Se Stuart Carvalhais (1887-1961) é o pioneiro dos quadradinhos, Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905) é o precursor. Um exemplo é este relato em imagens sequenciais, No Lazareto de Lisboa (1881), agora reeditado, Mas já na década anterior publicara uma sátira a propósito de viagem de D. Pedro II,: Apontamentos de Rafael Bordalo Pinheiro sobre a Picaresca Viagem do Imperador de Raslib pela Europa (1872). Artista de génio, irmão de um outro (Columbano, 1857-1929), como se luz rasante e sombra carregada, tão diferentes foram. A Rafael se deve a criação do retrato arquetípico e pouco lisonjeiro do português, em 1875: o Zé Povinho, de mãos nos bolsos ou manguito disparado e riso alvar.
Nesse ano, Bordalo parte para o Brasil a tentar a sorte, regressando em 1879, sem dinheiro mas com sacos cheios de experiência e histórias para contar; mas a principal viveu-a em Lisboa. À chegada, com uma pandemia de febre amarela assolar a antiga colónia, o artista é recambiado para o Lazareto, situado em Porto Brandão, cujo edifício se encontra hoje em ruínas: “ao pousar o pé no torrão natal, no momento de estender os braços à imagem querida da pátria, em vez de ser apertado pelos braços amigos, fui apertado pelos guardas de saúde e metido no lazareto”, recordou no prólogo deste curto álbum.
A narrativa tem três partes: “Recordações”, “A partida” e “No Lazareto”. A aventura brasileira gorou-se, mas o registo é empático, por vezes entusiasmado, outras cáustico. Seria interessante saber se Bordalo trocou algum bate-papo com o grande Machado de Assis, cuja mulher era irmã de Faustino Xavier de Novais, poeta satírico e grande amigo de Camilo, também ele imigrado no Rio... A Rua do Ouvidor esplende no torvelinho de comércio e gente, a capoeira mexe e o assalto já então vicejava. O Primo Basílio passeia-se por lá amparado por duas coquettes. Já a Lisboa vista do confinamento surge mazorra como o país, “estirado à sombra da fresca laranjeira”, e Rafael a olhá-lo de mãos nos bolsos, à maneira da imortal criatura que engendrou.
Retratos do povo, da burguesia, das elites e da classe dirigente, cá e lá. Umas identificadas (D. Pedro II, imperador do Brasil, o folhetinista Júlio César Machado), outras por identificar como o inevitável António Maria Fontes Pereira de Melo, cujo nome de baptismo lhe serviu para um dos mais assinaláveis jornais humorísticos da história da imprensa portuguesa, O AntónioMaria (1879-1898).
A edição actual nem sempre apresenta a melhor reprodução de imagem; mas sendo uma raridade bibliográfica, e uma obra gráfica de um dos maiores espíritos críticos do Portugal oitocentista, é sempre melhor tê-la do que não. Para os curiosos, está também acessível no sítio Hemeroteca. Como diria alguém a quem o humor não era estranho, confinamentos há muitos.
NoLazareto de Lisboa
Texto e desenhos: Rafael Bordalo Pinheiro
co-edição Museu Bordalo Pinheiro e Pim! Edições, Lisboa, 2020.