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quinta-feira, novembro 30, 2023

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«E lá fora, indiferente à música fosca que os altifalantes embaciavam, aos lamentos viúvos do boi-cavalo, à jovialidade de pandeiretas cansadas dos excursionistas e ao pasmo da minha admiração comovida, o professor preto continuava a deslizar imóvel no rinque de patinagem debaixo das árvores com a majestade maravilhosa e insólita de um andor às arrecuas.» António Lobo Antunes, Os Cus de Judas (1979) / «Fraco de sangue, embora até ali sobranceiro por causa dos seus interesses nos caminhos-de-ferro,  e na finança, o genro viera morrer-lhe a casa, numa fuga espantada, quando os depositantes fizeram a primeira corrida à caixa do banco de que era director e accionista.» Alves Redol, Barranco de Cegos (1961) / «O tempo estava morno, impregnado dessa quietude de natureza exaurida que se encontra num baque ondulante de folha, ou na água que corre inutilmente pela terra eriçada de canas donde a bandeira do milho foi cortada.» Agustina Bessa Luís, A Sibila (1954) 

terça-feira, novembro 28, 2023

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«Senhoras idosas vestidas de azul, com tabuleiros de bolos na barriga, ofereciam travesseiros mais poeirentos do que as suas bochechas folhadas, perseguidas pelo fastio pegajoso das moscas.» António Lobo Antunes, Os Cus de Judas (1979) / «Um homem pode andar por cá a vida toda e nunca se achar, se nasceu perdido.» José Saramago, Levantado do Chão (1980) / «Uma voz canta ao longe, na dispersão do entardecer.» Vergílio Ferreira, Para Sempre (1983)

domingo, julho 11, 2021

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«Enquanto lavava os dentes, o espelho da casa de banho mostrou-me cruelmente os estragos, de capela abandonada, dos anos.»*

«Numa mercearia ao lado, a gente da geral comia pão com queijo e decilitrava.»**

«Os meus amigos já lá não estavam, as pessoas que eu amara tinham morrido, a idade não me permitia voltar aos lugares queridos -- a escola primária, o parque, o campo de futebol, a varanda da minha casa fustigada pelo sol das três da tarde --  sem sentir que o meu corpo era demasiado grande para o tamanho desses espaços na memória, que eu era demasiado novo para o conforto da nostalgia, demasiado velho para reviver sem culpa certas alegrias da infância.»***


* António Lobo Antunes, Auto dos Danados (1985)

** Abel Botelho, O Barão de Lavos (1891)

*** Bruno Vieira Amaral, As Primeiras Coisas (2013)

domingo, dezembro 08, 2019

um parágrafo de António Lobo Antunes

«Usava um treçolho perpétuo e cheirava não a noite como toda a casa mas já a hora do jantar e a cansaço sob a bata de sarja. Cheirava a depois da sobremesa, quando levantava os pratos, ligava a máquina e desaparecia no seu cubículo, sem se lavar, a espalhar em redor um odor melancólico de cabra. Cheirava ao que cheira hoje em dia, quase dez anos depois, em que me trata por tu, se afoga em colares de pechisbeque, e se instala ao meu lado nos assentos forrados de pele de vitela do carro, segurando a mãos ambas o guiador de verniz da carteira. Mas no tempo de que falo, no tempo deste livro, afastei a compota, recusei a torrada, provei o café a que faltava açúcar. O relógio da cozinha marcava vinte e cinco para as nove. A criada ergueu o braço, para puxar a lata de bolachas de baunilha de uma prateleira alta, e os seus aromas aumentaram: Um biscoito para o caminho, senhor doutor. As árvores da embaixada da Bolívia despiam-se de sombras. Obrigado, disse eu enquanto os cotovelos se retraíam como os leques se fecham, ofendidos: se tiver fome há uma pastelaria mesmo em frente ao consultório, não vale a pena maçar-se.» Auto dos Danados (1985)

quarta-feira, abril 03, 2019

vozes da biblioteca

«Chorava em fonte, e as suas lágrimas punham no fogo rijo das duas horas um doce refrigério de orvalhada.» Aquilino Ribeiro, Andam Faunos pelos Bosques (1926)

