O tema já tem semanas, mas este
post de Jorge Carreira Maia, em que faz muito bem o
distinguo entre nazismo e comunismo, levou-me a alinhavar o que segue, na esteira do que ali ficou escrito.
Uma cabazada de eurodeputados maioritariamente de países do antigo Pacto de Varsóvia, e que hoje tão válidas lições de democracia e direitos humanos nos dão, esmagadoramente pertencentes aos grupos conservadores, com meia dúzia de liberais e quatro socialistas, entre os quais uma luminária do PS, subscreveram uma moção, aprovada por esmagadora maioria, que o nazismo / fascismo e o comunismo eram equiparáveis. (Está
aqui o pastelão, para quem tiver pachorra; eu não tive, fio-me na imprensa.)
Há ali uma compreensível motivação de ajuste de contas com o passado recente e ressentimento por parte dos países que foram ocupados pelos soviéticos, boa parte deles, de resto, aliados da Alemanha nazi, o que não justifica essa ocupação disfarçada, é claro, e muito menos o esmagamento da insurreição húngara de 1956 ou da Primavera de Praga, liderada pelo eslovaco Alexander Dubceck, um dos meus heróis, secretário-geral do PC checoslovaco, e que bem caro pagou a coragem e audácia à mão dos
apparatchiks do Partido.
Então, por que razão comparar nazismo e comunismo é duma estupidez crassa? Não matou o comunismo ainda mais gente que o nazismo? Sim, tal não me oferece dúvidas, atendendo ao tempo que se mantiveram no poder, do sátrapa Stálin (nem falo do megalómano Mao, no psicopata do Pol Pot ou na monarquia comunista norte-coreana, pois são realidades um bocado
chinesas para nós -- não os percebemos...). Não foram (e são) o comunismo soviético um monstruoso embuste, que caiu de podre como a URSS e satélites? Sim, o comunismo soviético foi uma vergonha e um embaraço para qualquer pessoa intelectualmente honesta.
No entanto, ah, no entanto, aqui vai o diabo do pormenor: as palavras têm peso e correspondem a ideias. Na esteira do que bem escreveu
Jorge Carreira Maia, em especial no segundo parágrafo, o factor da irracionalidade do nazismo, faz com que o mal seja assumido sem ambiguidade, na desumanização dos não-(ditos)arianos; enquanto que, o lastro racionalista do marxismo-leninismo, filho do iluminismo, nunca poderá acomodar qualquer espécie de opressão étnica, nem tal pode ser admitido, sob pena de autodesclassificação, mesmo quando episodicamente o tenham feito, no tempo de Stálin, sob pretextos fantasiosos (a chamada "conspiração judaica" e outras paranóias do Zé dos Bigodes).
Que são ambos regimes totalitários, é indesmentível; que um aponta para o Céu e outro para o Inferno (para os sub-homens, não "arianos"), é-o também. Não há que admirar: o marxismo-leninismo, ao tornar os cidadãos funcionários e dependentes do Estado, criou de imediato as condições para que o sistema criasse entropias que estão na base da sua futura desagregação, que só não se deu mais cedo graças à criação dum estado policial e perversamente repressivo -- a negação e repressão da liberdade como instrumento de manutenção do poder. Dessa funcionalização surgiu o que é previsível e surge sempre nestas circunstâncias: os carreiristas, os oportunistas, os desavergonhados e os alienados inofensivos completamente inseridos no sistema, que viviam a sua vida e achavam que era assim e teria de ser assim para todo o sempre. A RDA, no seu desmoronamento de há trinta anos aí está para comprovar isso e o seu contrário: andava o Muro a cair e ainda havia polícias e burocratas a tentar parar o vento com as mãos. No entanto, prometendo sempre o Sol e as bem-aventuranças neste mundo.
(Claro que no comunismo houve e há muita gente de bem; mas a sua adesão a esse ideário é do domínio da fé, não do racional; mas, que diabo!, não há gente a acreditar na existência de "Deus", na imortalidade da alma e coisas assim?...)
Uma subtileza, pois, que não interessa nada, aqui no rectângulo, à direita democrática com reserva mental, saudosa do salazarismo e que à boca pequena execra a abrilada, como carinhosamente chama ao 25 de Abril, nem perdoa a descolonização, além de tudo o que cheira a esquerda (ainda ontem vi um pacóvio a torcer-se todo por causa da libertação do Lula e com vergonha de defender o Bolsonaro, que só sabe contar até 9).
Subtileza que de facto o não é; que entra pelos olhos dentro de qualquer pessoa com informação suficiente e tenha por hábito pensar, a diferença abissal entre comunismo (mesmo que soviético, pois há outros) e nazismo; e que chateia ver o PS embarcar em tão más companhias, por desleixo ou estupidez, não interessa.
Por muito que lhes custe, e, principalmente, por muito que tenha custado ás vítimas, o Gulag não é Auschwitz; há toda uma diferença de escala na maldade e na perversidade, cuja avaliação nunca poderá ser quantitativa. Qualquer pessoa de boa-fé e com dois dedos de testa percebe isso. Quem não percebeu foram as criaturas que votaram a equiparação da pêra rocha com a pirite alentejana. Um mistela intelectual que me lembra uns turistas chineses no restaurante em que costumo almoçar, que misturam azeitonas na mousse de chocolate.