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quinta-feira, 31 de março de 2022

paródia de paródia



Pela quarta vez, um álbum de Lucky Luke. Não por falta de imaginação – espera-se – e muito menos ausência de material sobre que escrever, embora nem todo acessível. Depois de La Mine d'Or de Dick Digger (1949), título inicial em livro de um herói criado três anos antes, publicado entre nós pela Asa; Um Cowboy no Negócio do Algoidão (também na Asa), um muito conseguido trabalho de Achdé e Jul, continuando o percurso de Morris, mas enriquecendo-o, leu-se também por aqui O Homem que Matou Lucky Luke, editado por A Seita, obra-prima de Matthieu Bonhomme, uma releitura da personagem, indo aos seus fundamentos, recreação, como temos dito equiparável à que Émile Bravo faz com Spirou em Joutnal d'un Ingénu e L'Espoir Malgré Tout (quatro tomos na Dupuis, a casa editora que o viu nascer). Tratando-se de uma homenagem, Bonhomme não se limita a seguir os passos de Morris, o que sucede com Achdé, também, crê-se, por disposição contratual.

Hoje trata-se de um outro tipo de homenagem, uma paródia, semelhante às esplêndidas “Aventuras de Philip e Francis” Nicolas Barral e Pierre Veys (edições portuguesas na Gradiva e Arte de Autor), um gozo às excelsas figuras de Blake e Mortimer. Entre Lucky Luke Muda de Sela, de Mawil, e o já anunciado Choco-Boys, de Ralph König, A Seita publicou recentemente Jolly Jumper Já não Responde, de Bouzard (Paris, 1968), autor com larga colaboração em periódicos como Fluide Glacial, Spirou, Libértion ou Le Canard Echainé.

Este paralelo que fizemos com “As Aventuras de Philp e Francis” levanta uma questão: enquanto que Blake e Mortimer é uma série de perfil realista, Lucky Luke é já de si uma paródia ao imaginário do Oeste americano; e a dúvida é esta: pode a paródia de uma paródia funcionar? Sim, pode, não apenas pelo mérito de Bouzard, como o de Morris, cujo universo verosímil, potenciado posteriormente num sentido de maior comicidade por Goscinny, torna-o um dos melhores westerns dos quadradinhos, mesmo na sua vertente humorística. Todas as grandes figuras e toda a paisagem, ou seja a mundividência desse imaginário que se universalizou em grande parte graças ao cinema e o melting pot, têm lugar em Lucky Luke, o que explica também tanto o êxito como a longevidade da série, assim como as metamorfoses por que tem passado.

Em Jolly Jumper Já não Responde, Bouzard oferece-nos um desastrado Luke, a braços com o que parece ser uma depressão do bravo e inteligente cavalo, que não só já não se sente picado para uma partida de xadrez nem responde às deixas dos dono, algo que costumava fazer com uma verve aguda, atravessando apático a narrativa inteira. Pelo meio, múltiplas referências a aventuras passadas, a presença sempre marcante dos Dalton, desta vez com aparição da Mamã Dalton e de um dos vilões mais inesquecíveis destas histórias, Phil Depher, cujo fácies Morris foi buscar a Jack Palance, brincadeira que repetiria em O Caçador de Prémios. Obrigatório para luckylukófilos.


Jolly Jumper Já não Responde

texto e desenhos: Bouzard

edição: A Seita, Prior Velho, 2021

«Leitor de BD»

sábado, 26 de fevereiro de 2022

De A a Z: S,, de Spirou (Rob-Vel, 1938).



Jovem e voluntarioso groom do Moustic Hôtel, Spirou deu nome a uma revista que ainda hoje se publica, e com enorme qualidade. Ao contrário de Tintin, Spirou conheceu uma série de autores, todos de categoria, entre os quais se contam Jijé, Franquin, Tome & Janry ou Émile Bravo. De Spip, o inseparável esquilo de estimação, ao grande amigo Fantásio, jornalista, passando pelo Barão de Champignac ou o Marsupilami, sem esquecer os bandidos como Zantáfio e Zorglub, Spirou rivaliza com Tintin não apenas no carácter como no contributo que deu a uma aura muito própria da 9.ª Arte. 