«Desde Abril do ano anterior que a tropa e os comunistas se aproximavam das fachadas dos prédios, erguiam o membro como animais para urinar, e abandonavam nas paredes um mijo de vivas e morras que se contradiziam e anulavam, logo coberto por cartazes de comícios e greves, fotografias de generais, propaganda de conjuntos rock, cruzes suásticas, ordens de boicote ao governo e convites de retrete, dedos de letras entrelaçadas num namoro que o Outono do tempo desbotava.» António Lobo Antunes, Auto dos Danados (1985)

«O Diogo combinara tudo com o mestre-negreiro, dera-lhe uma pepita de ouro, a única que possuía, toda a sua fortuna, escreveu-me, não suportava o Brasil sem mim, eu acreditei e senti-me agradecida, era o dinheiro do nosso futuro que ele jogava fora para me ter consigo, foi isso que fez que eu lhe perdoasse a Briolanja.» Miguel Real, Memórias de Branca Dias (2003)

segunda-feira, dezembro 31, 2018

vozes da biblioteca

«Acuso-me também de ter rompido, com muitos outros, os nevoeiros premeditados, os abismos reais e os abismos ilusórios, que são ainda mais perigosos, as cadeias, as ameaças e os sortilégios do cercado em que conviria permanecermos ainda mais uns séculos, para glória e proveitos dos nossos amos, que dispuseram de poderes suficientes para mandarem decapitar todos os seus servos, sem qualquer coima ou embargo, e não o ordenarem pelo simples facto de não poderem passar sem eles.» Alves Redol, Barranco de Cegos (1961)

«Na segunda quarta-feira de Setembro de mil novecentos e setenta e cinco, o despertador pescou-me às oito horas do meu sono, do mesmo modo que as gruas do cais trazem à superfície os automóveis peludos de limos que não sabem nadar.» António Lobo Antunes, Autos dos Danados (1985)

«Num coberto por detrás da casa, frente ao pátio onde tinha crescido uma nogueira gigante, um velho derreado, numa das últimas posturas que antecedem a morte, olhou-me com o sorriso habitual dos subalternos.» Agustina Bessa Luís, Antes do Degelo (2004) 

terça-feira, outubro 02, 2018

«Em dias de amena meteorologia, o Highland Brigade é jardim de crianças e paraíso de velhos, porém não hoje, que está chovendo e não iremos ter outra tarde.» José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984)

«Quanto a nós, visitávamos aos domingos os tios que sobravam do naufrágio da família, presos no Forte de Caxias por sabotagem económica, a verem as marés do Tejo subirem e descerem na muralha entre grades de celas e sovacos de pára-quedistas.» António Lobo Antunes, Auto dos Danados (1985)

«Só vozes ermas dos campos, ouço-as no calor parado da tarde.» Vergílio Ferreira, Para Sempre (1983)

terça-feira, maio 01, 2018

«Não é grande embarcação, desloca catorze mil toneladas, mas aguenta bem o mar, como outra vez se provou nesta travessia, em que, apesar do mau tempo constante, só os aprendizes de viajante oceânico enjoaram, ou os que, mais veteranos, padecem de incurável delicadeza do estômago, e, por ser tão caseiro e confortável nos arranjos interiores, foi-lhe dado, carinhosamente, como ao Highland Monarch, seu irmão gémeo, o íntimo apelativo de vapor de família.» José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984)

«Logo a seguir à revolução, em Abril do ano anterior, civis barbudos e soldados de cabelo comprido e camuflado em tiras vigiavam as estradas, revistavam automóveis, ou desfilavam lá em baixo, em bando, nas pracetas, comandados por um desses microfones incompreensíveis de sorteio de cegos que o marxismo-leninismo-maoismo reciclara.» António Lobo Antunes, Auto dos Danados (1985)

