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domingo, outubro 09, 2022

MORTE A VENEZIA (1971)

MORTE EM VENEZA
Um Filme de LUCHINO VISCONTI


Com Dirk Bogarde, Romolo Valli, Mark Burns, Nora Ricci, Marisa Berenson, Carole André, Björn Andresen, Silvana Mangano, etc.

ITÁLIA-FRANÇA / 130 min / 
COR / 16X9 (2.35:1)

Estreia em Itália a 5/3/1971
Estreia em Portugal a 14/9/1971 
(Lisboa, Cinema Monumental)


AS IMAGENS DA MEMÓRIA

Antes de me debruçar sobre a obra-prima de Visconti, gostava de tecer algumas considerações sobre aquilo a que chamo "As imagens da memória", uma vez que relaciono directamente este filme com esse conceito. A memória é uma coisa estranha. Não recordamos exactamente o que ocorreu em cada momento do nosso passado, mas, uma vez por outra, capturamos uma impressão, uma ideia geral. E na hora de recordar é o nosso cérebro que preenche as lacunas, mas de um modo que não é em geral o mais correcto. Ou seja, tendemos a embelezar esses buracos da memória em detrimento dos factos menos agradáveis. 

A memória cinéfila, pelo contrário, é muito mais verdadeira. Recordamos cenas ou sequências de determinado filme, tal qual ficaram no nosso cérebro. E se essa recordação se encontra porventura um tanto ou quanto embaciada, basta voltarmos ao filme e rever tudo de novo. A única diferença é que, naturalmente, revemos as mesmas imagens mas com outros olhos, porque à medida que crescemos nos vamos transformando em pessoas completamente diferentes. Ou seja, envelhecemos. E esta hipótese é mesmo a única maneira de um filme se poder alterar, adquirindo um novo significado, e não ser sempre igual a si mesmo. Porque no processo de envelhecimento, sempre que revemos um filme que amamos, vamos-lhe dando também um pouco de nós mesmos, numa natural relação amorosa. É que o amor não é um fenómeno quotidiano, necessita de um tempo de assimilação e reconhecimento. E esse tempo traduz-se em cada contacto com o filme amado, em cada olhar, em cada lembrança que ele nos impõe. Estes dois exercícios da nossa mente, o olhar primeiro, a lembrança depois, são imortais e, se esquecidos, sobrevivem no nosso inconsciente.

É por isso que o tempo é o juiz supremo da qualidade de um filme. O entendimento que temos dele é diferente consoante a idade com que o vemos. Daí o não ter já muita paciência com a maioria dos críticos actuais que, por um qualquer filme parecer destacar-se da maioria, o adjectivam logo de "obra-prima", não entendendo sequer o mundo actual, onde a arte cinematográfica se tornou numa indústria mais do que qualquer outra coisa. Como não entendem que o cinema, o verdadeiro cinema, tem por veículo ideal a imagem e não a palavra. Penso mesmo que se poderia dividir os filmes em duas categorias: aqueles em que predomina o argumento e aqueles em que predominam as imagens; o que corresponde quase a dizer: os que são medíocres e os que são belos. No dia em que o grande público consiga ver imediatamente essa diferença entre um filme que se desenvolve pelas imagens e um filme que se desenvolve pelo argumento, nesse dia conseguirá compreender o significado do cinema. Mas temo, sinceramente, que esse dia nunca irá chegar, uma vez que a tendência geral continua cada vez mais ser a utilização da palavra em detrimento da imagem.

Hoje em dia, para se encontrar um bom filme (já não falo no superlativo "excelente") é como encontrar uma agulha em palheiro. O mercado, de há uns bons anos para cá, encontra-se saturado de obras medíocres, onde se destacam de um modo geral os chamados blockbusters, os filmes de animação e um conjunto sem fim de "super-heróis", fabricados em fábricas Marvel, cada um mais estupidificante que o outro, mas que, pelos vistos, se tornou moda e uma ameaça real de continuidade. Salvo raras excepções, o cinema de autor há muito que se esgotou e agora a concorrência é feita ferozmente entre as principais produtoras de filmes, usando técnicas cada vez mais agressivas e sofisticadas da publicidade, como dando razão ao que um dia o cineasta Jean-Luc Godard declarou numa entrevista: «La pub? Ohhhh... Mais ça c'est le fascisme de demain!» É por isso que considero tão importante a memória cinéfila, que nos permite recordar e voltar a ver e a rever obras intemporais, fazendo-nos regressar a uma época onde podíamos escolher entre, por exemplo, um Kubrick, um Truffaut, um Fellini, um Hitchcock, um Bergman ou, neste caso, um Visconti.



