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domingo, outubro 09, 2022

MORTE A VENEZIA (1971)

MORTE EM VENEZA
Um Filme de LUCHINO VISCONTI


Com Dirk Bogarde, Romolo Valli, Mark Burns, Nora Ricci, Marisa Berenson, Carole André, Björn Andresen, Silvana Mangano, etc.

ITÁLIA-FRANÇA / 130 min / 
COR / 16X9 (2.35:1)

Estreia em Itália a 5/3/1971
Estreia em Portugal a 14/9/1971 
(Lisboa, Cinema Monumental)


AS IMAGENS DA MEMÓRIA

Antes de me debruçar sobre a obra-prima de Visconti, gostava de tecer algumas considerações sobre aquilo a que chamo "As imagens da memória", uma vez que relaciono directamente este filme com esse conceito. A memória é uma coisa estranha. Não recordamos exactamente o que ocorreu em cada momento do nosso passado, mas, uma vez por outra, capturamos uma impressão, uma ideia geral. E na hora de recordar é o nosso cérebro que preenche as lacunas, mas de um modo que não é em geral o mais correcto. Ou seja, tendemos a embelezar esses buracos da memória em detrimento dos factos menos agradáveis. 

A memória cinéfila, pelo contrário, é muito mais verdadeira. Recordamos cenas ou sequências de determinado filme, tal qual ficaram no nosso cérebro. E se essa recordação se encontra porventura um tanto ou quanto embaciada, basta voltarmos ao filme e rever tudo de novo. A única diferença é que, naturalmente, revemos as mesmas imagens mas com outros olhos, porque à medida que crescemos nos vamos transformando em pessoas completamente diferentes. Ou seja, envelhecemos. E esta hipótese é mesmo a única maneira de um filme se poder alterar, adquirindo um novo significado, e não ser sempre igual a si mesmo. Porque no processo de envelhecimento, sempre que revemos um filme que amamos, vamos-lhe dando também um pouco de nós mesmos, numa natural relação amorosa. É que o amor não é um fenómeno quotidiano, necessita de um tempo de assimilação e reconhecimento. E esse tempo traduz-se em cada contacto com o filme amado, em cada olhar, em cada lembrança que ele nos impõe. Estes dois exercícios da nossa mente, o olhar primeiro, a lembrança depois, são imortais e, se esquecidos, sobrevivem no nosso inconsciente.

É por isso que o tempo é o juiz supremo da qualidade de um filme. O entendimento que temos dele é diferente consoante a idade com que o vemos. Daí o não ter já muita paciência com a maioria dos críticos actuais que, por um qualquer filme parecer destacar-se da maioria, o adjectivam logo de "obra-prima", não entendendo sequer o mundo actual, onde a arte cinematográfica se tornou numa indústria mais do que qualquer outra coisa. Como não entendem que o cinema, o verdadeiro cinema, tem por veículo ideal a imagem e não a palavra. Penso mesmo que se poderia dividir os filmes em duas categorias: aqueles em que predomina o argumento e aqueles em que predominam as imagens; o que corresponde quase a dizer: os que são medíocres e os que são belos. No dia em que o grande público consiga ver imediatamente essa diferença entre um filme que se desenvolve pelas imagens e um filme que se desenvolve pelo argumento, nesse dia conseguirá compreender o significado do cinema. Mas temo, sinceramente, que esse dia nunca irá chegar, uma vez que a tendência geral continua cada vez mais ser a utilização da palavra em detrimento da imagem.

Hoje em dia, para se encontrar um bom filme (já não falo no superlativo "excelente") é como encontrar uma agulha em palheiro. O mercado, de há uns bons anos para cá, encontra-se saturado de obras medíocres, onde se destacam de um modo geral os chamados blockbusters, os filmes de animação e um conjunto sem fim de "super-heróis", fabricados em fábricas Marvel, cada um mais estupidificante que o outro, mas que, pelos vistos, se tornou moda e uma ameaça real de continuidade. Salvo raras excepções, o cinema de autor há muito que se esgotou e agora a concorrência é feita ferozmente entre as principais produtoras de filmes, usando técnicas cada vez mais agressivas e sofisticadas da publicidade, como dando razão ao que um dia o cineasta Jean-Luc Godard declarou numa entrevista: «La pub? Ohhhh... Mais ça c'est le fascisme de demain!» É por isso que considero tão importante a memória cinéfila, que nos permite recordar e voltar a ver e a rever obras intemporais, fazendo-nos regressar a uma época onde podíamos escolher entre, por exemplo, um Kubrick, um Truffaut, um Fellini, um Hitchcock, um Bergman ou, neste caso, um Visconti.



