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quarta-feira, abril 05, 2023

ONCE UPON A TIME IN AMERICA (1984)

ERA UMA VEZ NA AMÉRICA
Um filme de SERGIO LEONE

Com Robert De Niro, James Woods, Elizabeth McGovern, Jennifer Connelly, Treat Williams, Tuesday Weld, Burt Young, Joe Pesci, Danny Aiello, William Forsythe, James Hayden, Larry Rapp, etc.

EUA-ITÁLIA / 229 min / 
COR / 16X9 (1.85:1)

Estreia em França (Festival de Cannes): 20/5/1984
Estreia em Portugal: 7/2/1986 (Lisboa)

Noodles: «You see, Mr Secretary… I have a story also, a little simpler than yours. Many years ago, I had a friend, a dear friend. I turned him in to save his life, but he was killed. But he wanted it that way. It was a great friendship. But it went bad for him, and it went bad for me too. Good night, Mr Bailey.»

«Quis fazer um filme sobre aquela América magicamente suspensa entre o cinema e a história, entre a política e a literatura, que condicionou e condiciona ainda a vida intelectual de muitas gerações de homens, como uma espécie de mito grego moderno e mirabolante» (Sergio Leone)


Das sete longas metragens de Sergio Leone, estreadas entre 1961 e 1984, existem dois filmes que podem ser consideradas obras-primas absolutas da 7ª Arte: “Aconteceu no Oeste” (1968) e este “Era Uma Vez na América”, que o realizador italiano começou a rodar a 14 de Junho de 1982 (as filmagens chegariam ao seu termo a 22 de Abril de 1983). Baseado no romance semi-autobiográfico “The Hoods”, de Harry Grey (o verdadeiro “Noodles”), e argumento escrito a seis mãos, “Era Uma Vez na América” é a concretização do sonho de juventude de Leone e o seu filme testamentário. A 30 de Abril de 1989 o seu coração pararia de bater, enquanto assistia na televisão, na companhia da mulher Carla, ao filme “I Want to Live” (1958), de Robert Wise. Tinha 60 anos. Durante o funeral, na Basílica de San Paolo Fuori le Mura, Ennio Morricone tocaria o tema principal de “Aconteceu no Oeste”.

“Era Uma Vez na América”, como filme de gangsters, só pode ser comparado, em importância e grandiosidade, à obra de Francis Ford Coppola, “O Padrinho”. Leone assina aqui um monumento de quase quatro horas, entrelaçando três épocas distintas (1921, 1933 e 1968), para contar a história de quatro rapazes judeus, Noodles, Max, Cockeye e Patsy, num bairro pobre de Nova Iorque. Brincadeiras, matreirices e descobertas próprias da adolescência, começam a cimentar uma amizade que se irá prolongar no tempo, sobretudo entre Noodles (Robert De Niro) e Max (James Woods), que traça toda a estrutura narrativa do filme. Nesse primeiro tempo existe ainda um quinto elemento, Dominic, que é morto por um elemento de um gangue rival. Ao reagir, desvairado, ao seu assassínio, Noodles acaba por matar o autor do crime, vindo ainda a esfaquear um polícia, o que o leva à prisão. Sai doze anos depois, na época da Lei Seca, e constata que os amigos fizeram fortuna, gerindo agora um cabaret.


Para além do núcleo masculino da história existe Deborah (Jennifer Connelly, primeiro, Elizabeth McGovern depois), a irmã de Fat Moe, pela qual Noodles se enamora desde criança. Ela encarna a imagem fantasmagórica da América, uma imagem literalmente intocável (quando tenta fazer amor com ela, Noodles acaba por só conseguir violá-la), apenas passível de contemplação à distância. A sequência do bailado no armazém (“Amapola”) presenciado por Noodles a partir de uma pequena fresta na casa de banho do restaurante é o momento onírico que marca a alternância entre as diferentes idades dos protagonistas. Uma das últimas e mais belas sequências do filme é quando Noodles, já idoso, reencontra Deborah no seu camarim de artista, que se desmaquilha frente ao espelho. Na parede, um cartaz de “António e Cleópatra”, de William Shakespeare, proporciona a Noodles a citação do escritor: «O tempo não a poderia envelhecer…» «Aquilo foi escrito para ti», acrescenta. Atrás da máscara branca surge o rosto da jovem que, ao contrário das outras personagens do filme, pouco ou nada envelheceu. Para Noodles, que tanto a amou, a sua beleza permaneceu intacta. Ao cair, a máscara de Deborah revela a essência do cinema de Sergio Leone: «A América foi o primeiro amor dos italianos que cresceram nos anos 30. Nunca se esquece o primeiro amor, mesmo que o nosso ponto de vista mude consideravelmente mais tarde.»