Gustav von Aschenbach: «You must never smile like that. 
You must never smile like that at anyone»

Este filme representa na perfeição o que atrás referi. Vi-o pela primeira vez no dia 17 de Setembro de 1971, na sessão da noite do cinema Monumental, após ter jantado na cervejaria Portugália da Almirante Reis (nessa altura era a única que existia), com a minha namorada de então. Ela tinha 16 anos e eu 18 e ambos detestámos o filme. Hoje consigo entender na perfeição a razão base dessa rejeição: um par de jovens daquelas idades não pode entender o significado deste filme, onde se fala de tudo quanto é oposto ao universo particular que caracteriza quem ainda tem uma vida inteira pela frente, quem por isso mesmo se sente imortal. Mas tratando-se do grande Luchino Visconti, fui dando ao filme outras oportunidades ao longo da vida. E em cada uma dessas oportunidades fui cimentando o fascínio que "Morte em Veneza" começou depois a exercer em mim, ao ponto de hoje o considerar um dos mais belos filmes de sempre sobre o envelhecimento e a morte. Mas lá está... Tive de envelhecer para olhar o filme com uma mentalidade completamente diferente.

"Morte em Veneza" baseia-se no encontro entre dois seres, entre dois mundos, a partir do olhar que lançam um sobre o outro. Visconti, no apogeu da sua carreira artística, inventa uma escrita indissociável da intenção a que serve de expressão. Nenhum diálogo: a comunicação estabelece-se para lá das palavras. Aschenbach (Dirk Bogarde), compositor já contestado pelo seu habitual público e pelos seus discípulos, tão certo das suas verdades, de uma vida onde os conceitos se encontram meticulosamente arrumados, onde se propagandeia uma visão idealista da beleza, encontra o seu anjo da morte, Tadzio (Björn Andresen), num hotel luxuoso do Lido de Veneza, habitado por uma despreocupada grande burguesia.

Confrontado com uma beleza que o perturba, com uma juventude que tenta desesperadamente agarrar e reconquistar, Aschenbach entrará em guerra consigo próprio, iniciando assim a sua lenta mas inexorável agonia. Com Tadzio surge a certeza de que nenhuma verdade é eterna, de que nenhum momento é tranquilo, de que nenhum passado, ainda que feliz, é intocável. Conforme o próprio Visconti refere, «Tadzio resume o que constitui um pólo da vida de Aschenbach, um pólo que, representando a vida – como alternativa e antítese do universo rigidamente intelectual, dessa vida “sublimada” em que Aschenbach se encerrou – desemboca na morte. Tadzio, à semelhança da prostituta Esmeralda, não representa apenas a vida, mas a sua dimensão específica, perturbante, contaminadora, que é a beleza. Mann costumava citar Platão, dizendo “quem com os próprios olhos contemplou a beleza está condenado à morte”. Gostaria, de resto, que esta frase fosse a frase de lançamento do filme, pois contém o seu sentido mais profundo.»

A decadência física já se apoderou de Aschenbach e é essa debilidade progressiva do corpo e dos sentidos que o impede de contrabalançar o esforço intelectual que ainda o habita. O peso inexorável do tempo consome-o cada vez mais, criando uma espécie de barreira invisível entre ele e os outros. A câmara de Visconti, esgueirando-se por detrás das colunas da cidade ou contornando os objectos que povoam as salas do hotel, busca uma cumplicidade com esta sensação de progressivo afastamento do mundo, até à inevitável separação final. A última visão a que Aschenbach desesperadamente se tenta agarrar é a da silhueta de Tadzio que se recorta, ao longe, no esplendor duma tarde que desaparece no mar. Visconti, encenador de génio e um aristocrata do cinema, soube, talvez melhor do que ninguém, pintar o crepúsculo duma classe e o fim de uma época. É com Visconti que compreendemos que o romantismo também não escapa à morte.