«E os gaiatos aporfiavam em acertar-lhe pelouros de lama, lucrando aplausos e gargalhadas do auditório os mais certeiros. E, assim que a noite se fechava, e a lâmpada do altar vasquejava os lampejos finais, ninguém se afoitava a transitar naquelas ruas de encruzilhada, desde que se divulgou que os demónios, a horas mortas, marinhavam, como bugios, pelo barrote onde a cabeça do regicida apodrecia.» Camilo Castelo Branco, A Filha do Regicida (1875)

segunda-feira, março 19, 2018

«-- Senhor Morgado, pela saúde dos seus e meus tomates não me lixe mais com o caralho das quotas durante um ano e diga à Sociedade de Neurologia e Psiquiatria e amanuenses do cerebelo e afins que metam o meu dinheiro enroladinho e vaselinado no sítio que eles sabem, obrigadíssimos e tenho dito ámen.» António Lobo Antunes, Memória de Elefante (1979)

«Até então, o Atlântico ainda era para os portugueses um elemento masculino, fero e enigmático.» Ferreira de Castro, Eternidade (1933)

«As suas calmas e sonhadoras extravagâncias, o seu ar de senhor de idade, o mistério adulto de que rodeava a sua figura plena e atlética, a sua profunda convicção de que, desde o século XII ou XIII, a Espanha devia à sua família o condado de Barcelona, as perguntas absurdas, feitas com o ar mais convicto e ingénuo do mundo, com que ele era o terror dos professores inseguros, e o seu sistema filosófico que tudo explicava e o dispensava, "graças ao controle das energias do cérebro", de estudar as lições (salvo em casos de última emergência), tudo isto não fazia dele um ídolo nem um chefe, mas um ente respeitadíssimo, apesar da ironia com que todos o apontavam.» Jorge de Sena, Sinais de Fogo (póstumo, 1979)

domingo, março 18, 2018

«Não sei se lhe parece idiota o que vou dizer mas aos domingos de manhã, quando nós lá íamos com o meu pai, os bichos eram mais bichos, a solidão de esparguete da girafa assemelhava-se à de um Gulliver triste, e das lápides do cemitério dos cães subiam de tempos a tempos latidos aflitos de caniche.» António Lobo Antunes, Os Cus de Judas (1979)

«O pinhal, todo de troncos grossos, casca áspera e gretada, adormecia austeramente no silêncio da tarde primaveril.» Ferreira de Castro, Emigrantes (1928)

«Quando largaram a doca -- e o focinho cortante das proas rasgou o pano azul das águas atlânticas rumo a Lisboa -- havia também a mesma chuva ácida do princípio da noite.» João de Melo, Gente Feliz com Lágrimas (1988)

domingo, fevereiro 25, 2018

«Contaram-me que numa tarde de domingo, daquelas em que meu avô, seu criado e maioral das éguas, vinha aviar o alforge para quinze dias de Lezíria, o patrão Diogo nos viu juntos e se dignou, sem nojo, concretizar uma carícia nos cabelos encaracolados da minha cabeça de menino pobre.» Alves Redol, Barranco de Cegos (1961)

«Mas não tardou que argoladas fortes soassem à porta e Jesuíno, em tamancos, as calças presas no abdómen por um negalho, camisa de estopa deixando espreitar pelos bofes a pelúcia de cerdo à mistura com o alcobaça vermelho, cigarro nos beiços, toda a sua pachorra eclesiástica que cão dormido, foi ver.» Aquilino Ribeiro, Andam Faunos pelos Bosques (1926)

«Logo a seguir à revolução, em Abril do ano anterior, civis barbudos e soldados de cabelo comprido e camuflado em tiras vigiavam as estradas, revistavam automóveis, ou desfilavam lá em baixo, em bando, nas pracetas, comandados por um desses microfones incompreensíveis de sorteio de cegos que o marxismo-leninismo-maoismo reciclara.» António Lobo Antunes, Auto dos Danados (1985)

domingo, outubro 22, 2017

1147 -- A Conquista de Lisboa na Rota da Segunda Cruzada, de Miguel Gomes Martins (Esfera dos Livros)
Até que as Pedras se Tornem Mais Leves que a Água, de António Lobo Antunes (Dom Quixote)
DesAparições, de Alexei Bueno (Exclamação)
A Revolução Russa, de Sheila Fitzpatrick (Tinta-da-China)
A Última Viúva de África, de Carlos Vale Ferraz (Porto Editora)







terça-feira, maio 09, 2017

começar

Fica-se mais fatigado a ler o incipit  de Abel Botelho (aliás, um romance importante) do que o de António Lobo Antunes, uns furos abaixo do livro de estreia. António Alçada Baptista com um livro interessante, por uma vez (comparar este início com os anteriores). O vento de Filomena Marona Beja tresanda a Antiguidade.
O título: O Eléctrico 16.