No final da sequência atrás citada, Noodles revela a Deborah as duas razões que o levaram a procurá-la: constatar se realmente tinha valido a pena a separação entre os dois para que ela pudesse triunfar nas suas ambições; e pedir-lhe conselho sobre se deveria aceitar um convite para uma festa oferecida pelo secretário de estado Bailey, figura que pessoalmente nunca conhecera, e que por isso despertava a sua curiosidade. Deborah avisa-o: «Só nos restam as recordações. Se fores no sábado a essa recepção, vais estragá-las.» Mas o mistério aguça o interesse de Noodles, que acaba mesmo por aceitar o estranho convite. O secretário Bailey não é outro senão Max, o antigo companheiro de Noodles, que este julgava morto há mais de 30 anos, devido a uma emboscada da qual ele tinha sido o delator, e que por isso o tinha feito afastar-se de tudo e de todos naquele longo período.



O confronto final entre os dois homens tem características opostas. Max quer que Noodles o mate por lhe ter roubado tudo, incluindo Deborah, a única mulher que ele sempre amou, e assim poder salvar pelo menos a honra. Mas Noodles recusa chamá-lo pelo seu nome verdadeiro, como se a pessoa que agora tem diante de si não fosse o homem pelo qual ele tinha sacrificado a vida há mais de trinta anos. Noodles substitui a realidade decepcionante do mundo que descobre nos anos 60 (a amizade suja, a América corrompida, os amores perdidos) por um mundo ideal mas já extinto (os anos trinta). Esta vontade de manter à distância a experiência do real e de preservar a antiga inocência constitui a melancolia do filme e explica por que o mundo isolado que representa o vício de fumar ópio é o local instintivo de Noodles e a base da narração. O último trocar de olhares entre Max e Noodles manifesta esta indecisão temporal.



Depois é a cena já no exterior da residência, em que Noodles olha para um camião do lixo que passa. Como analogia com tudo quanto existe de putrefacto, o veículo afasta-se lentamente na profundeza do campo e fica reduzido a duas luzes vermelhas, perdidas na noite. De seguida, reaparecem outras luzes, agora brancas, de uma viatura cheia de jovens ruidosos. A presença na imagem do olhar do velho Noodles e desta visão surgida dos anos 30 abrange a explicação de um filme do qual o tema principal é a união impossível: entre os sonhos das crianças e o mundo dos adultos, entre a América fabricada por Hollywood e a América real. O filme acaba, tal como começa, com a música “God Bless America”, de Irving Berlin. Leone não parou de fantasiar com uma América mitológica, cinematográfica e universal que, no fundo, só existiu aos seus olhos deslumbrados de menino. “Era Uma Vez na América” conta a história desta desilusão.