No livro de Thomas Mann, onde o filme é baseado, Aschenbach era um escritor e não um músico. Interrogado sobre o porquê de tal mudança, Visconti retorquiu que «no cinema um músico é um ser mais “representável” do que um homem de letras, pois sempre é possível fazer ouvir a música de um compositor, ao passo que para um escritor se é obrigado a recorrer a expedientes fastidiosos e pouco expressivos como a voz-off. Além disso, Mann inspirou-se de facto na figura concreta de um músico, Gustav Mahler. Aliás, o encontro de Mann com Mahler, embora fugaz e sem continuidade, levou-o a definir o compositor, num bilhete que lhe dirigiu pouco depois, como o homem “em que se incarna a vontade artística mais sagrada e mais rigorosa do nosso tempo”. E foi ainda Mann a afirmar que, enquanto se agarrava à redacção de “Morte em Veneza”, ia tomando conhecimento dos relatórios médicos sobre a agonia do compositor, e que em seguida a notícia da sua morte o tocou profundamente. Decerto não é por acaso que o nome próprio de Aschenbach é Gustav, tal como o de Mahler»



Filme muito belo onde a sensualidade se encontra no olhar, “Morte em Veneza”, com um admirável acompanhamento do Adagietto da Quinta Sinfonia de Mahler, vai-nos revelando o Amor na sua forma mais pura, mais filosófica, resultando numa das mais profundas interrogações de um artista sobre a sua vida e o significado do seu universo: «Pois que a beleza, e só ela, é digna de ser amada e visível ao mesmo tempo. Ela é a única forma do espiritual que recebemos através dos sentidos e que podemos suportar pelos sentidos», como escreve Mann no seu pequeno livro. Ou ainda a constatação de que a nossa “ordem” não passa, tantas vezes, de um refúgio, vulnerável e inseguro, contra o caos libertador e criativo.

CURIOSIDADES:

- “Morte em Veneza” é normalmente citada como a segunda parte da “trilogia alemã” de Visconti. “Os Malditos”, de 1969 e “Luís da Baviera”, de 1972, são os outros dois filmes.

- Um dia, durante uma pausa das filmagens, Björn Andresen perguntou a Dirk Bogarde qual a canção dos Beatles que ele preferia. O actor inglês não foi capaz de responder.

- O filme ganhou o Oscar do melhor gurda-roupa (Piero Tosi) e 4 BAFTAS ingleses: Cinematografia, Direcção Artística, Guarda-Roupa e Banda Sonora.


sábado, julho 06, 2019

THE FIXER (1968)

O HOMEM DE KIEV
Um filme de JOHN FRANKENHEIMER


Com Alan Bates, Dirk Bogarde, Georgia Brown, Hugh Griffith, Elizabeth Hartman, Ian Holm, David Warner, Carol White, etc.

GB / 132 min / COR / 16X9 (1.85:1)

Estreia nos EUA: 8/12/1968
Estreia em PORTUGAL: 19/10/1969
Estreia em MOÇAMBIQUE: LM (cinema Infante), 20/2/1970


Yakov Bog: «A única coisa que o sofrimento me ensinou
é a inutilidade do sofrimento»


Alan Bates (1934-2003) foi um dos meus actores de eleição dos anos 60 e 70. Era daqueles que invariavelmente me fazia ir ao cinema, independentemente do filme em cartaz, por ter sempre a garantia de uma boa representação. Fez filmes inesquecíveis, que marcaram a história do cinema: “Alexis Zorbas / Zorba, o Grego” (1964), “Far From The Madding Crowd / Longe da Multidão” (1967), “Women In Love / Mulheres Apaixonadas” (1969), “The Go-Between / O Mensageiro” (1971), “A Day In The Death Of Joe Egg / Um Dia na Morte de Joe Egg” (1972). Mas se tivesse de eleger um único filme seu, seria precisamente este “Homem de Kiev”, um filme que me perturbou bastante na primeira vez que o vi (tinha 16 anos nessa altura, razão pela qual nunca mais me esqueci dessa forte experiência), e onde Alan Bates tem um desempenho memorável. Coincidência ou não, foi este filme que lhe trouxe a sua única nomeação para o Óscar de Hollywood. Perderia para Cliff Robertson, em “Charly”, outra grande interpretação do ano, a par também de Peter O’Toole em “The Lion In Winter / O Leão no Inverno”. Um trio de respeito, nessa 41ª edição dos Óscars.


