Mostrar mensagens com a etiqueta Hal Foster. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Hal Foster. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Will Eisner, um escolhido


Filho de imigrantes judeus, nado e criado no Bronx, Will Eisner (1917-2005) é um dos nomes maiores da 9ª Arte, sendo-lhe atribuído a cunhagem do termo graphic novel (novela ou romance gráfico). Enquanto autor, o longo percurso é marcado pela criação de Sheena, Rainha da Selva (1937), uma versão feminina de Tarzan, e, principalmente, The Spirit, publicado entre 1940 e 1952, um esplêndido policial de que falaremos em breve, que firmou Eisner como um autor de primeiríssima água. Após um período dilatado de afastamento da BD comercial, em 1978 publica um conjunto de quatro narrativas, Um Contrato com Deus e Outras Histórias de um Prédio, o livro que aqui nos traz.

Entre os comics infantis, as sagas de super-heróis exploradas à outrance e uma resposta underground e satirizante, havia na América pouco ou nenhum espaço para uma forma de expressão madura, não obstante nomes como Winsor McCay (Little Nemo), Harold Foster (Príncipe Valente) ou Charles M. Schulz (Peanuts), autores cujo génio fazia com que as respectivas obras atravessassem as fronteiras espessas dos quadradinhos. Eisner tinha consciência da especificidade da arte sequencial, que não se confundia com qualquer outra, começando assim a explorar uma forma de comics literários, até então quase um oxímoro, como salienta num prefácio de 2004. Através dela tudo podia dizer-se, como num filme ou um romance, na sua gramática própria.

Em Um Contrato com Deus (o resto do título perdeu-se na edição portuguesa), o autor oferece-nos evocações infanto-juvenis da vivência num prédio do Bronx, na ressaca da Grande Depressão de 1929. Um prédio, como um paquete de longo-curso ou até uma composição num caminho-de-ferro continental, é um habitat extraordinário para a criação literária, como se sabe, uma mina para quantos observam e trabalham o comportamento humano. E ele aí está, cru e humaníssimo a desfilar diante dos olhos. Na história que dá título ao livro, Frimme Hersch era um rapaz de tal modo altruísta que os aldeões vizinhos julgavam-no um escolhido de Deus. E assim, após mais um pogrom nessa Santa Mãe Rússia que periodicamente se dedicava a massacrar judeus, aqueles quotizam-se e enviam-no para a América. Antes, Frimme fixara na pedra um contrato com a divindade, em que se comprometia a dedicar a vida ao Bem. Um dia, já no Bronx, uma menina recém-nascida é depositada à sua porta, acomodada numa caixa de laranjas. Um sinal, certamente, e Frimme cria-a extremosamente como filha, até que uma doença arrebata-a, na flor da idade. O homem faz então a mesma pergunta que tantos judeus dirigiram ao longo da História à cruel potestade, da expulsão e conversão forçada nos reinos peninsulares, passando pelo suplício do Capitão Dreyfus, ao limiar das câmara de gás: “Se Deus exige que os homens honrem os seus compromissos / não está ele também sob compromisso??” Eisner perdera a única filha, de dezasseis anos; a agonia de Hersch é a sua, com um final perturbador. Mas o encantamento não acaba aqui: na próxima semana haverá mais Eisner.

O melhor realismo, desde Balzac e Dickens, (o primeiro, semideus de Eça de Queirós, o outro, nas palavras do escritor português, deus e semi), foi sempre o que considerou o homem como um amontoado visceral composto por coração, cabeça, estômago e espírito – o espírito que tudo aquilo misteriosamente produz, e que nalguns seres acontece suscitar o que um maravilhoso filósofo um pouco mais antigo qualificou como “necessidade metafísica” – algo que também assiste (ainda mais?…) aos ateus.

Will Eisner, ao assumir-se como repórter gráfico que documenta a angústia da existência e da subsistência, oferece uma obra que cala mais fundo em todos quantos pensam que a arte deve ter coisas a dizer para além de uma auto-referenciação excessiva, narcísica ou comiserada. “Gosto do realismo ou da realidade.” – escreveu Alexandre Pinheiro Torres (1923-1999), romancista e crítico de convicções fortes, por vezes erradas, e que não era para brincadeiras – “Sabe-me a maçã. Como quatro por dia.” Falar do outro é sempre uma forma de empatia; o que não interessa se despreza, ignora-se. Nesse recanto da Grande Maçã que foi e é o Bronx, Eisner conduz-nos pelas aspirações dos seus bonecos tão reais, sempre com empatia.

