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domingo, junho 30, 2019

O Rato Cinéfilo aconselha...


Título Original: "Les Films de ma Vie"
Éditions Flammarion, 1975 / Edição Orfeu Negro, Maio 2015

quinta-feira, julho 02, 2015

FRANÇOIS TRUFFAUT - OS FILMES DA MINHA VIDA (1975)

Foram precisos 40 anos para que este célebre livro de Truffaut viesse a ser editado em Portugal. "Les Films De Ma Vie" reúne alguns dos muitos textos que o cineasta (falecido em 1984, com apenas 52 anos) escreveu ao longo da sua vida, nomeadamente enquanto crítico de cinema nos Cahiers du Cinéma. Esses textos exaltam, acima de tudo, a vida e o cinema, assim como os autores que estiveram sempre entre os dois, presos a um mundo que juntava a realidade e o seu reflexo, ou a vida projectada à escala maior dos nossos sentimentos e dos nossos segredos - a escala do ecrã.


COM QUE SONHAM OS CRÍTICOS?

Num dia de 1942, ardendo de impaciência por ver o filme de Marcel Carné Os Trovadores Malditos, que finalmente chegava ao meu bairro, no Cinéma Pigalle, decidi faltar às aulas. O filme agradou-me muito e, na mesma noite, a minha tia, que estudava violino no Conservatório, passou lá por casa para me levar ao cinema; já tinha a escolha feita: Os Trovadores Malditos e, como estava fora de questão confessar a minha gazeta da tarde, tive de revê-lo fingindo que estava a descobri-lo. Foi exactamente nesse dia que percebi o quão fascinante pode ser entrar pouco a pouco na intimidade de uma obra admirada, até ao ponto em que se consegue atingir a ilusão de reviver a sua criação.

Um ano depois, chegava Le Corbeau, de Clouzot, que me preencheu mais ainda; devo tê-lo visto umas cinco ou seis vezes entre a data da sua estreia (Maio de 1943) e a Libertação, que assistiu à sua proibição; mais tarde, quando foi novamente autorizado, tornei a vê-lo várias vezes por ano, até lhe conhecer o diálogo de cor, um diálogo muito adulto comparado com o dos outros filmes, com uma centena de palavras fortes cujo sentido ia adivinhando progressivamente. Como toda a intriga de Le Corbeau girava em torno de uma epidemia de cartas anónimas a denunciarem abortos, adultérios e diversas corrupções, o filme fornecia uma ilustração bastante parecida com aquilo que eu via à minha volta, nessa época de guerra e de pós-guerra, de colaboracionismo, de delação, de mercado negro, de desenrascanço e cinismo.

Os meus primeiros duzentos filmes foram vistos em estado de clandestinidade, ou por fazer gazeta à escola, ou por entrar na sala sem pagar (pela saída de emergência ou pelas janelas da casa de banho), ou ainda por aproveitar as saídas nocturnas dos meus pais, com a necessidade de me encontrar na cama no seu regresso a casa. Era, pois, com fortes dores de barriga que eu pagava este grande prazer, com a barriga num nó, a cabeça amedrontada, invadido por um sentimento de culpabilidade que só podia aumentar a emoção provocada pelo espectáculo.




Eu sentia uma grande necessidade de entrar nos filmes e conseguia-o aproximando-me cada vez mais do ecrã para me abstrair da sala; rejeitava os filmes de época, os filmes de guerra e os westerns porque tornavam a identificação mais difícil; por exclusão de partes, sobravam os filmes policiais e os de amor; ao contrário dos pequenos espectadores da minha idade, não me identificava com os heróis heróicos mas sim com as personagens deficientes e, de forma mais sistemática, com todas as que erravam. Compreender-se-á que a obra de Alfred Hitchcock, toda ela dedicada ao medo, me tenha seduzido desde o início, e depois a de Jean Renoir, voltada para a compreensão: «O que é terrível nesta terra é que toda a gente tem os seus motivos» (A Regra do Jogo, 1939). A porta estava aberta, eu estava pronto a receber as ideias e as imagens de Iean Vigo, Jean Cocteau, Sacha Guitry, Orson Welles, Marcel Pagnol, Lubitsch, Charlie Chaplin, evidentemente, todos aqueles que, sem serem imorais, «duvidam da moral dos outros» (Hiroxima, Meu Amor, 1959). 

copyright 1975, 2007, Éditions Flammarion / copyright 2015 (Maio), Orfeu Negro

quarta-feira, fevereiro 19, 2014

LA SIRÈNE DU MISSISSIPI (1969)

A SEREIA DO MISSISSIPI
Um filme de FRANÇOIS TRUFFAUT



Com Jean-Paul Belmondo, Catherine Deneuve, Nelly Borgeaud, Yves Drouhet, Michel Bouquet

FRANÇA / 123 min / COR / 
16X9 (2.35:1)

Estreia em FRANÇA a 18/6/1969
Estreia em MOÇAMBIQUE a 8/1/1971 (LM, teatro Gil Vicente)


Louis: "Attends! Je vais t'expliquer. Attends!"
Marion: "Je t'attends"
Louis: "Je vais plus te parler de ta beauté.