Gustav von Aschenbach: «You must never smile like that. 
You must never smile like that at anyone»

Este filme representa na perfeição o que atrás referi. Vi-o pela primeira vez no dia 17 de Setembro de 1971, na sessão da noite do cinema Monumental, após ter jantado na cervejaria Portugália da Almirante Reis (nessa altura era a única que existia), com a minha namorada de então. Ela tinha 16 anos e eu 18 e ambos detestámos o filme. Hoje consigo entender na perfeição a razão base dessa rejeição: um par de jovens daquelas idades não pode entender o significado deste filme, onde se fala de tudo quanto é oposto ao universo particular que caracteriza quem ainda tem uma vida inteira pela frente, quem por isso mesmo se sente imortal. Mas tratando-se do grande Luchino Visconti, fui dando ao filme outras oportunidades ao longo da vida. E em cada uma dessas oportunidades fui cimentando o fascínio que "Morte em Veneza" começou depois a exercer em mim, ao ponto de hoje o considerar um dos mais belos filmes de sempre sobre o envelhecimento e a morte. Mas lá está... Tive de envelhecer para olhar o filme com uma mentalidade completamente diferente.

"Morte em Veneza" baseia-se no encontro entre dois seres, entre dois mundos, a partir do olhar que lançam um sobre o outro. Visconti, no apogeu da sua carreira artística, inventa uma escrita indissociável da intenção a que serve de expressão. Nenhum diálogo: a comunicação estabelece-se para lá das palavras. Aschenbach (Dirk Bogarde), compositor já contestado pelo seu habitual público e pelos seus discípulos, tão certo das suas verdades, de uma vida onde os conceitos se encontram meticulosamente arrumados, onde se propagandeia uma visão idealista da beleza, encontra o seu anjo da morte, Tadzio (Björn Andresen), num hotel luxuoso do Lido de Veneza, habitado por uma despreocupada grande burguesia.

Confrontado com uma beleza que o perturba, com uma juventude que tenta desesperadamente agarrar e reconquistar, Aschenbach entrará em guerra consigo próprio, iniciando assim a sua lenta mas inexorável agonia. Com Tadzio surge a certeza de que nenhuma verdade é eterna, de que nenhum momento é tranquilo, de que nenhum passado, ainda que feliz, é intocável. Conforme o próprio Visconti refere, «Tadzio resume o que constitui um pólo da vida de Aschenbach, um pólo que, representando a vida – como alternativa e antítese do universo rigidamente intelectual, dessa vida “sublimada” em que Aschenbach se encerrou – desemboca na morte. Tadzio, à semelhança da prostituta Esmeralda, não representa apenas a vida, mas a sua dimensão específica, perturbante, contaminadora, que é a beleza. Mann costumava citar Platão, dizendo “quem com os próprios olhos contemplou a beleza está condenado à morte”. Gostaria, de resto, que esta frase fosse a frase de lançamento do filme, pois contém o seu sentido mais profundo.»

A decadência física já se apoderou de Aschenbach e é essa debilidade progressiva do corpo e dos sentidos que o impede de contrabalançar o esforço intelectual que ainda o habita. O peso inexorável do tempo consome-o cada vez mais, criando uma espécie de barreira invisível entre ele e os outros. A câmara de Visconti, esgueirando-se por detrás das colunas da cidade ou contornando os objectos que povoam as salas do hotel, busca uma cumplicidade com esta sensação de progressivo afastamento do mundo, até à inevitável separação final. A última visão a que Aschenbach desesperadamente se tenta agarrar é a da silhueta de Tadzio que se recorta, ao longe, no esplendor duma tarde que desaparece no mar. Visconti, encenador de génio e um aristocrata do cinema, soube, talvez melhor do que ninguém, pintar o crepúsculo duma classe e o fim de uma época. É com Visconti que compreendemos que o romantismo também não escapa à morte.

No livro de Thomas Mann, onde o filme é baseado, Aschenbach era um escritor e não um músico. Interrogado sobre o porquê de tal mudança, Visconti retorquiu que «no cinema um músico é um ser mais “representável” do que um homem de letras, pois sempre é possível fazer ouvir a música de um compositor, ao passo que para um escritor se é obrigado a recorrer a expedientes fastidiosos e pouco expressivos como a voz-off. Além disso, Mann inspirou-se de facto na figura concreta de um músico, Gustav Mahler. Aliás, o encontro de Mann com Mahler, embora fugaz e sem continuidade, levou-o a definir o compositor, num bilhete que lhe dirigiu pouco depois, como o homem “em que se incarna a vontade artística mais sagrada e mais rigorosa do nosso tempo”. E foi ainda Mann a afirmar que, enquanto se agarrava à redacção de “Morte em Veneza”, ia tomando conhecimento dos relatórios médicos sobre a agonia do compositor, e que em seguida a notícia da sua morte o tocou profundamente. Decerto não é por acaso que o nome próprio de Aschenbach é Gustav, tal como o de Mahler»



