A guerra traz um manancial de histórias em que, do heroísmo individual à miséria humana, em campo de batalha ou num habitat de sobrevivência racionada, o ser humano é posto à prova. Mesmo no inferno há momentos de pequena felicidade ou evasão: Jaime Cortesão, Augusto Casimiro e Sousa Lopes arranjaram tempo e espaço, no meio da carnificina da Flandres, para um repasto de bacalhau, com couves e batatas numa horta improvisada por entre as trincheiras, assim descreve o primeiro nas Memórias da Grande Guerra (1919). O mesmo Cortesão que, «entre duas granadas», tirava do bolso um livro de poemas de Vigny, tal como Stefan, protagonista do Bosque Proibido (1971), de Mircea Eliade, levava os sonetos de Shakespeare para os subterrâneos, quando o blitz tomava conta do céu de Londres, para não se esquecer do obscurecido esplendor da humanidade em cada um de nós.
Pacómio
de Champignac (Pacôme Hégésippe Adélard Stanislas, conde de
Champignac), o excêntrico sábio das aventuras de Spirou e Fantásio
criado por André Franquin e Jijé (o autor de Jerry Sping),
encontrou o amor na guerra. A acção remete-nos para 1940.
Champignac, vila fictícia situada perto da fronteira da França com
a Bélgica, acaba de ser ocupada pelos invasores alemães,
alojando-se o comando na morada o jovem conde. Trazem consigo uma
misteriosa máquina chamada “Enigma”, que, com três módulos de
encriptação diariamente alterados, tornam virtualmente impossível
a decifração pelos ingleses dos códigos secretos. Ao mesmo tempo,
Pacómio recebia um pedido de auxílio do cientista chefe de
Bletchley Park, complexo a norte de Londres onde secretamente os
serviços secretos britânicos reuniram um escol de matemáticos,
linguistas, xadrezistas, campeões de palavras cruzadas e amantes de
puzzles, procurando antecipar-se aos ataques desferidos pelas forças
alemãs, decifrando-lhes os códigos. Aqui conhecerá uma adorável
escocesa, e ambos vão trabalhar com Alan Touring, o génio da
computação, perseguido no pós-guerra pela sua homossexualidade;
irão também em missão com Ian Fleming, episódio em que ficamos a
saber que os gadgets
de James Bond foram na realidade inspirados pela mente engenhocas de
Champignac…, e, naturalmente, serão recebidos pelo próprio
Churchill.
Não
sendo esmagadora, trata-se de um história escorreita e bem pensada
pelo casal BéKa (Bertrand Escaich e Caroline Roque), desenhada e
colorida, com notório entusiasmo por David Etien, cujas pranchas têm
um excelente dinamismo. Destaque também para as piscadelas de olho à
série-mãe: do soporífero cogumelo, com papel acrescido na série
canónica, que o acompanha à Grã-Bretanha, aos provincianos
champignacenses, em especial o risível e pernóstico presidente da
câmara, terminando no Moustic Hotel, em Bruxelas, com uma discreta
aparição do próprio Spirou.
Champignac
– Énigma
texto:
BéKa
desenho:
David Etien
edição:
Dupuis, Marcinelle, 2019