Todas as civilizações têm as suas cosmogonias. No caso do Ocidente, ela é compósita e sincrética: o Génesis bíblico bebe da Mesopotâmia, quando não do Indo; os mitos de origem na Grécia Antiga têm também fonte oriental, embora o seu conhecimento escrito, através da Teogonia de Hesíodo (séc. VIII), seja anterior ao das tabuinhas em argila em escrita cuneiforme, decifrada pelos arqueólogos do século XIX. O Cristianismo, que cobriu a mitologia europeia com os seus anjos, santos e datas festivas foi menos sucedido nessa ocultação com a Grécia, por causa de Roma, sobre a qual assentou o edifício que até hoje perdura. Diga-se, porém, que muitos espíritos cultos da Antiguidade olhavam já com bonomia para estas fantasias de deuses e heróis. A religião, então como agora, era para os simples e para os místicos; mas do ponto de vista da estética e do imaginário, todo aquele panteão olímpico pejado de divindades demasiado humanas nos seus defeitos e qualidades, era maravilhosamente sugestiva para se deitar fora – de Camões a Stan Lee... Assim o entendeu Frei Bartolomeu Ferreira, o esclarecido censor dos Lusíadas, que muito se deve ter divertido ao ver os seus portugueses como povo dilecto de Vénus: “Toda via como isto he Poesia & fingimento, & o Autor como poeta, não pretende mais que ornar o estilo Poetico não tiuemos por inconueniente yr esta fabula dos Deoses na obra, conhecendoa por tal, & ficando sempre salua a verdade de nossa sancta fe”. A cosmogonia grega, pois, como um dos fundamentos da nossa cultura, que deveria ser aprendida desde cedo na escola, uma utopia.
O didactismo em BD tem perigos e as adaptações requerem quem maneje a linguagem dos quadradinhos. O projecto “A Sabedoria dos Mitos” do filósofo e político Luc Ferry (Colombes, 1951), tem como guionista Clotilde Bruneau (Paris, 1987), com uma obra já vasta neste domínio. Da origem de tudo (“No início era o caos”) ao surgimento da Terra (Gaia, gerada se si própria), em cópula permanente com o Céu (Urano); da geração dos Titãs, dos Ciclopes e dos Hecatonquiros, todos aprisionados por Urano no ventre de Gaia por temor daquele, à revolta de Cronos/Saturno, castrando o pai, mas que, pelas mesmas razões devora os filhos que tem de Reia/Cibele. A este destino escapa um, graças a Reia: Zeus/Júpiter. Tornado adulto, Zeus desafia Cronos. Todos sabemos quem foi o vencedor. O como é-nos dado de forma épica.
Uma curiosidade: as primeiras pranchas, do Caos à afirmação de Cronos, estão a cargo de Dim. D (Paris, 1977), ou a BD influenciada por Turner ou Friedrich, grandes pintores pré-românticos; as pranchas seguintes, num registo necessariamente tradicional, são do italiano Federico Santagati, não por acaso um nome da Marvel.
O Nascimento dos Deuses
texto Luc Ferry, Clotilde Bruneau
desenhos: . D, Federico Sanatagati
edição: Gradiva, Lisboa, 2020