Filme muito belo onde a sensualidade se encontra no olhar, “Morte em Veneza”, com um admirável acompanhamento do Adagietto da Quinta Sinfonia de Mahler, vai-nos revelando o Amor na sua forma mais pura, mais filosófica, resultando numa das mais profundas interrogações de um artista sobre a sua vida e o significado do seu universo: «Pois que a beleza, e só ela, é digna de ser amada e visível ao mesmo tempo. Ela é a única forma do espiritual que recebemos através dos sentidos e que podemos suportar pelos sentidos», como escreve Mann no seu pequeno livro. Ou ainda a constatação de que a nossa “ordem” não passa, tantas vezes, de um refúgio, vulnerável e inseguro, contra o caos libertador e criativo.

CURIOSIDADES:

- “Morte em Veneza” é normalmente citada como a segunda parte da “trilogia alemã” de Visconti. “Os Malditos”, de 1969 e “Luís da Baviera”, de 1972, são os outros dois filmes.

- Um dia, durante uma pausa das filmagens, Björn Andresen perguntou a Dirk Bogarde qual a canção dos Beatles que ele preferia. O actor inglês não foi capaz de responder.

- O filme ganhou o Oscar do melhor gurda-roupa (Piero Tosi) e 4 BAFTAS ingleses: Cinematografia, Direcção Artística, Guarda-Roupa e Banda Sonora.


terça-feira, dezembro 14, 2021

DUEL (1971)


UM ASSASSINO PELAS COSTAS
Um filme de STEVEN SPIELBERG




Com Dennis Weaver, Jacqueline Scott, Eddie Firestone, Lou Frizzell, etc.

EUA / 90 min / COR / 4X3 (1.33:1)

Estreia nos EUA a 13/11/1971 (TV)
Estreia em PORTUGAL a 3/5/1973



David Mann: «Come on you miserable fat-head, 
get that fat-ass truck outta my way!»

A ascensão de Steven Spielberg foi meteórica, como todos o sabem. Começa a brincar ao cinema fazendo pequenos filmes de Super 8 entre os doze e os catorze anos. Aos dezoito experimenta os 35 mm numa curta-metragem de 24 minutos, que lhe abre de imediato as portas do profissionalismo. O título é "Amblin'" (nome que muitos anos depois atribuirá à sua empresa de produções) e vale-lhe um contrato para a televisão, onde, aos 21 anos, dirige Joan Crawford, num episódio ("Eyes") de uma série de sucesso, "Night Gallery". Mantém-se no mundo televisivo por mais alguns anos e é aí que roda o seu primeiro filme, aos 24 anos: este excitante "Duel", cujo êxito e qualidade impõem uma exploração comercial (sendo para isso aumentado de 74 para 90 minutos) nas salas de cinema de todo o mundo, incluindo Portugal, onde o filme se estreia a  3 de Maio de 1973.

Realizado com parcos recursos (que, de certo modo, o caracteriza como um filme independente), "Duel" parte de um argumento original de Richard Matheson (o mesmo de "The Incredible Shrinking Man", aqui já abordado recentemente) e desenvolve-se segundo um esquema simples mas de grande intensidade dramática. David Mann (Dennis Weaver, conhecido actor televisivo, falecido em 2006 com 81 anos), é um caixeiro-viajante que conduz calmamente o seu Plymouth Valiant (matrícula 149 PCE) pelo deserto da California. É pleno Verão, o dia está quente, e o rádio do carro vai debitando as notícias do dia. David tem uma certa pressa em chegar ao seu destino, para poder regressar a casa e fazer as pazes com a mulher, com quem se desentendeu nas vésperas da partida. Subitamente aparece-lhe pela frente um gigantesco camião-cisterna, a expelir um fumo negro e desagradável. Logo que pode, David ultrapassa-o, livrando-se assim da incómoda presença. Mas o condutor do camião sente-se de algum modo "picado" e volta a colocar-se na dianteira.