1901: «-- Essa ceia está pronta? -- perguntou enfastiado o Serafim, cuja figura esgalgada e curva, tendo vencido o último degrau da escada, assomava oscilando à porta da cozinha.» Abel Botelho, Amanhã

1979: «O Hospital em que trabalhava era o mesmo a que muitas vezes na infância acompanhara o pai: antigo convento de relógio de junta de freguesia na fachada, pátio de plátanos oxidados, doentes de uniforme vagabundeando ao acaso tontos de calmantes, o sorriso gordo do porteiro a arrebitar os beiços para cima como se fosse voar: de tempos a tempos, metamorfoseado em cobrador, aquele Júpiter de sucessivas faces surgia-lhe à esquina da enfermaria de pasta de plástico no sovaco a estender um papelucho imperativo e suplicante:» António Lobo Antunes, Memória de Elefante

1989: «Quando, há muitos anos, o Sr. Trocato me contou as razões por que não acreditava na história que corria sobre a morte do Dr. Júlio Fernandes da Silva e da mulher, eu não tive dúvida de que aquilo foi um crime porque me lembrei logo da minha tia Suzana.» António Alçada Baptista, Tia Suzana, Meu Amor

2013: «Ali, o vento emprenhava as éguas.» Filomena Marona Beja, O Eléctrico 16

domingo, maio 07, 2017

começar

Da deliciosa simplicidade ingénua de Sarah Beirão, de que a narrativa não se desviará, à fábula onírica de Miguel Barbosa, passando pela literatura marie-claire de António Alçada Baptista. Um despojamento directo e seco num grande romance de António Lobo Antunes e, finalmente, aquele «uma velhice tão antiga» que é elemento perturbador e toque de grande arte do livro de Baptista-Bastos. Dos títulos, balanço entre Cão Velho Entre Flores e Auto dos Danados.

1952 [?]: «Vivia-se com muitas dificuldades naquela pequena aldeia da Beira Alta.» Sarah Beirão, Triunfo

1974: «Quem vem do palácio real e desce a calçada vê à direita um carvalho com as raízes expostas e uma velhice tão antiga que nem a Primavera rejuvenesce.» Baptista-Bastos, Cão Velho Entre Flores

1985: «Na segunda quarta-feira de Setembro de mil novecentos e setenta e cinco comecei a trabalhar às nove e dez.» António Lobo Antunes, Auto dos Danados

1988: «Temos dificuldade em compreender nos outros aquilo que não somos capazes de viver.» António Alçada Baptista, Catarina ou o Sabor da Maçã

2008: «O rio, a árvore e o rouxinol tinham a razão de existir idêntica à do dia arrastado pelas metamorfoses sombrias da noite e pelo vento frio do norte.» Miguel Barbosa, Anatomia de um Sonho

sexta-feira, maio 05, 2017

começar

Em João Pedro de Andrade o interdito vela-se por detrás da frase anódina -- o título da novela, aliás excelente, põe-nos de sobreaviso.  Do livro de estreia, que não o primeiro, de António Lobo Antunes, uma torrente, contrário ao que pareceria desejável. A mestria é, porém, tanta, que é o longo incipit que nos fica à maneira de fim de rebuçado. Augusto Abelaira, em maré de XVIIª (1983), põe-nos a bordo de uma nau quinhentista. Não se trata, contudo, de um romance histórico, antes um afloramento da reconhecível faceta irónica e crítica do autor -- tanto quanto me lembro da leitura, com décadas. O incipit de António Alçada Baptista dá a medida do catolicismo light do romance, aliás intragável. Finalmente, o de Miguel Barbosa reitera um coloquialismo que em tempos deu frutos.

