quinta-feira, dezembro 31, 2020
quarta-feira, dezembro 30, 2020
terça-feira, dezembro 29, 2020
a procura do risco primitivo -- «A Catedral» (1920) (1)
«Era a hora de Matinas. A sineta do claustro tangia, a convocar os capitulares para o coro, quando Luciano passou da sua alcova à biblioteca, entreabrindo uma pequena porta e afastando uma massa rígida dum brocado que descia do lambrequim em pregas hirtas, adornado de eucarísticos lavores de seda e oiro. Em seguida, acercando-se duma janela cujas portadas tinham ficado despreocupadamente abertas, descerrou, num gesto largo, as vidraças de par em par, e aspirou com delícia a onda do ar fresco, que inundou a casa, impregnado dos vapores que do jardim, em baixo, se evolavam.» O parágrafo inicial do romance de Manuel Ribeiro A Catedral (1920), pp. 4-28 da minha edição: Guimarães & C.ª Editores, Lisboa, s.d.
O tempo. Matinas -- antes do raiar do Sol, hora de oração e leituras de textos bíblicos e hagiográficos. Tempo histórico apenas referido no segundo capítulo.
O espaço. A referência a um claustro, a capitulares e a um coro, indica estarmos numa casa religiosa, obviamente sem surpresa, atendendo ao título do romance. Uma ligação directa da alcova à biblioteca, pode indiciar um aposento privilegiado para quem tenha hábitos, necessidades e práticas do foro intelectual.
Personagem. Luciano, habita no recinto, no qual parece deambular à vontade. Sabemo-lo, quantos lemos o romance, tratar-se de pessoa decidida e com ideias firmes. O «gesto largo» com que abre as janelas e aspira o ar da rua a plenos pulmões são gestos e atitudes que prenunciam a sua assertividade.
Impressões. o som (a sineta que tangia); a visualização do peso do lambrequim; o ar madrugador e refrescante que Luciano aspira a plenos pulmões.
O modo. As referências ao brocardo revela a permanência da estética naturalista, com todas as minúcias descritivas, aliás riquíssimas.
segunda-feira, dezembro 28, 2020
domingo, dezembro 27, 2020
sábado, dezembro 26, 2020
a arte de começar
:ra uma vez antigamente, mas muito antigamente, nas profundas do passado quando os bichos falavam, os cachorros eram amarrados com lingüiça, os alfaites casavam com princesas e as crianças chegavam nos bicos da cegonhas. Hoje meninos e meninas já nascem sabendo tudo, aprendem no ventre materno, onde se fazem psicoanalisar para escolher cada qual o complexo preferido, a angústia, a solidão, a violência. Aconteceu naquele então uma história de amor.»
Jorge Amado, O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá (1976 -- escrito em 1948)
sexta-feira, dezembro 25, 2020
quinta-feira, dezembro 24, 2020
quarta-feira, dezembro 23, 2020
terça-feira, dezembro 22, 2020
segunda-feira, dezembro 21, 2020
domingo, dezembro 20, 2020
JornaL - por favor, não me cansem com conversa fiada
Graça Freitas. Agradeceu à Natureza o ter passado incólume pelo ataque do SARS.Cov2. Por cá ainda não temos a parvoíce de agradecimentos públicos a Deus ou encomenda de orações, como sucede nos Estados Unidos, essa espécie de Arábia Saudita em potência do Ocidente.
Partidos. Cheguei à conclusão que, no actual sistema, os partidos mais necessários à ecologia dos portugueses são o PCP e o CDS. Um dia destes explico. A propósito: a entrevista de João Ferreira à RTP foi bastante boa. Zero de demagogia. Gostei.
Presidenciais. Já tive mais vontade de votar em Marcelo, na verdade o único candidato a sério. No entanto... Decido-me depois dos debates.
