«Sem fé, ouso pensar a vida como uma errância absurda a caminho da morte certa.»
Stig Dagerman, A Nossa Necessidade de Consolo É Impossível de Satisfazer (póstumo, 1955)
Tantas vezes me ocorreu semelhante desesperação. A morte é certa, o nada, também. Mas absurda a vida, mesmo sem deuses?
A inexistência de Deus é para mim uma evidência. Que fazemos parte de algo que não conhecemos e ainda menos dominamos, também não oferece dúvidas. Donde vimos? Não sabemos. E a existência de uma entidade operosa é isso sim, um absurdo primitivo.
(O que distingue os lencinhos brancos acenados a um boneco em Fátima da prostração diante de qualquer manipanso aborígene? Nada. Pelo contrário, assemelham-se pateticamente na expressão da impotência e do pavor da morte).
Para que serve, então, viver. Existimos para a morte? Isso sim, é um absurdo com que nunca me conformei. Dispor da faculdade de existir, ao contrário de biliões potenciais seres humanos que nunca o lograram, já é consolo suficiente., creio eu. A não ser que sejamos um dos desgraçados cuja existência foi um longo e interminável calvário, do berço à cova, um desses "bobos da vida" de que fala Edgar Lee Masters num poema, a quem só a morta igualitária fará com que venha a sentir-se um homem como os demais. Mesmo no infortúnio, e não há maior do que a morte dos que nos são queridos, a vida compensa-nos -- a não ser que os que deveriam morrer depois de nós desapareçam primeiro. E mesmo aí, havendo descendentes, a sua presença nestes se reflecte.
Mas não há errância absurda quando a vida tem um sentido, e esse é o de existirmos para os outros. Tornar a vida dos outros melhor, retirar ao absurdo da existência o quinhão de desesperança que ela comporta, e isso está ao alcance de qualquer um, varredor de rua ou poeta, cirurgião ou empregado de mesa. Claro que esta estética, esta ética do quotidiano não está nas mãos dos bobos da vida, das vítimas constantes de abusos de outro tipo, ou dos que morreram demasiado cedo, por doença implacável, capricho da Natureza ou vítimas da escória humana, como os inocentes chacinados em Bagdade por causa das armas de destruição maciça que todos sabíamos não existirem.
Quanto a esta escória humana, traficantes de toda a espécie, dos passadores de carne humana aos ratos dos mercados financeiros, cujo fim existencial é gerar mais dinheiro sobre dinheiro, marimbando-se para os demais, incluindo os próprios descendentes, a quantos almejam dominar, manipular e servir-se do próximo, aos predadores e necrófagos sociais, não há melhor sentido para a vida do que contribuir para neutralizá-los, nem melhor consolo que travar esse combate, à escala e nas possibilidades de cada um.
A morte já é fatalidade suficientemente dura para que não se lute por uma civilização do Amor, por quimérica que ela nos surja. E essa luta começa dentro de nós, domesticando o animal.