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terça-feira, 1 de junho de 2021

Armada Invencível

 







É um dos grandes episódios da história da Europa, com repercussões mundiais. A 27 de Maio de 1588 uma formidável frota de cerca de 200 velas e 20 mil homens largou do estuário do Tejo, rumo à Grã-Bretanha. Missão: destronar Isabel I. A bordo da nau-capitânea, o galeão português São Martinho, estava o duque de Medina-Sidónia, nomeado por Felipe II, havia sete anos Felipe I de Portugal.

Joaquim Veríssimo Serrão, um dos mais informados historiadores deste período, dá-nos várias razões para a expedição contra a monarca Tudor, todas de peso, a nosso ver: deposição de uma soberana herege, repondo o catolicismo – Felipe fora rei consorte de Inglaterra, viúvo da Bloody Mary (Maria Tudor, assim alcunhada pelo furor com que perseguiu o anglicanismo), vingando também a católica Maria Stuart, rainha da Escócia, mandada executar por Isabel; punir os ataques corsários de Francis Drake e outros contra as possessões e barcos espanhóis; aproveitando ainda para neutralizar a acção dos rebeldes portugueses em torno de D. António, Prior do Crato, aclamado rei em Santarém (1580). Além disso, a Felipe que era filho de Carlos V – em cujo império o solo nunca se punha – e de Isabel de Portugal, oferecia-se-lhe o ensejo de engrandecer mais a Casa de Habsburgo, com a bem sucedida inclusão do reino português e respectivo império, que ele próprio afirmara ter herdado, pago e conquistado... E, já agora convém acrescentar, também respeitado, pois cumpriu todas as promessas feitas nas Cortes de Tomar, em 1581. Aliás, ele gostava de Portugal, por várias razões, a menor das quais não será o facto de a mãe ser portuguesa, filha de D. Manuel I; e por cá se demorou durante dois anos após a coroação. O brasão da União Ibérica, em que o maior destaque é dado ao escudo, com os sete castelos em ouro e as cinco quinas com as chagas de Cristo, tal como a bandeira portuguesa ainda hoje apresenta, é eloquente.

Mas havia outro motivo que levava Felipe II a querer remover Isabel I: o apoio aos holandeses, em rebelião havia duas décadas – a República das Sete Províncias Unidas dos Países Baixos –, protestantes calvinistas, guerreiros, comerciantes e piratas quando era preciso, apoiados pela Inglaterra. Nacionalismo, religião, riqueza que levaram a 80 anos de guerra contra os espanhóis. E já entrámos na BD de hoje: Cori o Grumete, um extraordinário fresco aos quadradinhos que decorre entre os séculos XVI e XVII, criado em 1951 por Bob de Moor (1925-1993), um mestre da “linha clara” e o principal assistente de Hergé na segunda fase do período do criador de Tintin. Cori é um muito jovem grumete holandês, espião ao serviço de Isabel I, em missão em Espanha, potência ocupante do seu país. Como se desempenhou neste complicado xadrez geo-político, é o que veremos na próxima semana, pretexto para continuar com os clássicos.

Aos 25 anos, Bob de Moor (1925-1992) entra directamente nos Studios Hergé como assistente principal de Hergé, ocupando o lugar de Jacobs, cujos Blake e Mortimer não se compadeciam com meios tempos. O jovem parece assimilar à vez o estilo dos mestres belgas que lhe precederam: João e Estêvão (entre nós, no Cavaleiro Andante) evoca Willy Wandersteen (criador de Bob e Bobette), Barelli (na revista Tintin). Hergé; e em Cori o Grumete vemos muito de Jacobs. Balthasar, uma colecção magnífica de gags protagonizada por um velho bonacheirão, criação fresquíssima chumbada pelos leitores da revista Tintin belga, é um caso à parte: aí Bob de Moor segue apenas o seu espírito jovial – talvez demasiado, em paragens cinzentas.

Cori o Grumete, criado em 1951, é um adolescente (como o eram Tintin e Alix, de Jacques Martin, outro homem da casa). Em A Invencível Armada, Cori e Harn de Vroom são espiões holandeses em Cádis, a soldo de Isabel I, disfarçados de fabricantes de velas. Os Países Baixos eram, como vimos, uma possessão espanhola em rebelião, contando com a Inglaterra como principal aliada. Cori apodera-se dos planos secretos para a invasão espanhola do reino inglês; mas serão de seguida desmascarados. A monte, na companhia de marginais, uma emboscada surpreende-os, separando os amigos. Cori, chega a França, devastada pelas Guerras de Religião (1562-1598), salva François, criança huguenote das garras dos “papistas”, levando-a consigo para Inglaterra. Quanto a Harn, ferido e socorrido por um nobre espanhol, que será o número dois da Armada, seguirá para Lisboa.

Como Hergé, Jacobs e Martin, maníacos da documentação, Bob de Moor, estudou a fundo este complexo episódio naval, militar e político: falta de vento no início, apodrecimento de víveres, tempestade inesperada na embocadura da Corunha, cheia de escolhos. À aproximação a Inglaterra o moral já não era o mesmo. Dá-nos também as características dos dois comandantes: Medina-Sidónia, um indeciso cumprindo burocraticamente todas as indicações dos despachos de Felipe II em vez de aproveitar as oportunidades que pudessem surgir – até porque a “Felicíssima Armada” era superior em poder de fogo; do outro lado, o sanguíneo Drake, “El Draque”, chamavam-lhe os espanhóis, o oposto em génio táctico. O desastre é rematado quando uma embarcação carregada de explosivos deflagra de encontro aos barcos espanhóis.

Este tomo 2, intitulado O Dragão dos Mares (alusão a Francis Drake) é esplendoroso. De Moor compraz-se no desenho de todo o tipo de embarcações; o olhar demora-se em cada vinheta, cada prancha aproveitada ao pormenor, não raro com frisos de margem a margem, ou splashes de página inteira quando não se espera. Um estilo muito próprio de uma época, em “linha clara”, Escola de Bruxelas.


Cori o Grumete – A Armada Invencível -- I. Os Espiões de Rainha II. O Dragão dos Mares

texto e desenhos: Bob de Moor

edição: Meribérica, Lisboa, s.d.

«Leitor de BD»

jornal I