Tortura. Ihor Omeniuk foi torturado até à morte num cubículo sem câmaras de vigilância. Enquanto não houver um sistema de interno de captação de imagens, susceptível de ser requisitado para visionamento, excepto nos sanitários, escusam os responsáveis de virem maçar os cidadãos com conversa fiada. Quero começar a ouvir o que os partidos políticos têm a dizer sobre isto. É insuportável
sábado, dezembro 19, 2020
quinta-feira, dezembro 17, 2020
quarta-feira, dezembro 16, 2020
terça-feira, dezembro 15, 2020
polícias
As polícias são um espelho do país, é demagogia barata criticá-las como um coio de malfeitores ou elevá-las à condição de anjos protectores da sociedade, como querem agora fazer com o SEF. Conforme há gente abnegada, até ao heroísmo, como aconteceu com o guarda António Doce, assassinado por um patife que, curiosamente, é um guarda prisional (e com cadastro...), as polícias estão também cheias da pior escumalha. Este caso do SEF, em que um desses miseráveis a gozar-se ainda de prisão preventiva e Natal em família, comentou após o espancamento e tortura do cidadão ucraniano já não precisar de ir ao ginásio naquele dia (o que é de morrer a rir...), fala por si em todo o horror que encerra.
As polícias têm bandidos a mais, mesmo sendo minoritátrios os estragos que provocam são imensos. Além disso, há cidadãos que hoje têm medo dos agentes, talvez porque não saibam se estão a lidar com verdadeiros agentes da lei ou com racistas, xenófobos e demais extrema-direita infiltrada.Portanto: tudo aquilo tem de ser reestruturado, de alto a baixo, E pode ser que eu esteja a ver mal, mas se todo o tipo de celas e esquadras estiverem munidas de sistemas de vigilância, todos estarão mais seguros, ou não?
E ainda, desatenção minha: pensava que esta senhora que agora se demitiu, fosse já uma nova cara do SEF, após o crime no aeroporto. Afinal estava a ver se todsos se esqueciam com a Covid 19...
segunda-feira, dezembro 14, 2020
a arte de começar
«O vento mia e rabeia no telhado, abala a casa, parece que leva tudo pelos ares, engolfa-se a espaços pela chaminé abaixo, espevita o lume onde a chaleira canta, vai fazer oscilar a chama do candeeiro de petróleo e arranca-lhe um vèuzinho de fumo negro. Algures, uma porta mal engonçada bate no trinco, enfurecida, como se quisesse libertar-se e partir com o vento à grande aventura.»
José Rodrigues Miguéis, (1901-1980), A Escola do Paraíso (1960)
domingo, dezembro 13, 2020
sábado, dezembro 12, 2020
a arte de começar
«Pela estrada plana, que, bordejando as baterias do campo entricheirado, liga a fortaleza de S. Julião da Barra à estação de Oeiras, seguiam naquela tarde outonal de Novembro de 35 dois vultos, que, a distância, semelhavam, pela gentileza do garbo e interesse na conversação, par de noivos que, desejando-se solitário, houvesse buscado caminho pouco frequentado para seu passeio e íntimas confissões. Seguiam sem pressa, um pouco vergados pelas próprias figuras, olhando mais o piso da estrada do que os amplos horizontes à sua volta. Grave preocupação os prendia, diferente das que lhes atribuiria quem por noivos enleados erradamente os tomasse. Onde já iam na vida de uma os tempos de noivado, quando viriam na vida do outro que a seu lado caminhava, respeitoso, preso talvez do encanto daquele convívio, mas incapaz sequer de ousar exprimir essa prisão!?»
Joaquim Paço d'Arcos (1908-1979), Ana Paula (1938)
a TAP à mercê de merceeiros e abutres
Os abutres já sabemos quem são: os que na praça pública vêm relativizar a importância da TAP em termos económicos (porque têm outros a quem servir), discussão que não me interessa nada, ou pouquíssimo. Interessa-me, neste capítulos das mercearias, que a gestão seja boa, o que é pedir muito, pois já sabemos dos hábitos de rapina dos tais abutres. Portanto, para as questões de intendência sobre a TAP direi, tão somente, bardamerda.
(Intermezzo: é preciso não esquecer Passos Coelho, que privatizou a TAP à 25.ª hora, sabendo como sabia que o PS iria para o governo e era agora contra a privatização.)
O que não tenho ouvido, e o defeito será meu é da necessidade geopolítica de um país da ultraperiferia europeia -- mas também da centralidade no Atlântico --, com uma diáspora assinalável e relações privilegiadas com as antigas colónias de dispor de uma companhia aérea de dimensão adequada. Coisa que não passa pela cabeça dos merceeiros, a soldo ou não, que peroram
quinta-feira, dezembro 10, 2020
terça-feira, dezembro 08, 2020
a arte de começar
«Ali, o vento emprenhava as éguas.»