O que parece ser de início um jogo do "gato e do rato" (quantos de nós já não experimentámos algo semelhante por essas estradas fora?), vai progressivamente tomando proporções alarmantes, a ponto de obrigar David a lutar pela própria vida para escapar ao lunático que se encontra ao volante do camião. Lunático do qual nunca se vê o rosto, ao longo de todo o filme, apenas um braço ou uma silhueta distante. Spielberg filma o seu assassino apenas como uma presença, medonha e ameaçadora, que parece não recuar perante nada para atingir o seu objectivo: atirar David para fora da estrada, destruí-lo sob o seu poderoso rodado, cilindrá-lo a todo o custo. David tenta tudo para se furtar ao perigoso confronto: a abordagem directa, a ajuda de terceiros, a comunicação à polícia, inclusivé usa o subterfúgio ou a fuga temporária. Nada resulta, a ameaça continua bem presente e cada vez mais agressiva. Por fim, esgotadas todas as tentativas, David não tem outro remédio senão arregaçar as mangas, fazer das tripas coração e enfrentar aquele autêntico Golias da estrada.

Com "Duel" (óptima tradução em português para "Um Assassino Pelas Costas"), Spielberg conduz-nos ao mundo do "realismo fantástico", onde o que parece impossível adquire plausibilidade, e a realidade destapa uma outra face, absurda e inquietante. Apelidado de "primeiro filme-modelo" por François Truffaut, aplaudido por Alfred Hitchcock e David Lean, "Duel" é cinema do princípio ao fim, sentindo-se a já segura mão de Spielberg, logo desde as primeiras imagens, como recorda Clélia Cohen, crítica dos Cahiers du Cinéma entre 1997 e 2004: «Na escuridão total, ruídos de passos, o bater de uma porta, um motor que arranca. O écrã ilumina-se, mostrando o fundo de uma garagem, da qual o espectador sai em marcha atrás, para a rua. Os primeiros cinco minutos de filme descrevem o trajecto dum veículo, onde a câmara ocupa o lugar do condutor, desde as ruas calmas de um subúrbio com vivendas até à saída da cidade, e a chegada a uma auto-estrada da Califórnia. Tudo isto em planos que se fundem uns nos outros, ao som do rádio.

Este movimento inaugural majestoso não é apenas a passagem geográfica da cidade para o deserto, é um mergulho numa idade primitiva da América, em que se faziam perseguições a cavalo e "duelos ao sol". É quase um flashback. Excepto que aqui o confronto não é homem contra homem, mas de homem-carro contra camião sem rosto. Esta "desumanização" do condutor do camião é filmada como um velho animal raivoso, ruidoso e ferrugento - o primeiro desse tipo de monstros (tubarões, dinossauros, Tripods) que povoarão o cinema de Spielberg. Quando o camião "morre", no final do filme, é-lhe acrescentado um efeito sonoro singular, uma espécie de grito que se escapa do peso-pesado quando este cai por terra: um estertor de dinossauro?

Há aqui uma ponta de insolência de cineasta ambicioso e com pressa de se distanciar, ao volante do seu belo Plymouth, das figuras e dos métodos de um cinema feito por dinossauros prestes a chegar ao fim do seu tempo. Cada plano deste filme filmado em dezasseis dias revela um instinto orgânico da linguagem cinematográfica. A pureza plástica (o vermelho do automóvel, o azul do céu, os ocres da paisagem), aliada à sensação permanente de progressão e velocidade, contribui para a nitidez rutilante da encenação. Mas esta perfeição rectilínea é atravessada por pulsões selvagens e absurdas que elevam "Um Assassino Pelas Costas" muito para além de um exercício de estilo brilhante.

É, paradoxalmente, mais do lado da identidade do herói (um homem vulgar, perseguido de forma arbitrária) do que do lado da identidade do perseguidor (que permanece misteriosa até ao fim), que é necessário procurar a chave do mistério. Compreendemos, quando Mann telefona à esposa a partir de uma estação de serviço, no início do filme, que o casal se separou essa manhã com uma discussão. Portanto, a voz que ele escutava na rádio a queixar-se da megera da esposa era a sua própria voz, num monólogo interior. A longa etapa do jantar à borda da estrada, na qual Mann observa febrilmente cada um dos cowboys encostados ao balcão, imaginando cada um deles como o seu perseguidor, roça o delírio paranóico. 

E as crianças do autobus que lhe fazem caretas pelo vidro de trás, surgem-lhe como pequenos gnomos turbulentos. Toda a aventura de "Um Assassino Pelas Costas" pode, portanto, ser lida como uma construção mental de um neurótico, vítima frustrada do american way of life (casa, esposa, filhos), um sinal da sua loucura larvar. A paisagem que se desnuda progressivamente, perdendo a sua beleza, evoca um percurso rumo ao vazio que introduz um grau de parentesco inesperado com os westerns existenciais de Monte Hellman, "Ride in the Whirlwind" [1965] ou "The Shooting" [1966].»
Os anos 70 documentam assim o arranque em força da filmografia de Spielberg: "Duel" (1971), "The Sugarland Express" (1974), "Jaws" (1975) e os "Close Encounters of the Third Kind" (1977) estão entre os seus melhores filmes. A partir daqui Spielberg irá oscilar entre o óptimo: a trilogia de Indiana Jones (1981-1984-1989), "E.T." (1982), "Always" (1989), "Shindler's List" (1993), "Catch Me If You Can" (2002) e "The Terminal" (2004) e o francamente medíocre ou simplesmente desinteressante. A partir de certa altura nota-se no realizador norte-americano uma certa tendência para, acima de tudo, agradar ao "seu" público, esquecendo-se que no cinema existem vários géneros de público. No que me diz respeito regresso sempre sorridente às suas primeiras obras (onde este "Duel" sempre ocupou lugar de destaque), o que não me acontece com os filmes mais tardios.