«Leitor de BD»

terça-feira, 28 de setembro de 2021

Spirou, filho de sua mãe



Nunca pouparemos as loas devidas ao trabalho que Émile Bravo tem vindo a fazer com Spirou desde 2008, em Le Journal d'un Ingénu, e agora os quatro tomos de L'Espoir Malgré Tout, tendo por cenário a Bélgica sob ocupação alemã. Em entrevista a propósito da pré-publicação em curso, o jornalista refere-se à “masculinidade destituída de toda a virilidade” do jovem groom, entrando no campo pantanoso em voga, até porque virilidade e machismo não são propriamente sinónimos. A preocupação de Bravo é a de densificar o carácter ético da personagem, tornando-a num modelo de humanidade para os leitores jovens. Aquela observação fora suscitada pela recusa do autor em pôr armas nas mãos do amigo de Fantásio, e a resposta é deveras interessante: “Spirou, pela sua educação, deveria estar impregnado de ideias-feitas sobre o que é suposto ser homem; mas como por natureza é possuidor de uma grande sensibilidade e uma alma muito feminina, essas ideias encontram oposição, fazendo com que se interrogue. O que faz dele um herói à-parte: ousar o humanismo em tempo de guerra.” Como discordar? Nenhum homem está completo sem essa sensibilidade feminina, que fará de cada um filho de sua mãe. Mas, claro, sem deixar de ser homem. Spirou #4343, Marcinelle, 7 de Julho de 2021.


segunda-feira, 13 de setembro de 2021

da continuidade das séries


 

É escasso o número de séries populares dos quadradinhos que não tenham continuidade após o autor dar por findo o seu trabalho. Nos Estados Unidos é a regra, apesar dos Peanuts e de Calvin and Hobbes. O mesmo, não sendo inteira novidade, está a ocorrer na BD francófona. Tal pode trazer do melhor, seja os Batman de Frank Miller, Alan Moore, Grant Morrison, Jeph Loeb, ou os Spirou, de Jijé e Franquin a Tome & Janry; mas com ela poderá vir o descalabro, como sucedeu com o pobre Homem-Aranha, com tantas identidades e universos ficcionais que só um iniciado sabe quem é quem. O vil metal não respeita nada nem ninguém, muito menos um super-herói. Na tradição europeia, não chega tentar fazer igual. É por isso que o Spirou de Émile Bravo ou o Lucky Luke de Matthieu Bonhomme, escavando e redefinindo, têm pouco que se lhe compare.

Quando, há pouco mais de um ano, escrevemos sobre o tomo I de Black Program, de “As Novas Aventuras de Bruno Brazil”, por Aymond e Bollée, fazíamos votos para que os autores com a árdua tarefa de pegar no trabalho de Greg e William Vance ousassem ir além do epigonismo. Encerrado o segundo e último tomo, essa expectativa não foi completamente satisfeita. O argumento procura explorar os traumas da “Brigada Caimão”, substancialmente chacinada quando os criadores decidiram terminar a série, em Tudo ou Nada para Alak 6 (1977). O relacionamento entre os sobreviventes, alguns com sequelas físicas graves, outros com mazelas psicológicas, revela-se o aspecto mais interessante desta também sequela de BD. O nosso olhar adolescente persiste, e não acolhe como gostaria esta segunda vida de Bruno Brazil; o acumular de leituras e anos de vida tolera mal a ocorrência de visionários enlouquecidos que detêm meios que talvez nem as próprias super-potências militares disponham, numa série apesar de tudo com um de cunho realista, e, além disso, os riscos de Vance são difíceis de substituir.

Uma base secreta algures no Mato Grosso esconde um delirante ex-astronauta de uma missão secreta a Marte, realizada em 1973. O homem, que pisara o planeta vermelho, com o adn carregado de gigas de dados sensíveis, crê-se investido de uma missão superior de salvamento da Humanidade em perigo. Ali comanda centenas de acólitos (pois duma espécie de seita de trata), em que se encontram cientistas e outra gente impecavelmente caucasiana, incluindo um corpo de segurança armada, num esconderijo que alberga novíssima tecnologia, nomeadamente uma nave que lembra um space shuttle, levantando e ocultando-se na brenha amazónica. Enfim, para isso já tínhamos a “fortaleza da solidão”, no Árctico, ou as expedições a civilizações perdidas, para onde Carl Barks costumava mandar os seus patos. Com o Super-Homem ou o Tio Patinhas podemos proceder à suspensão temporária da descrença; assim, não é carne nem peixe. No entanto, com um desenlace em aberto, pode ser que haja oportunidade para corrigir o trajecto, ou não.