Dalton Trumbo, um dos nomes da “lista negra” de Hollywood, escreveu o argumento, baseado numa novela (Prémios Pullitzer e National Book, de 1967) de Bernard Malamud, publicada em 1966, a qual, por sua vez, era baseada numa história verídica, ocorrida nos primórdios do século XX na Rússia Czarista. Mais concretamente em 1911, ano em que um oleiro judeu, Menahem Mendel Beillis, é encarcerado por um crime que não cometeu, o assassínio de um menino cristão, encontrado morto e mutilado nos arredores de Kiev. O caso causou indignação em todo o mundo e fez com que os governantes russos arrepiassem caminho, soltando o prisioneiro, após longos anos de martírio. No filme o personagem tem outro nome, Yakov Bog, um camponês russo, judeu, que apenas ambiciona ter uma vida sossegada, sem grandes problemas. Não quer saber de engajamentos políticos (embora goste de ler Espinoza) nem muito menos de atitudes belicistas contra os poderes instituídos. Para ganhar a vida, não se importa de trabalhar para um anti-semita, Lebedev (Hugh Griffith), que uma noite encontra na rua, completamente bêbado, ajudando a filha deste a levá-lo para casa. A rapariga, chamada Zinalda (Elizabeth Hartman), é uma solteirona experimentada, que tenta levar Bog para a cama. Quase consegue os seus intentos, mas o facto de se encontrar menstruada inibe por completo o provável parceiro, incapaz de praticar sexo nessas condições.


Curiosamente, pouco tempo depois, Yakov Bog é confrontado de novo com o sangue, desta vez o derramado no assassínio de uma criança, praticado através de um ritual satânico, sendo acusado desse crime hediondo. A própria Zinalda, despeitada, vem ajudar à festa, acusando-o também, mas de tentativa de violação. A partir daqui, e até ao final, iremos assistir à progressiva humilhação de Bog na prisão, sujeito a provocações constantes e a torturas físicas e psicológicas, cada vez mais violentas, por parte dos seus carcereiros, que teimosamente exigem uma confissão por um crime não cometido. Bog tem apenas um aliado na sua trágica odisseia: o advogado Bibikov (Dirk Bogarde), um aristocrata, que irá tentar amenizar as acusações. Mas pouco tempo depois, é o próprio Bibikov que aparece enforcado numa cela da prisão. O caso prolonga-se por vários anos, chegando ao conhecimento do Conde Odoevsky (David Warner), ministro da Justiça, que resolve libertar Bog por entretanto se ter descoberto o verdadeiro assassino, e também por causa de grandes pressões internacionais. Mas Bog, num derradeiro alento para manter a pouca dignidade que lhe resta, recusa ser perdoado por um crime que não cometeu, exigindo um julgamento oficial. O filme termina com Bog a subir a longa escadaria que leva ao tribunal, onde o veredicto final não poderá ser outro senão a da imediata libertação. “The Fixer / O Homem de Kiev” é um filme injustamente esquecido, que nunca teve uma edição decente em DVD. E é pena, por se tratar de uma obra importante, que mantém toda a sua força e actualidade.


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quarta-feira, dezembro 04, 2013

LA CADUTA DEGLI DEI (1969)

OS MALDITOS 
Um filme de LUCHINO VISCONTI

Com Dirk Bogarde, Ingrid Thulin, Helmut Griem, Helmut Berger, Renaud Verley, Umberto Orsini, Reinhard Kolldehoff, Charlotte Rampling, Albrecht Schönhals, Florinda Bolkan, Nora Ricci, Irina Wanka, etc.

ITÁLIA - RFA / 156 min / COR / 16X9 (1.66:1)

Estreia em ITÁLIA a 14/10/1969 (Roma)
Estreia nos EUA a 18/12/1969
Estreia em PORTUGAL a 1/4/1975
(Lisboa, cinema Império)


Aschenbach: «You must realize that today in Germany anything can happen, even the improbable, and it's just the beginning, Frederick. Personal morals are dead. We are an elite society where everything is permissible. These are Hitler's words. My dear Frederick, even you should give them some thought.»