CURIOSIDADES:

- "Duel" foi rodado num período de 22 dias (de 13 de Setembro a 4 de Outubro de 1971) e sempre em exteriores

- O edifício do "Chuck's Cafe" ainda se mantém, sendo hoje um restaurante de comida francesa. Localiza-se poucos kms a sul de Acton, Califórnia

- Spielberg voltou a usar Lucille Benson como proprietária de uma estação de serviço no seu filme "1941". De igual modo o casal de idosos do carro que Mann faz parar, aparece de novo no filme "Close Encounters of the Third Kind"

- Quando Carey Loftin, o actor que guia o camião perguntou a Spielberg qual a motivação para atormentar o condutor do carro, este respondeu-lhe: «You're a dirty, rotten, no-good son of a bitch», ao que Carey respondeu: «Kid, you hired the right man»



- Spielberg decidiu-se por contratar o actor Dennis Weaver para o papel de David Mann depois de o ter visto no filme "Touch of Evil", de Orson Welles

- Filmado para a televisão americana, "Duel" só foi exibido pela primeira vez em salas de cinema quando se estreou na Europa (numa cópia com mais 16 minutos do que a versão original, a qual se mantém até aos dias de hoje)

- Spielberg era um fã de Richard Matheson por causa da sua contribuição para a série televisiva "The Twilight Zone"

- A cena final (a queda do camião no precipício) teve de ser rodada em apenas um take, por causa do baixo orçamento do filme: 450 mil dólares

- "Duel" recebeu o Grande Prémio do Festival Fantástico de Avoriaz e também um Emmy pela montagem do som. Foi ainda nomeado para um Globo de Ouro, na categoria de filmes rodados para televisão






quarta-feira, setembro 02, 2015

JOHNNY GOT HIS GUN (1971)

E DERAM-LHE UMA ESPINGARDA...
Um filme de DALTON TRUMBO




Com Timothy Bottoms, Kathy Fields, Marsha Hunt, Jason Robards, Donald Sutherland, Diane Varsi, Charles McGraw, Sandy Brown Wyeth, Donald Barry, etc.

EUA / 111 min / Cor e PB /
16X9 (1.66:1)


Estreia em FRANÇA a 14/5/1971 (Festival de Cannes)
Estreia nos EUA a 4/8/1971 (New York)
Estreia em PORTUGAL a 23/7/1975 (Lisboa, cinema Império)


Joe: «I don't know whether I'm alive and dreaming 
or dead and remembering»

Dalton Trumbo (1905-1976) foi um prolífero e galardoado escritor de Hollywood, responsável por muitos e célebres argumentos de filmes: “Roman Holiday” (1953), “Spartacus” (1960), “Exodus” (1960), “The Sandpiper” (1965), “The Fixer” (1968), “Papillon” (1973) ou “Always” (1989) são alguns dos seus trabalhos mais conhecidos. Durante 6 anos (1943-1948) esteve filiado no Partido Comunista americano, o que o levou a ser integrado na célebre lista negra – os 10 de Hollywood – durante o período da “caça às bruxas”, tendo passado 11 meses na prisão federal em Ashland, Kentucky. Depois de cumprida a sentença, foi viver para o México, onde continuou a escrever para o cinema, mas sob os mais diversos pseudónimos. Chegou inclusivé a ganhar dois Óscares: o primeiro em 1954, com a assinatura de Ian McLellan Hunter, pelo filme “Roman Holiday”; e o segundo em 1957, dessa vez como Robert Rich, pelo filme “The Brave One”. Nos inícios da década de 60, Trumbo foi finalmente reintegrado no sindicato de argumentistas de Hollywood.


