Continuo a ler as crónicas de "Este Tempo" de Maria Judite de Carvalho (vou lendo uma ou duas crónicas por dia, para perpetuar a prazer da sua leitura...) e achar este livro editado em 1991, quase "profético", mesmo que as crónicas mais recentes da Maria Judite tenham sido escritas há quarenta anos (as mais antigas foram escritas nas páginas do "Diário de Lisboa em 1968 e as mais recentes no "O Jornal" em 1983...).
Às vezes penso que só nos últimos anos é que nos tornámos egoístas e esquecemos com facilidade o "essencial" nas nossas vidas. Mas parece que estou enganado. É essa a sensação que experimento ao ler a crónica "Tranquilidade", que transcrevo na integra, e diz muito do que somos e já éramos:
«Num dos dias de maior calor deste Verão apareceu no patamar, deitado, sequioso e quase morto (pelo menos assim parecia), um cão arruivado. Todos os que subiam ou desciam a escada paravam, olhavam para o bicho com piedade, pobrezinho, como teria vindo ali parar?, houve quem lhe desse um pires de leite, uma pessoa acabou por o levar consigo não sei para onde.
Há dias, antes do Natal, quando a longa seca terminou e se abriram de par em par as comportadas do céu, um homem de água, muito velho e muito trémulo, quase completamente surdo e talvez meio cego, apareceu sentado num degrau daquela mesmo escada. Um inquilino tentou expulsá-lo, aos gritos, mas ele, coitado, não ouvia ou não percebia o que lhe diziam e tinha um meio sorriso parado na cara escura e engelhada. Depois, quando o deixaram só, encostou a cabeça à parede e adormeceu. As pessoas iam subindo e descendo mas ninguém pensou em ajudar o velho. Talvez as pessoas andassem mesmo mais depressa do que era costume, com receio de que ele, de repente, acordasse e pedisse qualquer coisa, ou fugissem de si próprias ao fugir dele, para não se sentirem culpadas, talvez.
Depois, daí por meia hora o velho acordou, levantou-se com dificuldade e foi-se embora apoiando-se às paredes. As arcadas luminosas do Natal iluminavam-lhe talvez o rosto deserto.
Na escada ficou a marca do seu corpo molhado. E a tranquilidade voltou ao prédio.»
(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)