Filomena Marona Beja (1944), O Eléctrico 16 (2013)
segunda-feira, dezembro 07, 2020
"vigarista, cobarde e troca-tintas"
Na entrevista a Miguel Sousa Tavares, Marisa Matias, que costuma ser vilipendiada pelo Ventura dos outdoors, "o gajo que diz as verdades", segundo a populaça ignara [populaça em mim tem significado próprio, entenda-se], e que faz a pré-campanha mais cara de todos os candidatos, classificou-o à letra, de alto abaixo, sem pestanejar, e demonstrando que tal é matéria de facto e não de opinião, como se sabe.
Tenho para mim que as palavras são para se usar, e portanto fiquei, digamos, maravilhado com o rigor de Marisa Matias. São palavras que assentam como uma luva a este aldrabão, e gostei especialmente do qualificativo "cobarde", pois que outro nome terá quem se atira às minorias, como os ciganos, aos mais pobres e fracos, como os que são beneficiários do RSI, ainda para mais trabalhando para uma empresa de ginástica fiscal, segundo Marisa Matias identificada nos "Panamá Papers", esse ajuntamento de proxenetas sociais?
domingo, dezembro 06, 2020
a arte de começar
«Entre o azul do céu e o verde do mar o navio ruma o verde-amarelo pátrio. Três horas da tarde. Ar parado. Calor. No tombadilho, entre franceses, ingleses, argentinos e ianques está todo o Brasil. (Evoé, Carnaval!)»
Jorge Amado, (1912-2001), O País do Carnaval (1931)
sábado, dezembro 05, 2020
quinta-feira, dezembro 03, 2020
a arte de começar
«-- Há uma data na varanda desta sala -- disse Germana -- que lembra a época em que a casa se reconstruiu. Um incêndio, por alturas de 1870, reduziu a cinzas toda a estrutura primitiva. Mas a quinta é exactamente a mesma, com a mesma vessada, o mesmo montado, aforados à Coroa há mais de dois séculos e que têm permanecido na sucessão directa da mesma família de lavradores.»
Agustina Bessa Luís (1922-2019), A Sibila (1954)
quarta-feira, dezembro 02, 2020
terça-feira, dezembro 01, 2020
a arte de começar
Quinta-feira, 5 -- Manhã O DECLARANTE E O INSPECTOR Aqui me tem, senhor Inspector. Vivo, inteiro e ansioso por colaborar. Dê-me tempo. Por agora é como se um tufão me tivesse varrido a cabeça. Indício, pormenores, eventuais pistas, não sei onde param. Depreendo tratar-se de uma reacção do cérebro às recordações penosas, já aconteceu coma minha irmã Rute: foi casada doze anos com o Dálio ceramista e não se lembra nem da cara dele.»
Mário Zambujal (1936), Primeiro as Senhoras (2006)
um raciocínio borbulhante
Ler o Eduardo Lourenço, ouvi-lo, era acompanhar aquela máquina pensante bem oleada, um raciocínio borbulhante, como escrevi aqui, que procurava analisar por todos os lados o objecto da sua atenção.. É ainda a escola racionalista do velho António Sérgio, que se bifurca em dois sentidos que iriam postriormente refutá-lo, como os discípulos fazem com os mestres: o marxista, António José Saraiva o mais brilhante desse lado; e um outro, também à esquerda, mais idealista, Eduardo Lourenço, também devedor do espírito crítico e antidogmático de José Régio, só para falar dos portugueses.
segunda-feira, novembro 30, 2020
domingo, novembro 29, 2020
20 romances portugueses do século XX (+6)
Há quem faça renda ou bricolage para se distrair, invente cozinhados ou ande à volta de motores; eu gosto de conviver com os livros que me fizeram feliz ou muito feliz, até.
Andei aqui uns meses às voltas com o Eurico, e foi giro. Apetece-me agora aumentar a empreitada e escolher 20 romances 20 portugueses do século XX e andar aqui às voltas com eles.
Mas como só o XX não me chega, complemento com cinco do XIX e um do XXI -- a deficiência é minha, certamente, mas até agora apenas um me encheu as medidas neste século.