Aos 65 anos, Dalton Trumbo realiza o seu único filme, precisamente este “Johnny Got His Gun”, baseado na sua própria novela, escrita e publicada 33 anos antes, em 1937. Com colaboração de Luis Buñuel, que dirigiu as sequências em que intervém Jesus Cristo (Donald Sutherland), o filme atingiu rapidamente o status de cult-movie, devido à sua pouca visibilidade, um pouco por todo o lado. Proibidissimo no tempo da ditadura, só depois de Abril de 1974, com o fim da censura, é que “Johnny Got His Gun” pôde ser apresentado em Portugal. Vi-o em ante-estreia, a 23 de Julho de 1975, no cinema Império, em Lisboa, integrado no XII Ciclo da Casa da Imprensa.


Trata-se de um filme impressionante, de uma espantosa violência. Não a violência vulgar dos tiros, dos murros, ou do sangue, mas a violência cruel e esmagadora duma realidade diabolicamente viva. De novo a guerra e as suas consequências – ou melhor, uma das suas mais dramáticas consequências. É a história de um homem destroçado, física e mentalmente. Sem pernas, sem braços, com um buraco enorme no rosto - reduzido apenas ao tronco e ao cérebro, devido ao rebentamento de uma granada no último dia da I Guerra Mundial, Joe Bonham (Timothy Bottoms) não é mais do que um pedaço informe de “carne inteligente”, designado por “casualidade não identificada nº 47”. Que teima em não morrer. A medicina e a ciência rejubilam com a vitória alcançada, ignorando o trágico sofrimento daquele ser e vislumbrando apenas matéria-prima para experiências. O médico que o “salvou” esconde-o dos olhos dos leigos e mostra-o como troféu aos seus pares - o  grande momento da sua carreira!

Mas Dalton Trumbo vai mais longe. O seu filme é, também, uma crítica intransigente à mentalidade bélica dos americanos. Em nome de um falso patriotismo (habilmente transformado em sinónimo de interesses) tudo se sacrifica, tudo se justifica. Até (coloquemo-nos na época – 1918 – e no esquema social vigente) a própria virgindade de uma filha... pouco menos do que sagrada. Com efeito, partilhamos com Joe a sua primeira experiência sexual. A rapariga, Kareen (Kathy Fields), está em casa, sentada ao seu colo. O pai chega e surpreende-os em mútuas carícias. Espera-se uma descompostura e a expulsão do rapaz, tal como mandava a tradição na época. Mas após um breve lampejo de fúria a reacção é precisamente a oposta. Que diabo, Joe parte para a guerra no dia seguinte e há que lhe dar as honras devidas aos heróis, há que ser-se condescendente, há que ser-se patriótico.


Duplamente galardoado em Cannes (Prémio FIPRESCI e Grande Prémio do Júri), “Johnny Got His Gun” é de longe o melhor filme anti-guerra jamais realizado. O seu grande horror reside sobretudo no que não é mostrado no écran, uma vez que vemos apenas um lençol branco a cobrir os restos do que em tempos foi um homem. A imaginação transcende sempre a realidade, e Dalton Trumbo soube muito bem passar a sua mensagem. Quer filmando alternadamente a cores (para as fantasias e as lembranças) e a preto-e-branco (para a realidade) quer utilizando a voz-off para que o público pudesse ouvir os pensamentos de Joe Bonham. Socorrendo-se também de cenas de reportagens verídicas, Trumbo destribui a sua narrativa por vários hospitais, onde Joe é mantido em segredo, fechado em quartos vazios, mantido a soro e a oxigénio.

Num desses hospitais Joe encontra uma enfermeira que se interessa humanamente por ele: toca-o sem repulsa, beija-lhe a fronte, chega mesmo a masturbá-lo, ao dar-se conta que é um prazer que ele ainda é capaz de sentir. Entre os dois conseguem estabelecer uma via de comunicação (por sinais em linguagem morse) o que possibilita Joe a dar a conhecer o seu desejo: quer ser exibido de feira em feira, quer que as pessoas se apercebam daquilo que uma guerra pode criar. A recusa dos médicos a tal pedido é obviamente a reacção esperada e a Joe só lhe resta implorar por uma morte piedosa. Mas uma vez mais esbarra na cegueira de todos para quem a práctica da eutanásia é imoral, por muito desesperados que sejam os seus apelos: «SOS – help me – SOS – help me – SOS – help me...» Dalton Trumbo realizou um filme onde a fronteira entre a vida e a morte se reduz a uma linha terrivelmente difusa. Onde – ainda mais importante – a guerra e os sistemas políticos que a alimentam (quase sempre em nome da paz) são intransigentemente denunciados. Por alguma razão Dalton Trumbo foi um dos “malditos” do cinema americano.




domingo, agosto 09, 2015

THE HUNTING PARTY (1971)

CAÇADA IMPLACÁVEL
Um filme de DON MEDFORD


Com Oliver Reed, Candice Bergen, Gene Hackman, Simon Okland, Ronald Howard, Mitchell Ryan, etc.