Ao perguntarem-lhe porque, sendo ele italiano, não fazia um filme sobre o fascismo mas antes sobre o nazismo, Visconti respon­deu que, com "La Caduta Degli Dei", quizera dirigir uma tragédia e não uma comédia. Retratan­do a aliança fatal entre os industriais do ar­mamento e Hitler, o cineasta ergue um fresco terrível dos anos que antecederam a II Guerra Mundial. Partindo do particular para o geral, Visconti concentra a sua atenção numa poderosa família, os Von Essenbeck, donos de uma fábrica de aço, começando por nos introduzir nas lutas intestinais que dividem os componentes dessa família na busca de um sucessor para o velho patriarca, o Barão Joachim Von Essenbeck (Albrecht Schönhals). O nazismo é uma espécie de serpente que penetra lentamente naquele núcleo familiar, separando os fortes dos fracos e favorecendo a ascensão dos elemen­tos mais negativos. Que, precisamente, são os que, por interesse ou perversidade, melhor se adaptam às suas tácticas insi­diosas.

Os sobreviventes dos Von Essenbeck acabam assim por se converter nos pilares da nova or­dem e alimentar um monstro devorador – é o fortalecimento do complexo político-industrial que recolocará a Alemanha na posição de potência agressiva, tendo no Nacional-Socialismo um brutal instrumento de poder. O filme reflecte os últimos meses da agonizante República de Weimer, onde a crise que abala o capitalismo alemão abafa toda e qualquer esperança no futuro. As profundas necessidades da população face à subida galopante do custo de vida são exploradas por uma imprensa reaccionária e sensacionalista, que só facilita o aparecimento do Partido Único. Um Partido autoritário e revanchista, que começa a canalizar em proveito próprio os votos de todas as camadas da burguesia, levando-a a acreditar na tarefa messiânica de um novo e carismático líder: Adolph Hitler.  

Na mesma noite em que se encena a grande provocação destinada a fortalecer o nazismo, o incêndio do Reichstag (27 de Fevereiro de 1933), os membros da família Essenbeck reúnem-se num grande jantar, comemorativo do aniversário do velho Barão. Martin (Helmut Berger), o neto e seu aparente herdeiro, é uma pessoa desequilibrada e depravada, de tendências homossexuais, que se irá tornar numa das personagens centrais da tragédia anunciada. Para escândalo dos presentes, irá prestar uma cínica homenagem ao avô representando um travesti de Marlene Dietrich no “Anjo Azul” (uma das mais icónicas sequências deste filme). A mãe, a baronesa Sophia (Ingrid Thulin, actriz tornada famosa pelos filmes de Bergman), sensual e calculista, é de certa maneira a Lady MacBeth desta epopeia de corrupção e violência e quer que a chefia da fábrica fique a cargo do amante, Friedrich Bruchman (Dirk Bogarde), homem temerário, mas sem escrúpulos, capaz de tudo para alcançar a sua ambição.

Os dois outros pretendentes à coroa de aço são Herbert Thalmann (Umberto Orsini), homem de formação liberal, casado com Elisabeth (belissima Charlotte Rampling), sobrinha-neta do velho Barão e Konstantin (Renè Koldehoff), outro sobrinho, e um truculento oficial das SA sem ponta de carácter. Para além destas personagens centrais temos ainda Guenther (Renaud Verley), o benjamim da família, e o frio Aschenback (Helmut Griem numa prestação memorável), parente distante dos Essenbeck, sem interesse na chefia da fábrica da família mas, dado o seu fanatismo nazi, pessoa manipuladora e maquiavélica, que acredita sem reservas no triunfo e implantação do Nacional-Socialismo, contra tudo e contra todos.


Visconti revela-nos a personalidade de cada uma dessas figuras, colocando-as sob a sua câmara como um patologista examinaria ao microscópio um tecido canceroso. É essa biópsia cinematográfica que nos mostra a malignidade do processo sócio-económico do nazismo, tumor que geraria a terrível metástese destruidora de muitos milhões de pessoas. Nesse seu estudo, as cores são sombrias e duras. O filme contém mesmo uma das sequências mais violentas da obra viscontiana, a madrugada em que os SS surpreendem os SA após uma orgia e os massacram sem piedade para fortalecimento dos sectores mais direitistas do Partido. A tropa de choque que venceu para Hitler a batalha das ruas é assim sacrificada como um peão sem importância, nos jogos de poder que sa­cudiam a Alemanha do pré-guerra. Chamou-se a isso "a noite das facas longas" e não há dúvida que a evocação de Visconti dã uma ideia do que ela deveria ter sido. Mas a espiral de assalto ao poder não se fica por aqui. Continua em crescendo até ao final, até ao suicídio inevitável de Sophia e Friedrich, consumado que foi o controlo absoluto de Martin, o herdeiro final da dinastia. Aquela saudação nazi, diante dos cadáveres da mãe e do amante (usurpador do seu lugar de filho incestuoso), personifica o pacto / ajuste de contas entre a riqueza e a tirania. É uma imagem terrífica, por nos dar a entender que a partir dali tudo será possível, que todo e qualquer crime poderá ser justificado.