Após ter finalizado a rodagem, Leone viu-se nas mãos com cerca de 9 horas de filme. Ele e o editor Nuno Baragli reduziram a metragem total para cerca de 6 horas, pensando poder apresentar a obra em dois filmes separados, com cerca de 3 horas cada um, à semelhança do que Bernardo Bertolucci tinha já feito com “Novecento”. Mas os produtores recusaram tal ideia e Leone teve de reduzir ainda mais o filme, para pouco menos de 4 horas. Foi assim que “Era Uma Vez na América” estreou no Festival de Cannes de 1984, onde teve uma recepção entusiástica, com 15 minutos de contínuos aplausos. Mas o pior ainda estava para vir. Como sempre avessos a filmes muito extensos, os exibidores americanos (Ladd Company) reduziram drasticamente a obra para cerca de duas horas e um quarto, versão essa que foi a que passou em todos os cinemas dos Estados Unidos, tornando-se certamente incompreensível para todo o público norte-americano e originando por isso mesmo uma enxurrada de más críticas. Como consequência da leviandade americana, que, diga-se, tem um longo e nefasto historial, o filme não obteve qualquer nomeação para os Óscares, tendo tido apenas duas nomeações para os Globos de Ouro (Sergio Leone e Ennio Morricone). Em contrapartida, a versão original conseguiu 5 nomeações para os BAFTA ingleses (incluindo realização, cinematografia e actriz secundária – Tuesday Weld), vencendo em duas categorias: Guarda-Roupa (Gabriella Pescucci) e Banda-Sonora (Ennio Morricone). 


ALGUMAS CURIOSIDADES:

- A ponte de Manhattan, tal como aparece no poster do filme, pode ser vista a partir de Washington Street, em Brooklyn.

- Foi o primeiro filme de Jennifer Connelly. Completou 12 anos no dia 12 de Dezembro de 1982. O seu desempenho chamou a atenção do realizador italiano Dario Argento, que tinha trabalhado com Leone em “Aconteceu no Oeste”. Em 1985, Argento deu-lhe o papel principal em “Phenomena”.

- A partitura musical de Ennio Morricone encontrava-se já pronta no início das filmagens, o que permitiu tocá-la simultaneamente com a rodagem de algumas cenas.

- Sergio Leone recusou a oferta de dirigir “O Padrinho” dez anos antes. Uma decisão que mais tarde lamentou, e que o incentivou ainda mais a realizar “Era Uma Vez na América”.

- Leone baseou o estilo visual do filme em pinturas de artistas como Reginald Marsh, Edward Hopper, Norman Rockwell ou Edgar Degas, este último para as cenas de dança de Deborah.

- Al Pacino e Jack Nicholson não aceitaram o papel de “Noodles”. Quanto ao papel de Deborah, o mesmo foi recusado por Jodie Foster e por Daryl Hannah.

- A música “Deborah’s Theme” foi mais tarde adaptada a uma canção de Céline Dion (“I Knew I Loved You”) e a outra interpretada por Andrea Bocelli e Ariana Grande (“E Più Ti Penso / The More I Think of You”)

- Único filme de Leone a ser falado em inglês. Mas quando se estreou em Itália, os diálogos foram dobrados para italiano.






terça-feira, março 01, 2016

A PASSAGE TO INDIA (1984)

PASSAGEM PARA A ÍNDIA
Um filme de DAVID LEAN

Com Judy Davis, Victor Banerjee, Peggy Ashcroft, James Fox, Alec Guinness, Nigel Havers, Richard Wilson, Art Malik, etc.

UK-US / 164 m / COR / 
16X9 (1.85:1)

Estreia nos EUA: 1984, Dezembro 14 (New York)
Estreia em Portugal: 1985, Fevereiro 28 (Lisboa)
Estreia na Grã-Bretanha: 1985, Março 18 (London)


Derradeiro filme do prestigiado director inglês David Lean (1908-1991), que ressurgia de um hiato de 14 anos (desde que rodara “Ryan’s Daughter”), “A Passage To India” transporta-nos para o início dos anos 20, altura em que à frente da monarquia inglesa se encontrava o rei Jorge V, e a Índia era uma colónia do império britânico, onde se manteria até 1947. Com argumento do próprio David Lean, “A Passage to India” começou por ser uma novela que o romancista Edward Morgan Forster (1879-1970) escreveu em 1924, após regressar de uma estadia na Índia, onde tinha exercido as funções de secretário do Maharajah de Dewas. Mais tarde, a escritora e jornalista Santha Rama Rau (1923-2009), nascida em Madras, na Índia, adaptou a novela para o teatro. A peça subiu ao palco do Ambassador Theatre de Londres, a 31 de Janeiro de 1962, onde se manteve durante 109 sessões.


