando recusou a estatueta do Oscar em protesto à discriminação contra os índios americanos feita pela indústria do cinema. O actor enviou uma atriz que se passou por uma índia apache e recusou o prémio em seu nome durante a cerimónia.

- Para se preparar para o seu papel, Robert De Niro viveu na Sicília durante 3 meses, onde aprendeu a falar o dialecto siciliano.

- Em algumas cenas que tinham lugar nos anos 20, os actores usaram calças com zippers. Alguém reparou nesse pormenor (o zipper ainda não tinha sido inventado nessa altura) e essas cenas tiveram de ser filmadas de novo.

- Quando o pequeno Vito chega a Ellis Island, é marcado com um X dentro de um círculo. Isto acontecia realmente, mas apenas quando se suspeitava que o imigrante tinha um qualquer defeito mental.

- A data de nascimento de Vito Corleone é 7 de Dezembro de 1891. Os acontecimentos descritos na trilogia têm lugar entre 1901 e 1997, ano da morte de Michael Corleone.

- Raf Vallone interpreta o Papa João Paulo I, que governou a Santa Sé apenas durante 33 dias: entre 26 de Agosto e 28 de Setembro de 1978 (data da sua morte, em circunstâncias pouco esclarecedoras, de que aliás o último filme dá conta).



- Pela sua interpretação em “The Godfather, Part III”, Sofia Coppola foi “distinguida”, por larga maioria (65% dos votos), com 2 Razzie Awards (Actriz secundária e Nova actriz), prémios atribuídos aos piores filmes do ano.

- Depois da rodagem do primeiro filme, em 1972, Al Pacino e Diane Keaton tiveram um romance durante alguns anos. A relação acabou pelo facto de Pacino não se querer comprometer oficialmente. Essa ligação teve relevância na actuação dos dois actores em “The Godfather, Part III”, devido às suas personagens também se encontrarem separadas há longos anos.

- A personagem de Tom Hagen, interpretada por Robert Duvall nos dois primeiros filmes, era para ser mantida na terceira parte. Mas a Paramount não acedeu à exigência do actor (que pediu 5 milhões de dólares para retomar o seu papel), e criou um novo Consiglieri, o advogado B.J. Harrison, que seria interpretado por George Hamilton. Numa linha de diálogo, explicava-se que Hagen tinha falecido alguns anos antes.

- Os actores Alec Baldwin, Matt Dillon, Val Kilmer, Charlie Sheen, Billy Zane e Nicolas Cage, foram todos equacionados para o papel de Vincent Mancini, que acabou por ser entregue a Andy Garcia.


- A celebridade dos filmes da trilogia deveu-se também, em grande parte, à excelência dos diálogos e sobretudo a algumas expressões:

Bonasera: «I believe in America. America has made my fortune»

Don Corleone: «You look terrible. I want you to eat, I want you to rest well. And a month from now this Hollywood big shot's gonna give you what you want»
Johnny Fontane: «Too late. They start shooting in a week»
Don Corleone: «I'm gonna make him an offer he can't refuse. Okay? I want you to leave it all to me. Go on, go back to the party»

Michael: «My father is no different than any powerful man, any man with power, like a president or senator»
Kay: «Do you know how naive you sound, Michael? Presidents and senators don't have men killed»
Michael: «Oh. Who's being naive, Kay?»

Clemenza: «Leave the gun. Take the cannoli»

Carlo: «In Sicily, women are more dangerous than shotguns»

Michael: [speaking to Carlo] «Only don't tell me you're innocent. Because it insults my intelligence and makes me very angry»

Michael: «My father taught me many things here - he taught me in this room. He taught me: keep your friends close, but your enemies closer»


Michael: «I know it was you, Fredo. You broke my heart. You broke my heart!»

Connie: «Michael, I hated you for so many years. I think that I did things to myself, to hurt myself so that you'd know - that I could hurt you. You were just being strong for all of us the way Papa was. And I forgive you. Can't you forgive Fredo? He's so sweet and helpless without you. You need me, Michael. I want to take care of you now»

Michael: «Never hate your enemies. It affects your judgment»

Vincent: «I am your son. Command me in all things»
Michael: «Give up my daughter. That is the price you pay for the life you choose»

Michael: «Never let anyone know what you are thinking»

Mary: «I'll always love you»
Vincenti: «Love somebody else»

Michael: «Goodbye my old friend. You could have lived a little longer, I could be closer to my dream»

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