US-UK / 111 min / COR / 
16X9 (1.85:1)

Estreia nos EUA: New York, 16/7/1971
Estreia em MOÇAMBIQUE: LM (Teatro Gil Vicente), 26/12/1971

Melissa: «Why do you want to learn how to read?»
Frank: «Because I can't»

Este filme tinha-me deixado boas recordações, desde que o vi em Lourenço Marques (onde correu com o título de "Caçada Selvagem"), em finais de Dezembro de 1971. Agora, 4 décadas passadas, voltei a revê-lo, e confirmei as razões pelas quais guardava tão boas memórias. Trata-se de um western sui generis, onde se subvertem os valores tradicionais deste tipo de filmes. Brandt Ruger (Gene Hackman) é um rancheiro putanheiro e cruel, cuja mulher é raptada por um fora-da-lei, Frank Calder (Oliver Reed). A razão não é obter qualquer tipo de resgate, mas, curiosamente, o desejo de Frank em aprender a ler: Melissa (Candice Bergen) é confundida com a professora da escola local, onde se encontra de visita. Violada por Frank, recusa-se a colaborar no principal objectivo do seu captor (aprender o abecedário), o qual a força a um jejum prolongado, de modo a conseguir obter os seus fins. Esta situação conduz a uma cena hilariante (a da lata dos pêssegos), em que por fim Melissa se verga às intenções de Frank.


Habituada a servir da pior maneira o seu cruel e odioso marido (que não nutre por ela qualquer sentimento, considerando-a tão sómente sua propriedade exclusiva), Melissa vai pouco a pouco desenvolvendo uma correspondida afeição por Frank, a qual, obviamente, está desde logo condenada ao desenlace trágico. Brandt e os seus pares iniciam uma perseguição feroz ao bando, que aos poucos vão dizimando, mercê da posse de carabinas último modelo, cujo alcance é bastante superior às armas vulgares da época. A obsessão toma cada vez mais conta de Brandt, que levará a "caçada" até às últimas consequências.



Depois de "Soldier Blue" (1970), Candice Bergen volta a interpretar um western, que, tal como o precedente, iria ser recordado essencialmente pela sua violência e brutalidade. A cena inicial - em que uma vaca é degolada - seria retirada inclusivé das cópias estreadas em Inglaterra. "The Hunting Party" é o primeiro dos três filmes que Candice rodaria com Gene Hackman (os outros dois foram "Bite The Bullet / Desafio à Coragem", em 1975; e "The Domino Principle / Atentado ao Presidente", em 1977). Dele diria a actriz, que foi quem mais a ajudou na arte de representar.


Grande parte dos críticos da época acusou "The Hunting Party" de se basear no pior de "The Wild Bunch / A Quadrilha Selvagem", que Sam Peckinpah tinha rodado dois anos antes. Não partilho dessa opinião, apesar de reconhecer que os dois filmes têm alguns pontos em comum, nomeadamente na apresentação de alguma violência gratuita e alguns efeitos em slow-motion. Mas Don Medford (um director que rodou essencialmente filmes para televisão durante toda a sua carreira - faleceu em 2012 com 95 anos -, tendo aqui a sua segunda e última incursão no cinema), consegue um filme tenso e desenvolto, cuja visão, ainda hoje, é bastante gratificante (pode ser descarregado aqui).


segunda-feira, outubro 21, 2013

REAZIONE A CATENA (1971)

BAY OF BLOOD /
REACÇÃO EM CADEIA
Um Filme de MARIO BAVA


Com Claudine Auger, Luigi Pistilli, Claudio Volonté, Anna Rosati, Chris Avram, Leopoldo Trieste, Laura Betti, Brigitte Skay, Isa Miranda, Paola Rubens, etc.


ITÁLIA / 84 min / COR / 16X9 (1.85:1)

Estreia em ITÁLIA a 8/9/1971

Estreia nos EUA a 3/5/1972


«I make horror movies. My aim is to scare people, 
yet I’m a fainthearted coward. 
Maybe that’s why my movies turn out 
to be so good at scaring people»
(Mario Bava)

Falecido em 1980, com 65 anos, Mario Bava é hoje considerado um dos mestres do cinema fantástico europeu. De entre a enorme legião de fans que o realizador italiano seduz um pouco por todo o mundo, há a realçar alguns nomes mais conhecidos e as suas opiniões sobre o seu universo fílmico. Martin Scorsese, por exemplo, diz amar os filmes de Bava, sobretudo pela atmosfera que eles exalam. Joe Dante declarou certa vez que nenhum outro cineasta filmava a morte de forma tão apaixonada. Já Tim Burton, um dos mais criativos autores da nova geração, elegeu “La Maschera Del Demonio” como sendo o seu filme favorito.