O critério não me dá facilidades: um por cada autor, tendo de deixar de fora vários, e tantos títulos tão bons -- além dos que esperam por uma primeira leitura. Como não me atenho ao romance, passeio-me também por todos os géneros aqui.
A lista:
Século XIX. 1- Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett (1846); 2- A Filha do Arcediago, de Camilo Castelo Branco (1854); 3- A Morgadinha dos Canaviais, de Júlio Dinis (1868); 4- O Primo Basílio, de Eça de Queirós (1878); 5- O Barão de Lavos, de Abel Botelho (1891).
Século XX. 1- Húmus, de Raul Brandão (1917); 2- A Catedral, de Manuel Ribeiro (1920); 3 Andam Faunos pelos Bosques, de Aquilino Ribeiro (1926);4 4- Emigrantes, de Ferreira de Castro (1928); 5- Jogo da Cabra Cega, de José Régio (1934); 6- Ana Paula, de Joaquim Paço d'Arcos (1938); 7- Cerromaior, de Manuel da Fonseca (1943); 8- Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio (1944); 9- Servidão, de Assis Esperança (1946); 10- A Toca do Lobo, de Tomaz de Figueiredo (1947); 11- Cárcere Invisível, de Francisco Costa (1949); 12- Uma Abelha na Chuva, de Carlos de Oliveira (1953); 13-: A Sibila, de Agustina Bessa Luís (1954); 14: Barranco de Cegos, de Alves Redol (1961); 15- A Torre da Barbela, de Ruben A. (1964); 16- O que Diz Molero, de Dinis Machado (1977); 17- Sinais de Fogo, de Jorge de Sena (1979-póstumo); 18: O Rio Triste, de Fernando Namora (1982); 19- Para Sempre, de Vergílio Ferreira (1983); 20- Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago (1995).
Século XXI. 2013: As Primeiras Coisas, de Bruno Vieira Amaral.
sábado, novembro 28, 2020
a arte de começar
«A noite se antecipou. Os homens ainda não a esperavam quando ela desabou sobre a cidade em nuvens carregadas. Ainda não estavam acesas as luzes do cais, no Farol das Estrelas não brilhavam ainda as lâmpadas pobres que iluminavam os copos de cachaça, muitos saveiros ainda cortavam as águas do mar, quando o vento trouxe a noite de nuvens pretas.»
Jorge Amado (1912-2001), Mar Morto (1936)
quinta-feira, novembro 26, 2020
quarta-feira, novembro 25, 2020
a arte de começar
«O edifício, velho e longo, muito longo e de um só piso, parecia querer mostrar que a sua missão, justamente por ser celeste, devia agarrar-se à terra, estender-se bem na terra, para extrair a alma dos homens que nela viviam. No telhado antigo, com o pó dos tempos fixado em crostas esverdeadas que nenhuma chuva conseguia lavar, os pardais faziam o ninho na Primavera. Em baixo, entre as paredes e as covitas que as goteiras, em horas pluviosas, abriam no solo, vicejavam lírios, roseiras trepadoras e tenros pés de salsa que o irmão hortelão não se dispensava de cultivar. Ao fundo, com uma árvore em frente, tão ramalhuda que quase a ocultava, erguia-se a capela, que, ligada embora ao edifício, avançava sobre o jardim, dando ao todo a forma de um grande L.»
Ferreira de Castro, (1898-1974), A Missão (1954)
terça-feira, novembro 24, 2020
segunda-feira, novembro 23, 2020
o verbo manejado
«Bendito Aquele que tem o reino dos céus e da Terra, que comanda a imensidão do Espaço, que conhece o Tempo…» Alcorão, XLIII, 85 (epígrafe em O Meu Coração É Árabe, de Adalberto Alves)
domingo, novembro 22, 2020
a arte de começar
«Bernardo tinha-lhes estragado a noite, que eles planeavam esticar até de madrugada pelas sociedades recreativas e as fogueiras que voltavam a acender-se não em pátios, como os pais contavam que no tempo deles se fazia em Lisboa, mas nos jardins dos amigos. Festejar os santos populares era a última das modas no social da Linha. Sem alcachofras nem descantes, mas com acompanhamento de churrascadas nas barbecues, e de muito gin e whisky.»
Júlia Nery (1939), Valéria, Valéria (1998)