1942: «Desde o inverno que Jaime andava a falar na visita do seu sobrinho Luís.» João Pedro de Andrade, A Hora Secreta

1979: «Do que eu gostava mais no Jardim Zoológico era do rinque de patinagem sob as árvores e do professor preto muito direito a deslizar para trás no cimento em elipses vagarosas sem mover um músculo sequer, rodeado de meninas de saias curtas e botas brancas, que, se falassem, possuíam vozes tão de gaze como as que nos aeroportos anunciam a partida dos aviões, sílabas de algodão que se dissolvem nos ouvidos à maneira de fins de rebuçado na concha da língua.» António Lobo Antunes, Os Cus de Judas

1982: «Embarquei-me enfim com a minha fazenda numa nau que ia com muitos cavalos e pimenta em que era capitão Dias de Almeida, de alcunha o Tigre, filho do conde de Alcântara, o qual carregava a ossada do pai para Goa, donde seguiria para Coimbra, dando cumprimento a uma ordem de El-Rei Dom Manuel.» Augusto Abelaira, O Bosque Harmonioso

1994: «A letra de Deus nem sempre é decifrável e ninguém conhece a língua em que escreveu a alma humana.» António Alçada Baptista, O Riso de Deus

2010: «Eu tinha chupado a vida por uma palhinha e o que restava dela e de mim era um monte de ossos de algum sebo!» Rusty Brown (aliás, Miguel Barbosa), Os Crimes do Buraco da Fechadura

(o título: Os Cus de Judas)

quinta-feira, fevereiro 09, 2017

os 'utentes' da língua e o Aborto Ortográfico

Sobre o aborto ortográfico e as suas consequências, está tudo dito. Meia dúzia de técnicos e burocratas da língua, do lado português, ajudaram a pari-lo, e o governo de Cavaco Silva, com Santana Lopes como secretário de estado da Cultura, deram-lhe o seguimento político.
Página negra na história da língua, como qualquer aborto é um nado morto, porque não há nem haverá nenhuma uniformização do português nos cinco cantos do mundo. Mais ano menos ano, este aviltamento da língua será insustentável, e os governos e as academias vão ter de introduzir alterações consequentes.
No entretanto prevalece o descaso dos decisores políticos e dos apparatchiks, o descaso com que tratam o património cultural português, que é coisa que não vivem nem sentem, a não ser que sintam o cheiro a votos pela manhã.
É uma generalização abusiva, dirão. É uma generalização, porventura injusta, porém nada abusiva, como testemunha o património histórico e cultural deste pobre país. Séculos de analfabetismo (meio milhão em 2017) pagam-se caro.
Repito o já escrito, por mais de uma vez: não há um único grande escritor português que não seja contra o aborto ortográfico. São os escritores os criativos da língua, os que quotidianamente a defrontam e desafiam. Desde que o problema se pôs, nem Saramago, Lobo Antunes, Mário de Carvalho, sancionaram este atentado. Vasco Graça Moura foi exemplar no seu combate cívico. O enorme Vitorino Magalhães Godinho, um dos historiadores de que Portugal se deve orgulhar, teve, contra o aborto ortográfico, o último combate da sua longa vida.
Nada que impressione ou incomode os 'utentes' da língua, como Vital Moreira, que escreve tão bem como qualquer notário, mistura alhos com bugalhos, não percebe que, antes de ser política, a questão da língua é um problema de cultura, em sentido amplo. É claro que para quem 'utiliza' a língua com a mesma displicência com que se serve da carreira 727 da Carris, estes assuntos são uma grande maçada. 

sábado, dezembro 31, 2016

livros que me apetecem

À Beira do Abismo -- A Europa, 1914-1949, Ian Kershaw (Dom Quixote)
A Escada de Istambul, Tiago Salazar (Oficina do Livro)
O Massacre Português de Wiriamu, Mustafah Dhada (Tinta-da-china)
Para Aquela que Está Sentada no Escuro à Minha Espera, António Lobo Antunes (Dom Quixote)
Ritmos e Visões, José Gil (Relógio d'Água)
A Vida e as Receitas Inéditas do Abade de Priscos, Mário Vilhena da Cunha e Fortunato da Câmara (Temas e Debates)







terça-feira, fevereiro 16, 2016

latidos aflitos de caniche

«Não sei se lhe parece idiota o que vou dizer mas aos domingos de manhã, quando nós lá íamos com o meu pai, os bichos eram mais bichos, a solidão de esparguete da girafa assemelhava-se à de um Gulliver triste, e das lápides do cemitério dos cães subiam de tempos a tempos latidos aflitos de caniche.»