É evidente o paralelismo que Visconti estabelece com a verdade histórica, demonstrando, por a + b, em progressão aritmética, como se gera um monstro. Todos sabemos o que aconteceu na Alemanha durante esse annus horribilis de 1933. Constitui-se o III Reich, Adolph Hitler é nomeado chanceler, e Joseph Goebbels ministro da Propaganda. Cria-se a Gestapo (polícia secreta). Dissolvem-se os partidos políticos, menos o Nacional-Socialista, que nas eleições obtém 92% dos votos. É abolida a maior parte da legislação da extinta República de Weimer. A Alemanha abandona a Sociedade das Nações Unidas. Começam as primeiras manifestações anti-semitas e constroem-se os primeiros campos de concentração. Queimam-se livros e obras de tendência democrática. Verifica-se o êxodo de grande número de intelectuais e de homens ligados às artes, nomeadamente ao cinema – Fritz Lang é um deles, depois de ver proibido o seu “Testamento do Dr. Mabuse”.

Directa ou indirectamente, toda esta sucessão de acontecimentos é referenciada neste filme. Mas a cons­trução da obra não denuncia, sequer vagamente, qualquer tipo de simplismo demonstrativo. Visconti é na realidade um fabuloso narrador, um pintor de am­bientes admirável, um soberbo retratista da decadên­cia de uma sociedade. Houve quem apelidasse “La Caduta Degli Dei” uma tragédia de Shakespeare en­cenada como se tratasse de uma ópera de Wagner. Com efeito, o sopro gélido do destino dos Nibelungos é mais do que evidente, e a clareza de análise de um Shakespeare está sempre bem presente. A mistura entre a febre do poder e a corrupção, entre a perversidade e a doença, entre o assasslnio e o estupro, conduzem os Essenbeck a um afundamento gradual quando na aparência a Alemanha ressurgia triunfalista e conquis­tadora. E Visconti consegue transformar esta odisseia da mesquinhez e da traição, numa fa­bulosa lição polltica e num espectáculo sumptuoso, onde a espectacularidade dos meios, em lugar de abafar as intenções, as sublinha discretamente.


ENTREVISTA A LUCHINO VISCONTI
(por Stefano Roncoroni)

- Quais as origens do seu filme?
- A minha ideia era contar a história de uma família no interior da qual acontecem crimes que ficam praticamente impunes. Onde e quando, na história moderna, pode isso acontecer? Sómente durante o nazismo. Havia então massacres, assassínios em massa ou individuais, que ficavam absolutamente impunes. E foi assim que situei a história dessa família, que devia ser a história dos industriais do aço, na Alemanha, durante a ascensão do nazismo.

- A morte do velho Joachim tem o mesmo sentido que a do pai de Sandra, a do pai da familia Valastro ou a da familia Pafundi - quer dizer, de mortes que são antecedentes da acção e nas quais se apoia o drama?
- Sim, é verdade, há sempre um pai morto anteriormente, é você a chamar-me a atenção, não me tinha apercebido. É sempre assim nos meus filmes. O pai morto antes da acção representa até certo ponto o passado, e representa também o ponto de partida da própria história. Mas cada história deve ser interpretada de modo diferente. É preciso considerá-la sob um aspecto humano e social completamente diferente. A morte do pai Pafundi provoca a emigração de toda a família; a do pai Valastro é, como nos Malavoglia, em que o pai morre no mar, um exemplo para os sobrevi­ventes. O tema está igualmente presente em Vaghe stelle dell'orsa, é verdade, mas aí evoca, muito longinquamente, a morte de Agaménon, ou melhor, a vingança dos filhos contra a mãe, depois da morte do pai: é a Oréstia. Aqui, pelo contrário, a morte de Joachim é um facto político, é a eliminação dos homens livres na Alemanha. A propósito, há uma réplica em que Aschenbach diz: «Antes de as chamas do Reichstag se extinguirem, os homens da velha Alemanha serão reduzidos a cinzas, esta noite ainda». Quer dizer: todos os liberais, os que tinham ideias abertas, que ainda estavam ligados à República de Weimar, que não eram nazis. E é a noite do incêndio do Reichstag a marcar a dilta em que o nazismo começa a pousar a sua mão de ferro sobre o país. ( ... )