Bruno Brazil – Black Program – t.2

texto: Laurent-Frédéric Bollée

desenhos: Philippe Aymond

edição: Gradiva, Lisboa, 2020

«Leitor de BD»

quarta-feira, 3 de março de 2021

um "herói" que voa baixo


 

Nos idos de 1993 aparecia nas bancas, pelo preço módico de 500 escudos (2,5 euros), um álbum brochado com uma capa apelativa, ao estilo da Escola de Bruxelas, a chamada linha clara. Num cenário nocturno, um piloto acobertado pelos arbustos esconde-se de um par de oficiais alemães – estamos na II Guerra, o fardamento não engana e o lettering com uma silhueta de um Spitfire, também não –; ao fundo, uma rampa de lançamento, as célebres V2 (o 'v' é inicial de Vergeltungswaffe – arma de vingança); no canto inferior direito um logótipo de umas desconhecidas Éditions Sorg, embora o texto estivesse em português. Foi folhear e andar com o livro debaixo do braço. Uma boa surpresa, apesar da fraca qualidade da impressão e letragem por vezes catastrófica, além de um, digamos, divertido lapso na página 14, o texto todo em castelhano... Trata-de de uma edição publicada em França, em 1988, com versões noutras línguas.

Estamos em 1943, o vento está a soprar em desfavor dos países do Eixo, e a aquela arma seria o último trunfo de Hitler, que Churchill quer neutralizar. Num aeródromo inglês, aguarda-se a chegada do capitão Harris, da USAF, que virá observar o ataque da RAF às instalações secretas alemãs onde são produzidas as V2, na cidade costeira de Peenemünde, no Báltico. A recebê-lo, dois militares: o general Carrington, em prévio diálogo avisa: “Ponha-se na retranca, tenente Tenton, o capitão Harris tem fama de engatatão. Casou três vezes, não sei se me entende?!”; e a tenente Tenton, das Informações, em resposta fleumática: “”Aviões, cerveja e miúdas, o lema de todos os pilotos de combate, Sir!”

Apesar da acção dinâmica e bem encadeada, o argumento falha rotundamente. Harris, um duro acowboyado, é um poltrão, um violador na forma tentada, o que é mostrado com ligeireza, para não dizer condescendência; depois, verifica-se uma oscilação nunca resolvida entre um registo de erotismo brejeiro, os quadros de batalha aérea e a angústia de quem levanta voo sem saber se estará de regresso, portanto, nem carne nem peixe. Jacques Sorg (1954) é um argumentista modesto, com meia dúzia de álbuns auto-editados.

O desenho é muito outra coisa. Percebe-se a juventude do autor, um traço já pessoal mas ainda inseguro, porém, criatividade na construção das pranchas e personalidade tudo isso tem o jovem E. Bravo, de 24 anos, estreando-se aqui em álbum. Neste ano desgraçado de 2021, é um dos mais notáveis autores de BD franco-belga: Émile Bravo (Paris, 1964), de quem já aqui falámos a propósito da recreação da história de Spirou, a partir de 2011 com Le Journal d'un Ingénu e L´Espoir malgré tout, de que já saíram dois dos quatro álbuns planeados.

Este Fighters foi um belo tirocínio para Bravo, mas porque o “herói” era rasante, a série não teve continuidade.


Fighters – Operação Peenemünde

texto: J. Sorg

desenhos: E. Bravo

edição: Éditions Sorg, Boulogne, 1988

«Leitor de BD»

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Spirou (1 a 5) e o Marsupilami


Spirou – 1.
Guerra Fria: o Conde de Champignac foi raptado pelo KGB. Os soviéticos precisam da colaboração do excêntrico sábio na concepção dum vírus do comunismo, a disseminar pelo mundo inteiro. Uma piscadela de olho a Tintin?... Spirou chez les Sovietes, por Fabrice Tarrin e Fred Neidhart, Dupuis 2020.




Spirou – 2. Intriga internacional no Pacific Palace, hotel onde se refugia um ditador fugido da Europa Oriental, e com ele a jovem filha, a que Spirou também não ficará indiferente. Para tudo se tornar mais estranho nesta espécie de huis clos em extremo tensional, Fantásio é também groom, e como sempre desastrado. Por Christian Durieux, em curso de publicação no magnífico semanário de BD que leva o seu nome.



Spirou – 3. A dupla Vehlmann & Yoann, uma das boas que lhe assina as histórias, prossegue com o inofensivo “Supergroom”.