Je peux même te dire que t'es moche, si tu veux.
Je vais essayer de te décrire comme si tu étais une photo.
Ou une peinture. Tais-toi.
Ton visage... Ton visage est une paysage.
Tu vois, je suis neutre et impartial.
Il y a les deux yeux... Deux petits lacs marrons."
Marion: "Marron-verts."
Louis: "Deux petits lacs marron-verts.
Ton front, c'est une plaine.
Ton nez... Une petite montagne, petite.
Ta bouche, un volcan. Ouvre un peu.
J'aime voir tes dents. Non, non, pas trop. Voilà! Comme ça.
Tu sais ce qui sort de ta bouche, quand tu es méchante?
Des crapauds! Si, si, des crapauds.
Et des colliers de perles, quand tu es gentille. Attends!"



Marion: "J'attends."
Louis: "Parlons un peu de ton sourire, maintenant.

Pas celui-là! Ça c'est celui que tu fais dans la rue
aux commerçants.
Non. Donne-moi l'autre, le vrai. Celui du bonheur.
Voilà! Cest ça. Formidable!
Non. C'est trop. Ça me fait mal aux yeux.
Je ne peux plus te regarder. Attends!"
Marion: "Je t'attends."
Louis: "J'ai les yeux fermés, pourtant je te vois. Je vérifie.
Si j'étais aveugle, je passerais mon temps à caresser ton visage.
Ton corps aussi.
Et si j'étais sourd... J'apprendrais à lire sur tes lèvres
avec mes doights... Comme ça.
Même si tout ça doit finir mal...
Je suis enchanté de vous connaître, madame."


Apesar de, pela primeira e última vez na sua carreira, Truffaut ter escrito sózinho o argumento e os diálogos de um filme seu, este era um filme mal-amado pelo cineasta que confessou não gostar de o ver, nem sequer dele ouvir falar. É também o primeiro filme de Truffaut com mais de duas horas de duração. É dedicado a Jean Renoir e percebe-se porquê: é uma história de amor-louco, que lembra "La Chienne", por exemplo. O filme desenrola-se como um filme de acção, sendo ao mesmo tempo um diário íntimo. É a presença de Deneuve a marcar o estilo e a poética de "La Sirène du Mississipi". Comparativamente, é como se ela substituísse a Anna Karina de "Pierrot Le Fou", de Godard. Mas onde este marca um ajuste de contas com a mulher e a sociedade que se procura resolver na violência e no radicalismo revolucionário, Truffaut define antes um sentimento de nostalgia, de abandono e impotência que reveste o feminino de apelos de retorno ao ventre materno, na ambiguidade lírica do anjo e da sereia.

Por essa coexistência de polos emocionais, de aparentes sinais contrários, de cerrado paralelismo entre a inocência e a culpa, é com Hitchcock que o filme de Truffaut mais se encontra - existe um acumular de suspeitas e presságios, a sobreporem-se aos dados imediatos duma realidade evidente e evidenciada. Cineasta do real e do mistério, é sempre assim que Truffaut nos vai fazendo correr o seu filme, cuja intriga policial é apenas pretexto e ponto de partida para o encontro com um mistério maior, com um lirismo denso de loucura e absurdo a sobrepor-se ao linearismo narrativo e à lógica aparente das situações. Aí, o espectador será então livre para optar por coordenadas poéticas e morais divergentes. Aparentemente, terá, por um lado a opção possível pela respeitabilidade e pela lei, o lamento da perdição do "herói" Belmondo nos braços duma mulher prostituída e venal, fútil e cruel; por outro, o conhecimento duma salvação trágica, concebida no eleger da beleza e do amor louco contra todas as normas do pensar e do agir, tradicionalmente codificadas.
Catherine tem esse duplo rosto (que mantém a sua incrível beleza nessa dualidade). Ao princípio, vestida de branco na luxuriante paisagem da ilha tropical, aparece-nos, depois, coberta de negro num cenário frio e branco de neve, que é momento de núpcias com a morte, construída pelas sua próprias mãos. Ao inverso do sucedido no "Pierrot Le Fou", o autêntico suicídio físico e social de Belmondo não é na "Sirène du Mississipi" acto voluntário de protesto viril, mas forma de entrega e renúncia. O que Godard deve ao dadaísmo, deve Truffaut às raízes românticas do surrealismo. Por isso, como nos surrealistas, a arte de Truffaut é a da ilusão das aparências, sobretudo de indissociabilidade do prosaico e do lírico, do real e do imaginário, que torna a opção proposta um falso dilema. Catherine revela-se na pele da prostituta e da órfã, do diabólico e do angélico, em aflitiva vulgaridade e digna da adoração do ser insubstituível.



