Felizmente, não foi uma coisa para todo o sempre. À distância de trinta e muitos anos, sente que não lhe fez mal nenhum conhecer gente tão diferente. Muito menos ter amigos de todas as cores.
Sentiu na pele, literalmente, desde muito cedo, que era um felizardo. Os suspeitos de qualquer coisa no bairro, tinham sempre a pele mais escura que ele.
Contou-me tudo isso, depois de ler o que escrevi aqui no blogue, sobre racismo. Mas foi ainda mais longe. Falou-me de outro problema, não menos problemático, o machismo reinante, a imensidão de homens bêbados que batiam quase diariamente nas mulheres, apenas porque sim.
Acrescentou que essa foi a principal razão para a sua família sair do bairro. Os pais não suportavam a "normalidade" da violência doméstica naquele lugar. Se havia coisa que o seu pai se orgulhava, era de nunca ter levantado à mão à mãe. E acabou por ter problemas na vizinhança, por ter "metido a colher entre homem e mulher", mais que uma vez...
Chocou-o ver o primeiro-ministro a falar de Portugal, como se fosse um autêntico paraíso, quase sem crimes, quase sem criminosos. E foi ainda mais longe, quando explicou que o número de mulheres que são mortas pelos companheiros ou ex-companheiros, os pretos que são presos e agredidos nas esquadras, culpados apenas de terem a pele mais escura, estão fora destas estatísticas.
Foi por isso que me disse: «Nós, não somos bons. Somos muito bons na arte de "enfiar a cabeça na areia".»
(Fotografia de Luís Eme - Almada)