Spirou – 4. Mas talvez a grande dupla que pegou neste ícone belga tenha sido Tome & Janry, criadores também da série divertidíssima do Pequeno Spirou. Com a morte recente do argumentista, Janry prossegue com os gags.

Spirou 5. Entretanto, Émile Bravo desunha-se com a terceira parte da tetralogia L'Espoir Malgré Tout, que temos vindo a acompanhar. O álbum terá 112 páginas.



...e o Marsupilami. Mas o universo de Spirou é inesgotável. Antes de Champignac e Zorglub terem as sua próprias séries, o estranho animal criado por Franquin em 1952 é assegurado por Batem, entre outros. Mas ainda outra dupla, Zidrou e Frank Pê propõem uma outra leitura, também em curso de publicação autónoma, brinde aos assinantes da revista.

«Leitor de BD», jornal i


quarta-feira, 2 de setembro de 2020

um Lucky Luke redivivo

Publicado em 2016, primeiro na Spirou, revista em que 70 anos antes o cowboy que dispara mais rápido que a própria sombra se estreou, L'Homme qui Tua Lucky Luke, de Matthieu Bonhomme (Paris, 1973), conhece a primeira edição portuguesa neste ano da desgraça de 2020.
Para um ano pesado um título duro: pois Lucky Luke deparou-se com alguém capaz de o (a)bater?...
Podemos abordar este álbum de duas formas interessantes: a primeira, apenas como western, o que será sempre difícil, mesmo não se tratando de um trabalho de Morris (alvo, aliás de uma tocante homenagem no cemitério de Frog Town), ou do sucessor Achdé. E então teremos um western escorreito e com tudo, ou quase: cavaleiro solitário, cidadezeca (Frog Town) perdida no Oeste, nascida em torno do garimpo, forças da lei&ordem ineficazes e/ou ao serviço de gente pouco recomendável, populações ora assustadas ora enfurecidas, índios na retranca, duelos, enfim, todo o pathos do género – só faltando a Cavalaria –, incluindo citações e homenagens ao cinema, como nota em texto final João Miguel Lameiras, um dos editores. Estamos, assim, diante de um western puro, não humorístico – o humor está presente de forma cirúrgica e eficaz –, com um estilo semi-realista muito expressivo, mas em tons macios. Lembra, com as devidas distâncias, os primeiros álbuns de Buddy Longway, de Derib, sem a sujidade característica das pranchas de Giraud ou Hermann; quanto às fisionomias mais grotescas, elas trazem à memória o traço de Will Eisner.
Mas este é um álbum de Lucky Luke, numa incursão até certo ponto comparável à que Émile Bravo está a fazer com Spirou, e que temos vindo a acompanhar. A primeira evidência que apetece salientar neste trabalho de revisitação – tratava-se de um sonho antigo de Matthieu Bonhomme – é que o livro resulta num preito principalmente ao primeiro Lucky Luke, época pré-Goscinny, em que após as histórias iniciais, ainda pueris e muito influenciadas pela animação, Morris, entretanto delineia o perfil da personagem: um “pistoleiro bom”, herói solitário, corajoso e leal, impiedoso se for caso disso, traços que progressivamente se vão desvanecendo com Goscinny, à medida que ganham protagonismo Jolly Jumper, os Dalton e Rantanplan; com Bonhomme, o cavalo de Lucky Luke, volta a ser uma montada, especial é certo, mas sem os atributos delirantes que lhe foram outorgados pelo também criador de Astérix. A circunstância de o já célebre Lucky Luke, acabado de chegar à cidade, ser questionado pelas crianças que o admiram por Phil Deefer ou os Dalton – criados por Morris, a partir de uns Dalton que existiram mesmo e acabaram abatidos, como sucede de resto na primeira encarnação na série, é um indício desse recuo de Bonhomme às raízes do nosso cowboy. Com poucas referências à série canónica – e uma vez que o autor estava proibido de voltar a desenhar Lucky Luke com um cigarro na boca –, Mathieu Bonhomme revela-nos a razão de o nosso herói ter deixado de fumar. É, claramente, uma das edições do ano.