Através das convenções do grande espectáculo e do filme de vedetas Truffaut exprime os sentimentos mais pessoais, talvez mesmo os mais secretos. "La Sirène du Mississipi" é o filme de amor em que o cineasta vai mais longe na pintura de uma paixão (e por isso é também o seu filme mais sensual, mesmo o mais carnalmente sexual), extravazando a contenção com que habitualmente trata as relações eróticas nos seus filmes. A travessia dos obstáculos por um amor que não recua perante nada é uma descoberta fantástica. Nunca a conquista amorosa foi descrita com uma tal determinação: O Amor, diz-nos Truffaut, é um prazer doloroso, angustiante, uma aceitação nua e crua da pessoa amada, tal qual ela é. E Louis compreendeu isso por fim. Nessa cena sublime, no chalet na neve, só a paixão lhe resta. Foram-se as ilusões que arquitectara sobre Marion. Finalmente conhece-a, tal como ela é. Sem fingimentos. Sem máscaras. E ele, embora lúcido, está irremediavelmente apaixonado. Só lhe resta portanto abandonar-se, deixar-se destruir. E então, todo o ódio de Marion se quebra, derretendo-se como neve ao sol. E o filme acaba na brancura da paisagem invernal que envolve o casal, silhuetas cada vez mais distantes a perderem-se na bruma.



Marion: "Bois ça, mon chéri. Ça ira mieux."
Louis: "Remplis-le jusqu'en haut.

Je sais ce que tu es en train de faire.
Je l'accepte. Je regrette pas de t'avoir rencontrée.
Je regrette pas d'avoir tué un homme pour toi.
Je regrette pas t'aimer.
Je regrette rien, seulement maintenant
ça me fais très mal
dans le ventre. Ça me brûle partout.
Alors je voudrais que ça aille vite.
Très vite. Remplis-le!"
Marion: "Tu savais tout et tu te laissais faire!
J'ai honte! J'ai honte! J'ai honte!
Aucune femme ne mérite d'être aimée comme ça.
Je suis indigne. Mais il n'est pas trop tard.
Je vais te soigner. Tu vas vivre.
Nous allons partir loin d'ici. Tous les deux.
J'ai assez de force pour deux.
Tu vivras, tu m'entends? Tu vivras!"



Personne ne te prendra à moi.
Je t'aime, Louis. Je t'aime.
Peut-être que tu ne me crois pas,

mas il y a des choses incroyables qui sont vraies.
Courage, mon amour. Nous allons partir loin d'ici,
et puis nous resterons toujours ensemble...
Si tu veux encore de moi."
Louis: "Mais c'est toi que je veux. Rien que toi.
Telle que tu es, absolument. Allez, pleure pas.
C'est ton bonheur que je veux, pas tes larmes."
Marion: "Je viens à l'amour, Louis.
J'ai mal, Louis. Ça fait mal.
Est-ce que c'est ça l'amour?
Est-ce que l'amour fait mal?"
Louis: "Oui, ça fait mal."


Numa entrevista da época, Jean-Paul Belmondo teceu as seguintes considerações sobre Truffaut: «no estúdio de "La Sirène du Mississipi" entendemo-nos bem logo de início, sem que tivessem sido necessárias grandes conversas, tais como o dizermos de que forma imaginávamos os personagens, etc. Há realizadores que durante oito dias explicam o papel, o personagem, a história, isto não é útil de forma nenhuma, porque a partir do momento em que o actor aceita o papel é porque o compreendeu ou sentiu, e quando o realizador lhe propõe o papel é porque pensa que é o personagem desejado, ou então entra-se no lado sórdido desta profissão: o de nos chamarem para um filme apenas porque temos um bom nome e o público vai acorrer em força...»



E Catherine Deneuve, no nº 138 da revista "Cinema 69", afirma: «A rodagem do filme foi maravilhosa... É preciso tê-la vivido ou ter assistido a ela para se poder compreender... A mesma coisa quanto às relações com Belmondo: não nos conhecíamos mas não houve embaraço nem timidez ou tensão entre nós. É preciso fazer notar que, para além de todas as suas qualidades, ele possui uma em grau supremo: a descontração; neste aspecto nunca conheci nada semelhante! Encantaria os americanos que procuram continuamente este "relax", como eles dizem».

Numa entrevista ao "Nouveau Cinémonde" podem ler-se as seguintes palavras de François Truffaut: «Por mim não tenho dúvidas, Jean-Paul Belmondo é o melhor jovem intérprete actual, o melhor e o mais completo. Belmondo pode representar com a mesma naturalidade e realidade, um aristocrata ou um homem do povo, um intelectual ou um gangster, um padre ou um palhaço. Esta disponibilidade é de tal ordem que Jean-Paul poderia mesmo representar um homem amado pelas mulheres, um sedutor, ou ao contrário, um homem rejeitado pelo elemento feminino; e estes dois papeis contraditórios representá-los-ia quer em drama, quer em comédia, conforme lhe fosse exigido».