Adela Quested (Judy Davis), uma jovem inglesa, viaja para a Índia em companhia de Mrs. Moore (Peggy Ashcroft), uma senhora de idade um pouco avançada, que se vai encontrar com o filho, Ronny (Nigel Havers), recém-nomeado juiz, e que se encontra noivo de Adela. Esta, contudo, está longe de sentir a excitação própria de quem se prepara para selar o acordo nupcial. Hesitante, aparentemente frígida, começa no entanto a deixar-se envolver pela mística e sensualidade indianas, onde existe pouco espaço para a rigidez dos princípios ingleses, nos quais foi educada. Mas a sua própria sexualidade começa a vir ao de cima e isso causa-lhe um certo receio e incómodo. As duas companheiras de viagem travam conhecimento com um médico, o Dr. Aziz Ahmed (Victor Banerjee), cujo dia-a-dia oscila entre o servilismo e a admiração que nutre pelo povo inglês. Organiza uma pequena excursão às lendárias grutas de Marabar, no decurso da qual Adela sofre um acidente que posteriormente a leva a acusar Aziz de violação.


Como não podia deixar de ser, sobretudo num regime fortemente imperialista como foi o britânico, o caso é levado a tribunal, no sentido dos poderes instituídos condenarem rapidamente e sem apelo o jovem médico caído em desgraça, de modo a fazer dele um símbolo da eficácia da justiça britânica. Naquela época vigorava o princípio de “culpado, até prova em contrário” e portanto as perspectivas de uma absolvição eram practicamente nulas. No entanto, e para desapontamento das autoridades inglesas, Adela recupera o bom senso e retira a queixa contra Aziz, argumentando de que nada se tinha passado da forma como inicialmente dera a entender. O médico é libertado e levado em ombros como herói nacional. Mas a sua crença nos ingleses fica seriamente abalada, nomeadamente na relação de amizade que estabelecera com o professor Richard Fielding (James Fox).


“A Passage To India” é um filme que aponta o dedo aos excessos coloniais e ao confronto cultural entre dois povos, que apesar do longo período de convivência (entre 1858 e 1947), nunca chegaram a entender-se. A opressão exercida pelos ingleses (a nível político, mas não só) tinha na altura pouca oposição por parte dos indianos, com excepção de uma ou outra réplica verbal, o que de resto é mostrado no filme através da personagem do jovem advogado Ali (Art Malik), um mais que provável futuro líder do movimento nacionalista indiano. Quanto a Aziz, o seu percurso ideológico vai aos poucos evoluindo, desde a recusa de qualquer tipo de confrontamento até ao levantar do dedo acusatório aos seus algozes.


“A Passage To India”, apesar da sua forte conotação política (e no romance original de Forster essa conotação era muito mais acentuada), é um filme muito belo de se ver, aliás como toda a obra de David Lean. A australiana Judy Davis está sublime nos seus 29 anos, sobretudo nos grandes planos que o fotógrafo Ernest Day conseguiu extrair do seu belo rosto (a “peregrinação” pelo bosque das estátuas é nesse sentido exemplar), tal como Peggy Ashcroft (Óscar para a melhor actriz secundária, o que fez dela, aos 77 anos, a actriz mais velha a receber o prémio), conhecida actriz inglesa, que deambulou décadas pelos palcos ingleses. Banerjee e Malik são dois dos melhores actores indianos de sempre, e todo o restante elenco encontra-se em plano bastante elevado, apesar dos constantes conflitos que a maioria dos actores teve com David Lean. Uma referência final a Alec Guinness, que compõe aqui uma pequena personagem (o excêntrico Dr. Godbole), mas que confere ao filme um toque exótico de humor. Para além de Ashcroft, o filme receberia ainda o Óscar para a melhor partitura musical (teve no total 11 nomeações), da autoria de Maurice Jarre, um nome crónico dos filmes dos anos 60.