O Homem que Matou Lucky Luke
texto e desenhos: Matthieu Bonhomme
edição: A Seita, Prior Velho, 2020


quinta-feira, 26 de março de 2020

um clássico imediato

Há obras que nascem já clássicas. É o caso desta longa narrativa de Émile Bravo em torno das primícias de Spirou, L’Espoir Malgré Tout, sobre cujo álbum inicial, Un Mauvais Départ, já aqui falámos, em Setembro passado.
A acção continua a decorrer na Bélgica ocupada pela Alemanha nazi, um suplemento de miséria moral a acrescentar ao já difícil estado de guerra, com o seu quotidiano de medo, carência e princípios vacilantes, em parte devido à necessidade de sobrevivência… Os motivos principais de Bravo: as consequências da guerra, a subnutrição infantil; a perseguição ao judeus, desde a obrigatoriedade do uso da estrela de David ao início das deportações em massa para um lugar na Polónia, cujo nome maldito não fora ainda apreendido por ninguém; finalmente, o amor, a ausência dele, a sua quase impossibilidade em tempos de catástrofe e afastamento, numa abordagem sóbria, clara e nada infantil, uma vez que Spirou, como todas as grandes criações de BD, se destina a todos os públicos.
O desenho minucioso, sendo tão assumidamente “linha clara” é também absolutamente original. A cor, a cargo de Fanny Benoit, está sabiamente doseada, tons frios neutralizados pela presença reconfortante de Spirou e Fantásio em digressão de teatrinho de marionetas contando as aventuras de… Spirou e Fantásio – uma reconfiguração histórica das origens da personagem, cuja criação e criador se perdem e confundem já noutro tempo e noutro mundo, anterior à II Guerra…
Um dos grandes méritos desta narrativa é a densidade psicológica dos protagonistas. Fantásio – o Capitão Haddock de Spirou –, nas suas contradições e fraquezas, postos por vezes em situações-limite, mostra alguma evolução, nunca deixando de ser o contraponto humorístico da generosidade, por vezes candura e integridade do jovem groom a sair da adolescência. Bravo consegue o prodígio, na releitura que empreendeu desta série canónica, a proeza, só ao alcance dos grandes autores, de contagiar as versões pretéritas de Spirou, de tal modo que será difícil pegar mesmo nos maiores, como Franquin ou a dupla Tome & Janry, alheando-nos da poderosa caracterização inscrita pelo autor.
Mesmo em curso de publicação, com dois álbuns editados em quatro previstos, apostamos a cabeça de leitor de BD na consagração futura e absoluta de L’Espoir Malgré Tout como uma obra maior da nona arte, enfileirando justamente com os pares que a aguardam no lugar que lhe é devido: de O Lótus Azul a Maus, de Forte Navajo à Balada do Mar Salgado. Pode o leitor português alegrar-se, pois esta excepcionalidade será garantia de que cedo ou tarde ela aí estará para quantos não possam ler no original.

Spirou – L’Espoir Malgré Tout – t. II – Un peau plus loin vers l’horreur
testo e desenho: Émile Bravo
cor: Fanny Benoit
edição: Dupuis, Marcinelle, 2019



quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

leituras de meio ano


Fim de ano, tempo de balanço a propósito dos 40 livros de que falámos aqui, desde Julho. Se sobre a Bdteca não há grande coisa a dizer, a não ser lembrar autores e personagens, de Tintin a Batman, de Will Eisner a Tardi, não nos vamos eximir a assinalar o que mais nos impressionou. Mais e melhor, já que a grande vantagem de não ser crítico é a de escrever sobretudo a propósito do que se gosta. «Leitor de BD», foi a designação que propusemos para estas crónicas de impressões subjectivas, com o lastro de mais de meio século de convívio, desde as tiras do Professor Nimbus no saudoso Diário de Lisboa, e de uns patos que ainda hoje podem ser companhia, depende de quem os trace.
Na BD de expressão portuguesa, elegemos como melhor livro O Coleccionador de Tijolos, de Pedro Burgos (Chili com Carne), esplêndida harmonia entre texto e desenhos, parábola de um país ultrajado entre a mentalidade troikista da pobreza e o recurso impudente ao dinheiro fácil, mesmo que tudo seja para arrasar. O desenho é soberbo em todas as suas dimensões, traço e plano em prancha; a edição cuidada faz jus ao que publica, Salientamos ainda Filhos do Rato, de Luís Zhang e Fábio Veras (Comic Heart e G. Floy Studio), o escaranfuchar nas cicatrizes e nos traumas da Guerra Colonial, escrito e traçado com sangue por quem nem era nascido quando ela terminou, sem dúvida um dos livros do ano; Entre Cegos e Invisíveis, de André Diniz (Polvo), uma esplêndida narrativa de estrada, cheia do insólito que ela pede, num Brasil que teima em desencontrar-se; Conversas com os Putos e com os Professores Deles, de Álvaro (Insónia), ou a saga de ser-se profe de geometria descritiva quando a vida a todos faz tangentes.
Quanto à BD estrangeira,uma escolha cem por cento franco-belga. Spirou – L'Espoir Malgré Tout – 1. Un Mauvais Départ, de Émile Bravo (Dupuis) – ou a audácia de empreender a releitura de uma personagem canónica da BD europeia, num trabalho surpreendente e de largo fôlego, e cuja continuação aqui acompanharemos. Duke – Sou uma Sombra, de Yves H. e Hermann (Arte de Autor), este um dos maiores nomes da BD em todas as latitudes, num formidável western, género sempre em reinvenção; tal como Undertaker – 1. O Devorador de Ouro, de Xavier Dorison, Ralph Meyer e Caroline Delabie, tanto um como outro, personagens em busca de si próprios. A lista termina com o volume I de O Diário de Esther – Histórias dos Meus 10 Anos, de Riad Sattouf (Gradiva), excelente descoberta que é um desafio, o acompanhar de toda a adolescência de uma criança com empatia e humor, além disso trazendo inovações formais, marca de um autor de excepção.
A melhor capa: a majestade do desenho de Roberto Gomes, em Mar de Aral (G-Floy Studio e Comic Heart), com texto de José Carlos Fernandes, trabalho que ganha ainda mais consistência após a leitura desta fantástica narrativa curta.