António Lobo Antunes, Os Cus de Judas (1979) 

terça-feira, setembro 22, 2015

guinadas de diesel

«Dos edredons dos miúdos vinha de tempos a tempos um reboliço de tosse. O pediatra tratava a pingos e xaropes essas guinadas de diesel, e espanta-me que hoje, em lugar de um par de crianças pálidas e magrinhas, abraçadas a fraldas, mastigando os charutos das chupetas, me apareçam aos domingos, no vestíbulo escuro do prédio de Campolide onde moravam os meus pais e eu moro agora, adolescentes de capacete marciano, com uma esperança de bigode entre o nariz e a boca, enfurecendo as motorizadas para me exigir dinheiro, no clima tenso dos assaltos aos bancos.»

António Lobo Antunes, Auto dos Danados (1984) 

terça-feira, março 31, 2015

Falta-me extremamente a paciência para esta conversa do Agualusa

Num blogue duma amiga brasileira, leio um excerto duma crónica de Agualusa no Globo:
"A verdade é que ainda persiste em Portugal uma certa saudade imperial e, sobretudo, uma enorme ignorância no que diz respeito à história do próprio idioma. É sempre bom recordar que antes de Portugal colonizar a África, os africanos colonizaram a Península Ibérica durante oitocentos anos. A língua portuguesa deve muito ao árabe. A partir do século XVI, com a expansão portuguesa, a língua começa a enriquecer-se, incorporando vocábulos bantos e ameríndios, expressões e provérbios dessas línguas, etc.. A minha língua é esta criação coletiva de brasileiros, angolanos, portugueses, moçambicanos, caboverdianos, santomenses, guineenses e timorenses. A minha língua é uma mulata feliz, fértil, generosa, que namorou com o tupi e com o ioruba, e ainda hoje se entrega alegremente ao quimbundo, ao quicongo ou ao ronga, se deixando engravidar por todos esses idiomas.”
Passando ao largo da banalidade do texto (acredito que um leitor médio do Globo tenha uma noção desse percurso histórico da língua) e da literatice delicodoce ("A minha língua é uma mulata feliz", etc.), não só não me reconheci na prosa como me perguntei se seria o mesmo Agualusa que foi jornalista do Público, viveu muito anos em Portugal (onde creio que mantém residência), faz parte dos círculos literários portugueses, vai regularmente às televisões e às rádios -- ou se seria um outro Agualusa que nunca tivesse passado os limites do Huambo.

Fui ler a crónica aqui. Tem que ver com o Acordo Ortográfico, uma controvérsia que parece cansá-lo. Agualusa pega num exemplo de um desqualificado qualquer que há anos, num colóquio, gritou salazarentamente o impropério: "a língua é nossa", e a partir daqui lança-se ao alegado saudosimo colonial que "ainda persiste em Portugal". Um leitor brasileiro que pouco mais saiba de nós do que as anedotas de português e do bigode, estará autorizado a pensar que esse saudosismo identificado por Agualusa é um, digamos, sentimento que em Portugal tem expressão. Ora isso é tão estúpido como eu dizer que em Angola persiste um sentimento de inferioridade  de país colonizado -- é inconcebível.

Agualusa conhece muito bem Portugal para saber destrinçar a vox pop ignara das pessoas que usam, trabalham e estimam a língua. Sabe que a esmagadora maioria dos escritores e dos intelectuais portugueses é contra o "Aborto Ortográfico" não por saudosismo imperial, mas pelos danos que ele provoca à própria língua. José Saramago e Vitorino Magalhães Godinho eram contra o AO por nostalgia imperial? António Lobo Antunes ou José Pacheco Pereira são contra o AO por isso e também por "enorme ignorância no que diz respeito ao idioma? Os editorialistas do Jornal de Angola, lúcidos opositores do AO, fazem-no por mentalidade de colonizados?... 

Apontemos os defeitos todos, antigos colonizadores, ex-colonizados, mesmo com banalidades e kitsch tropical, mas não seria mau fazê-lo de boa-fé e com honestidade intelectual.