Do lado crítico choveram louvores, como que a compensar o ostracismo a que a última obra de David Lean, “Ryan’s Daughter”, tinha sido votada em 1970. Rogert Ebert, do Chicago Sun-Times, escreveu: «O romance de Forster é um dos pontos altos da literatura deste século, e David Lean transformou-o agora numa das melhores adaptações para o cinema que eu já vi. Lean é um artesão meticuloso, célebre por não poupar esforços para que cada plano fique excatamente do modo como ele o imaginou.» A Variety apelidou o filme de «impecavelmente fiel, lindamente interpretado e ocasionalmente lânguido,» acrescentando que «Lean conseguiu, até certo ponto, ter sucesso na difícil tarefa de capturar o tom simultaneamente elegante e irónico de Forster.» Finalmente, a Time Out London descreveu “A Passage To India” como «um esforço curiosamente modesto, abandonando o estilo épico vigoroso dos últimos anos de Lean. Embora tenha seguido fielmente a maior parte do livro, Lean afasta-se do ódio que Edward Forster nutria pela presença britânica na Índia, e consegue reunir o elenco mais sólido em muitos anos. E mais uma vez cede ao seu gosto pelos cenários, demonstrando a sua capacidade de um modo que o cinema britânico nunca pôde igualar em toda a sua história.»


CURIOSIDADES:

- A relação entre David Lean e Alec Guinness foi-se deteriorando ao longo das filmagens e atingiu o ponto mais baixo quando Guinness descobriu que a maior parte das cenas por ele filmadas tinham ficado na mesa de montagem, nomeadamente uma em que o actor interpretava uma dança indiana, que lhe tinha levado muitas semanas a aprender. Os dois homens nunca mais se falaram.

- David Lean queria que Peter O’Toole interpretasse a personagem de Fielding, mas o actor recusou.

Peggy Ashcroft assistiu em Londres à última representação de “A Passage To India”. Nessa altura travou conhecimento com Edward Forster, que lhe disse que um dia ela haveria de interpretar a personagem de Mrs. Moore. Ashcroft respondeu-lhe que seria altamente improvável, dada a diferença de idades entre ela (na altura com 54 anos) e Mrs. Moore.


As grutas que no filme se chamam “Marabar” foram criadas pela produção nas colinas de Savandurga e de Ramadevarabetta. No entanto, a cerca de 35 km a norte de Gaya, existem umas grutas verdadeiras, chamadas Barabar.

PORTFOLIO:


LOBBY-CARDS:

terça-feira, outubro 01, 2013

STARMAN (1984)

STARMAN, O HOMEM DAS ESTRELAS
Um filme de JOHN CARPENTER



Com Jeff Bridges, Karen Allen, Charles Martin Smith, Richard Jaeckel, etc.

EUA / 115 min / COR / 
16X9 (2.20:1)

Estreia nos EUA a 14/12/1984
Estreia em PORTUGAL a 28/6/1985

Starman: «Shall I tell you what I find beautiful about you? 
You are at your very best when things are worst»

Filme atípico na filmografia de John Carpenter, "Starman" é um "E-T." para adultos, um conto de fadas em que o príncipe é um extra-terreste. Pela primeira vez Carpenter relega a ficção científica para segundo plano e dá-nos um filme na linha de um "It Happened One Night”, de Frank Capra, uma espécie de road-movie que atravessa o sudoeste dos EUA. Serenamente intenso, o filme equivale a uma visão da América pelos olhos de uma criança e por isso resulta na obra mais pura e mais bela do realizador norte-americano. A criança é aqui um alienígena que chega à Terra na sequência de um convite («Venham visitar-nos!») formulado muitos anos antes pelas autoridades norte-americanas, quando em 1977 a nave Voyager II tinha sido lançada para o espaço. Afim de passar despercebido toma a forma do corpo do marido recém-falecido de Jenny Hayden, uma jovem viúva que habita sozinha uma casa perto do local onde a nave se despenhou.

A mutação é presenciada diante dos olhos incrédulos de Jenny, que acaba por desmaiar na sala de visitas. Quando acorda julga que tudo não passou de um pesadelo, mas rapidamente se dá conta de que algo de extraordinário ocorreu ao deparar-se de novo com a réplica perfeita de Scott. É esta a sequência que vai despoletar o desenrolar do filme. Mas à semelhança dos filmes de Hitchcock, esta descida à Terra de um extraterrestre não passa de um mcguffin, ou seja, de algo que só serve para fazer evoluir a história. O importante no filme, a ideia que Carpenter teve ao realizar “Starman”, é a aprendizagem recíproca de um casal em corrida contra o tempo, na tentativa urgente de encontrarem as razões pelas quais a vida merece ser vivida num mundo dominado pela intolerância.