Parece-me que, de todas as interpretações do fascismo, a mais cor­recta, mais correcta que as de carácter freudiano e psicanalítico, é a que considera o nazismo a última fase do capitalismo no mundo, o último resultado da luta de classes levado à sua última consequência, à sua última solução, a de uma monstruosidade como o nazismo ou o fascismo e que, naturalmente, não pode servir de prelúdio a outra coisa senão a uma evolução no sentido socialista. Penso que as duas interpretações do fas­cismo a que me referi são estas; mas que eu tenha querido abonar uma ou outra, isso nego, pois considerei os acontecimentos como eram, e se em seguida os factos tomaram, por si, um aspecto diferente, se as minhas personagens em certos casos se tornaram símbolos, em vez de serem apenas personagens com os pés na terra, aconteceu quase sem eu querer, quase involuntariamente. (. .. )

- Não deu aval a uma interpretação do fascismo como perversão sexual, historicamente pouco credível ou, pelo menos, tendenciosa e simplificadora?
- O nazismo era negativo em tudo, mas quando se faz um filme sobre o nazismo é preciso pegar num dos lados negativos, não se podem incluí­-los todos, de outro modo, era preciso escrever a história do Terceiro Reich! Quis pegar num pequeno núcleo, então peguei numa família, e nesta família procurei desencadear os instintos mais baixos, menos nobres: é um exemplo. O que não quer dizer que todo o nazismo está ali. O nazismo tem outros aspectos, e eu considerei este lado, desprezando os outros, pois de contrário teria de escrever toda a história do Terceiro Reich, o que não era possível. (. .. )

- O filme começa com as personagens a prepararem-se, cada uma no seu quarto, para o jantar de festa em honra do tio Joachim. Dir-se-ia o princípio dos Buddenbrooks, mas de súbito estala a tra­gédia.
- A sala de jantar como lugar de reunião da família, encontro-confronto dos participantes nesse ritual típico, é algo que aparece em quase todos os meus filmes, no “O Leopardo”, ou em “Rocco e os Seus Irmãos”, por exemplo. E neste lembra os alvéolos de uma colmeia em que cada um trabalha na sua pequena célula para depois se reunirem todos num lugar central onde está a rainha-mãe. É sempre assim que estalam os dramas familiares. Nas grandes famílias chegam quase sempre assim. Efectivamente, não há dúvida que o primeiro jantar é um pouco inspirado no dos Buddenbrooks. Gostaria que a minha representação fosse ainda um pouco mais alemã, mas talvez eu não conheça, infelizmente, bastante bem a Alemanha, embora conheça bem as páginas de Mann. Para melhor compreender certas coisas, deveria ter vivido entre uma família patriarcal alemã.

- No entanto, na primeira versão do argumento não existiam alguns elementos importantíssimos que caracterizam a sua obra, por exemplo, o incesto, que se encontra em “Vaghe Stelle dell'Orsa”. O incesto parece ser o último gesto de dissolução moral, quer para Martin quer para a mãe.
- O incesto aconteceu pouco a pouco, ao longo da escrita do argu­mento, e foi fruto de uma progressão dramático-narrativa nada menos que gratuita, Aqui, é precisamente o último passo de Martin para conquistar o direito a ser um verdadeiro nazi, quer dizer, a não hesitar diante de nada, diante de nenhum crime. O nazismo, que numa primeira fase escolhe para peão no meio familiar um Konstantin violento, ruidoso, brutal, mas no fundo bastante inconsciente do alcance dos factos, vai servir-se, numa segunda fase, de Friedrich, que é acima de tudo um técnico, mas que acaba por ter para os nazis não só o defeito de uma certa cobardia perante o crime - resta-lhe um lampejo de consciência -, mas a pretensão de pensar pela sua própria cabeça. No fim, o nazismo prefere a solução extrema, Martin, um garoto absolutamente inconsciente, um degenerado, uma minhoca, sem qualquer problema de consciência, que não faz qual­ quer distinção entre a prima ou outra garota e se torna um instrumento sem vontade nas mãos dos nazis.