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Emile Bravo, L'ESPOIR MALGRÉ TOUT - vol. 1: negrume na linha clara

Depois de Tintin, o outro grande ícone belga da BD é Spirou, um adolescente, groom do Moustic Hotel. Criado em 1938 por Rob Vel (1909-1991), para a revista que leva o seu nome e ainda hoje se publica, tem pontos de contacto com a personagem de Hergé: jovens que vão amadurecendo imperceptivelmente, guiados por um sentido de justiça e pelo companheirismo. Há uma mascote, o esquilo Spip; um amigo dilecto, Fantásio, jornalista; um sábio, o conde de Champignac; só não há Dupond & Dupont, mas em contrapartida uma criatura igualmente esquipática: o Marsupilami. Enquanto Tintin, porém, não teve continuidade, por vontade de Hergé, para Spirou trabalharam muitos artistas, sendo o mais notável André Franquin (1924-1997). A série foi, entretanto, confiada a diversos autores; um deles, Émile Bravo (Paris, 1964), tem em curso de publicação uma extensa narrativa de quatro tomos, L’Espoir Malgré Tout / A Esperança Apesar de Tudo, continuando a inicial e brilhante incursão do autor nas aventuras do nosso herói, em Le Journal d’un Ingénu (2008).
O primeiro volume, Un Mauvais Départ, coloca-nos em Bruxelas, em Janeiro de 1940, meses antes da invasão da Bélgica. Spirou, muito novo, mas com uma experiência de vida difícil é uma personalidade forte, com dúvidas, paixões e uma candura própria da idade, contornada pela inteligência. Um dos motores da narrativa é a sua paixão por uma jovem comunista judia-alemã, do Komintern, de quem recebe uma carta inquietante – a História a desenrolar-se ao lado da vida, e a colher as suas vítimas.
Se Spirou representa a ética em tempos bárbaros, Fantásio aparece-nos como um indiferente e apatetado homem da rua, o que significa uma desvalorização da personagem como a conhecíamos. O jornalista originalmente é um obsessivo hiperactivo, o complemento de Spirou, tal como Haddock o é de Tintin; mas como Bravo de alguma forma refunda a série, é possível que Fantásio evolua com as provações da guerra. A trama é, de resto, muito rica e claramente escrita para os confusos dias de hoje.
Bravo tinha duas dificuldades de monta nesta abordagem vincadamente autoral: a primeira é a de se defrontar com um clássico; a outra, a compatibilização do fundo humorístico de Spirou com refugiados de guerra e crianças com fome. O que pareceria uma missão impossível, é plenamente conseguido, à custa, claro, do pobre Fantásio, a que se juntam, hilariantes, separatistas flamengos, vizinhos franceses, escuteiros católicos, colaboracionistas… – estes geralmente representados em tom cinzento, enquanto os nazis estão de negro carregado, em (im)pura linha clara.

L’Espoir Malgré Tout – vol. I
Texto e desenho: Émile Bravo.
Dupuis, Bruxelas, 2018