Recordemos o que escreveu João Lopes numa crítica publicada no Jornal Expresso, no dia seguinte à estreia do filme em Portugal, «Se Carpenter filma a constituição de um homem a partir do nada - nada de matéria, nada de memória, nada de comunicação - filma também a linguagem como entidade exterior ao corpo, dele separada, a ele devolvida. Aplicando a terminologia de Carpenter, a linguagem é uma coisa, a linguagem é a coisa de "O Homem das Estrelas". Não admira que, mesmo apaixonando-se, o homem das estrelas não possa deixar de querer cumprir o trajecto que, no fim do prazo pré-estabelecido, o devolverá ao seu mundo. Se é verdade, como diz Godard, que a linguagem é a casa onde o homem habita, então o tema de Carpenter em "O Homem das Estrelas" não é senão o exterior dessa casa.»

“Starman” está recheado de cenas magníficas, encadeadas num ritmo harmonioso de aventura, humor, romance e suspense. Uma delas é uma das mais belas passagens da obra de Carpenter - depois de Jenny (Karen Allen) ser abatida, o extraterrestre (Jeff Bridges no papel de uma vida) leva-a para uma caravana que segue em direção a Oeste. Durante toda a noite exerce a sua cura milagrosa, que nos é apresentada em montagem paralela com paisagens mudas, de uma beleza quase austera, conforme a camioneta passa por elas e a noite dá lugar à madrugada e esta dá lugar à manhã com o novo despertar de Jenny. A cena é muito típica de Carpenter: engenhosamente calibrada e ritmada, bem texturada, com uma estranha coordenação entre pessoas e objectos inanimados.

A cena final da despedida (aquele belissimo e último close-up de Karen Allen fica-nos para sempre gravado na memória) é muito característica da idade de ouro do cinema hollywoodiano. Segundo Carpenter constitui o ponto culminante do filme: «Devo reconhecer que esta sequência entre Jenny e Scott é uma das melhores que Dean Reisner escreveu. Acrescentei simplesmente um néon de luz muito vermelha por trás dos dois actores. Foram ambos muito bons. Estavam os dois muito motivados pelo filme, e em especial por esta cena. O plano final que mostra Jenny a levantar os olhos para o céu e depois baixá-los foi conseguido graças a um movimento de grua. Para este plano utilizei uma objectiva de 75 mm, o que me permitiu atenuar consideravelmente o movimento mecânico. Creio que isso deu a esta imagem um lado ao mesmo tempo triste e estranho. Como se Scott se afastasse de Jenny e dos espectadores.»

Jeff Bridges e Karen Allen roçam os limites da perfeição nesta história de amor e inocência contada magistralmente por um John Carpenter em estado de graça, estado esse que não mais se repetiu em toda a sua obra posterior. Por isso "Starman" continua a constituir uma jóia rara e preciosa, completamente imune à lapidação do tempo. De realçar também a excelente fotografia em widescreen (formato de que Carpenter é o mestre do cinema contemporâneo), bem como a banda sonora com uma belissima partitura musical assinada por Jack Nitzche.


Termino citando uma vez mais a crónica de João Lopes do Expresso: « Estamos para o cinema como Jenny Hayden está para o seu companheiro. Não é possível que ele exista, porque não é possível que haja alguém tão diferente e tão parecido com o seu marido - e, no entanto, aquilo é forma e verdade, fala e sentido. Se ela o perde, devolvendo à eternidade o seu amor, isso fica a dever-se, talvez, à impossibilidade de integração pelo extraterrestre da palavra morte. Quando ele devolve à vida o veado abatido pelos caçadores, não é um simples gesto de profilaxia ecológica que resume o acontecimento - de certo modo, é a mão divina do cinema que através dele se exprime. O cinema é um país mais vasto que a linguagem.»