No entanto, Martin é uma personagem complexa, ressente-se de uma profunda deseducação pelo facto de a mãe ter apostado tudo em Friedrich, de no fundo amar e detestar ao mesmo tempo o filho e de o ter transformado num instrumento da sua ambição, embora pretendesse realizá-la através de Friedrich. Por isso, Martin alimenta, desde o início, o desejo de vingança contra a mãe. Assim, o incesto não acontece de um modo forçado, pois é precisamente o último acto de rebelião na crista de uma violência a princípio verbal e finalmente física. Aquela ideia das duas páginas do caderno de Martin, realizei-a precisa­mente para evidenciar esta progressão, para lembrar, ao longo do crescendo e no momento culminante, as suas origens. A ideia ocorreu-me durante a rodagem, quer dizer, quando o filho, moralmente, mata a mãe. Sofia vai esquadrinhar nos livros, nos brinquedos, nas lembranças do filho (naquela cena em que ela toca nos sapatos e nas fotografias de Martin­-menino, vestido de marinheiro), torna-se de novo maternal para com um filho-criança depois de ser possuída por ele.

Há um retorno freudiano, sem dúvida: o filho pequeno, os cabelos louros que ela compara aos seus (acha-os da mesma cor) e os cadernos de Martin que encontra em seguida, com aquele desenho onde a câmara no fim se detém, no qual está escrito «Martin totet Mutti» (Martin mata a mãe) e que representa, traçado por mão infantil, Martin-menino, uma faca na mão e uma mulher a sangrar. Ocorreu-me esta cena durante a rodagem, porque senti necessidade de fechar com uma imagem que lembrasse qualquer coisa que na criança já era, se não um verdadeiro começo, pelo menos um risco, um perigo. Então pedi para me procurarem uma criança que fizesse desenhos, e descobriram-na ali mesmo na Cinecittà, uma garota, e disseram-lhe: «Desenha uma criança que mata uma senhora». Ela desenhou a mãe e o garoto, a faca tive de ser eu a acrescentá-la porque a miúda não quis desenhá-la. É bem curioso. Por baixo do desenho escrevi o que teria escrito o garoto, «Martin totet Mutti» e, por baixo de outro, «Mutti und Martin».

- Que representa para si o celeiro? Ao mesmo tempo lugar de esconderijo e de exploração?
- Em pequeno refugiava-me muitas vezes no celeiro, quando tinha tido qualquer choque com a família ou com o meu pai. Talvez tenha ficado como um traço freudiano. Em Os Malditos”  também há qualquer coisa de “La Volpe Nella Soffitta”, um romance de Hugues onde se conta a história de um jovem nazi escondido no celeiro de um palácio alemão. Não é um verdadeiro nazi, mas um daqueles que no fim da guerra constituíam os famosos corpos francos da Letónia, formados por garotos loucos e sangui­nários, assunto que seria interessante ilustrar num filme. Um deles, a certa altura, pede guarida a um amigo, filho de uma família rica que vive perto de Munique, e este esconde-o no celeiro do palácio. Ali fica escondido por muito tempo com uma raposa de cuja existência os donos da casa estão a par e que de noite circula pelo palácio. Depois há uma história de amor entre o jovem e uma rapariga cega. É um romance extraordinário que começa com o golpe de Munique em 1922-23, na sequência do qual ocorre a fuga de Hitler. Este romance é o primeiro de três volumes, Hugues ainda deve escrever os outros dois. Há sempre influências literárias nos meus filmes. Por exemplo, ao longo de todo o episódio com Martin e Lisa, quando ele seduz a rapariguinha e mais tarde confessa que é o sedutor e a causa do suicídio dela, de facto inspirei-me na confissão de Stravoguine em “Os Possessos”, de Dostoievski.

CURIOSIDADES:

- Grande parte da sequência da “noite das facas longas” nunca foi exibida comercialmente nos Estados Unidos. Apenas em 2004 foi reposta integralmente na edição em DVD. Para além disso, o filme foi classificado como “X”, que é a cotação normalmente usada para filmes pornográficos. Estes americanos…

- “La Caduta Degli Dei” era o filme preferido do realizador alemão Rainer Werner Fassbinder (dizia que o tinha visto 30 vezes ou mais), que o considerava «talvez o maior filme de sempre, aquele que eu considero ter tanta importância para o cinema como Shakespeare teve para o teatro»