“Reazione A Catena”, que literalmente significa “Reacção em Cadeia”, mas que já teve variadissimas designações (muito provavelmente será o filme a que mais títulos foram atribuídos) conforme os países em que foi exibido (“Bay of Blood”, “Twitch of the Death Nerve, “Antefatto – Ecologia Del Delitto”, “A Mansão da Morte”, "Banho de Sangue", “Carnage”, entre muitos outros), é uma metáfora sobre homens e insectos. Ou, mais precisamente, sobre como os humanos, quando destituídos das suas regras morais se parecem com aqueles invertebrados. Não será por acaso que logo a abrir o filme nos mostre o vôo de uma mosca invisível que morre durante o trajecto, caíndo nas águas da baía onde irão acontecer todas as treze mortes das personagens de “Reazione A Catena”.


Mortes essas que ocorrem pelos mais diversos motivos e das formas mais variadas. Pessoas que começamos por julgar inocentes, mas que, após a queda das máscaras, se irão revelar como merecedoras da morte mais violenta. Não existe, em toda a galeria dos personagens do filme, um único que desperte a simpatia ou sequer a comiseração do espectador. Todos sem excepção são cruéis e interesseiros, que não hesitam em se matarem uns aos outros. Mesmo o descuido das últimas duas mortes (Bava conclui o seu filme com um toque de humor, obviamente...negro) não acarreta qualquer remorso aos seus pequenos autores, que alegremente correm banhar-se nas águas da baía.


Visto actualmente, a quatro décadas de distância, não espanta que “Reazione A Catena” tenha sido um fracasso de bilheteira em 1971. Com toda a certeza foi encarado nessa altura como um objecto raro e estranho, dada a sua exarcebação pela violência gratuita, mesclada com um certo erotismo e corrupção da carne. Hoje são precisamente esses aspectos que fazem do filme de Bava um clássico do género, por se reconhecer nele o percursor dos chamados slasher movies norte-americanos onde inevitavelmente ocorre uma morte sangrenta a cada cinco minutos. Mas contrariamente a estes filmes, hoje tão comuns, onde se morre por razões morais ou arbitrárias, no filme de Bava é a cobiça que se encontra na origem das execuções, e que faz de “Reazione A Catena” uma visão extremamente negra da sociedade italiana.





A morte da primeira vítima, a paraplégica condessa Federica Donati (Isa Miranda), às mãos do próprio marido (que logo de seguida é também ele apunhalado), dá o mote para os assassínios que irão ocorrer ao longo do filme – é toda uma teia de intrigas que faz lembrar as tragédias gregas, ao evidenciar o ridículo das ambições humanas. No fim todos os culpados são vítimas e vice-versa. No maquiavelismo dos protagonistas não existem diferenças, todos são iguais no Mal que os alimenta. Tal como o faria qualquer entomologista, Bava estuda e dirige as suas marionetas num universo mórbido em que não existe escapatória possível, interrogando-se sobre a oposição entre o primitivo e o civilizado, e sobre as origens maléficas do ser humano. Cegado pela sensação de poder, convencido da superioridade da inteligência, o indivíduo esquece-se de que não passa de um ser vivo entre tantos outros, integrado num gigantesco ciclo biológico onde o predador se torna também na presa.


“Reazione A Catena” é um dos filmes mais conhecidos e controversos de Mario Bava e aquele que certamente mais influenciou o género do terror, logo no início dos anos 70 (em 2005, a revista Total Film incluíu-o na lista dos melhores 50 filmes de terror de todos os tempos); e o crítico Gary Johnson afirmou tratar-se do filme mais imitado das últimas quatro décadas. Mas ao longo dos anos “Reazione A Catena” foi alvo dos mais variadissimos cortes, consoante o peso das censuras dos Países por onde foi sendo exibido. Na estreia, no Festival de Avoriaz, o actor Christopher Lee (o Drácula de tantos filmes da Hammer), abandonou a sala de projecção revoltadissimo com o que acabara de ver. É por isso de saudar, para gáudio de todos os admiradores da obra de Mario Bava e deste filme em particular, a edição em Blu-Ray de uma cópia integral e remasterizada. A editora responsável é a Arrow Video, que lançou o DVD no mercado nos fins do ano passado. Inclui também a versão italiana (com cores mais saturadas mas infelizmente não beneficiando do tratamento digital), meia dúzia de posters (dois deles desdobráveis em formato grande), um comentário audio de Tim Lucas e diversos documentários. Tudo devidamente legendado em inglês. Imprescindível!