Três narrativas seguem-se a “Um contrato com Deus”, todas esplêndidas. Em “O cantor de rua”, Eisner mostra como a vida prega partidas a quem fica a vê-la passar. Durante a Grande Depressão, havia homens a cantar árias nos becos dos prédios, esperando que lhes atirassem moedas. Figura perturbadora da infância que sensibilizava o coração romântico das mulheres, enquanto os maridos desconfiavam tratar-se de um qualquer batedor dum bando de larápios, Eddie é um desgraçado marcado pelo álcool e sem emprego,sequer para marido e pai. Um dia, o acaso cruza-o com uma “diva” decadente e retirada, que crê poder regressar à ribalta apadrinhando aquela bela voz. Mas, para Eddie, mesmo com o acaso a ajudar, os bolsos estão sempre rotos. “O zelador”, figura que representava o senhorio perante os locatários, por isso normalmente malquista, é uma história pungente de miséria moral, das coisas mais sórdidas que já nos foi dado ler, dum zelador alemão num prédio habitado por judeus. E é claro que a sordidez não está apenas num dos lados. Finalmente “Cookalein”, uma narrativa autobiográfica ternurenta e melancólica, deliciosa comédia de enganos, fala-nos das férias dos pobres, quando este iam para o campo passar uma semanas em casas particulares – como as dos Waltons (quem se lembra?…) –, cujos quartos eram arrendados por família e a cozinha era de uso comum, onde se faziam conhecimentos, tentava pescar-se noivos ricos e uns quantos adolescentes de sorte viviam a iniciação sexual.

Will Eisner retrata-se com os traços do Spirit – e a idade de ouro dos comics revive nestas páginas.


Um Contrato com Deus

texto e desenhos: Will Eisner

edição: Levoir, Lisboa, 2015

«Leitor de BD»,

aqui e aqui


sexta-feira, 7 de maio de 2021

Popeye, um vencedor do último século


 

Os anos fizeram com que raras personagens centenárias, ou quase, tenham caído nos esquecimento; e talvez apenas uma possa ter um reconhecimento planetário. Vejamos: de finais do Século XIX a até à década de 1920, os dedos de uma mão chegam para contar as séries ainda hoje susceptíveis de interessar a um público mais vasto: Os Sobrinhos do Capitão, de Rudolph Dirks (1897), enquanto houver rapazes endiabrados; Little Nemo in Slumberland, de Winsor McCay (1905) e Krazy Kat, de George Herriman (1909), continuam a alcançar leitores fervorosos, embora com critérios mais apertados. Os anos dez são um deserto, deste ponto de vista; nem mesmo o Panfúcio de Bringing Up Father, de George McManus (1913), teria pernas para andar só por si, a não ser destinado a nichos de coleccionadores. Depois há um gato e um rato, Félix (1919) e Mickey (1928), mas ambos nasceram para as telas, não são criações originais dos quadradinhos; e Tarzan, desenhado em 1929 por Hal Foster, procede, por sua vez, dos romances de aventuras. O que restará então? Dois bonecos desse mesmo ano, que os historiadores consideram como o início da “idade de ouro” da 9.ª Arte: rm escala apesar de tudo mais modesta, de proveniência belga, Tintin, de Hergé; e Popeye, o campeão de facto do século que se completará esta década.

Popeye, que na sua divertida crueza dir-se-ia precursor de um tom underground, é todo ele uma deformidade, do corpo à fala, excepto no carácter. Alma pura e destemida, sempre de cachimbo, os espinafres dão-lhe uma energia que aumentam a já notável força. A primeira aparição ocorre nas tiras de Thimble Theatre, que se publicava havia dez anos, tendo como protagonistas a família de Olive Oyl (Olívia Palito). Em breve, Popeye torna-se a estrela, e com ele Wimpy. um pequeno escroque obcecado por hambúrgueres, Swee' Pea (Ervilha de Cheiro), filho adoptivo, o mais inteligente do elenco, e Bluto, inimigo e rival, disputando as atenções da bela Olívia; acrescente-se ainda Poopdeck Pappy, pouco exemplar nos seus 96 anos; Sea Hag, a Bruxa do Mar, ainda mais pavorosa que a da Branca de Neve, e Eugénio o Jeep, estranho animal vindo dos confins da África Negra.

Em Popeye e o Jipe (1936), Olívia Palito recebe dum tio um caixote com o estranho bicho, muito dócil, com o dispendioso hábito de nutrir-se de orquídeas. A quadridimensionalidade (!) do cérebro permite-lhe actuar sobre o espaço e o tempo: desmaterializa-se e prevê o futuro... A têmpera de Popeye e os atributos de Eugénio (como se captura algo que se volatiliza?), fazem gorar os planos de um ambicioso para comprar e raptar o animal; e como adivinhava o futuro, um trafulha como Wimpy e uma flausina como Olívia vêem-se milionários, apostando em corridas de cavalos e combates de boxe. Quando chega a vez do embate entre o marinheiro e o colosso James J. Jab, o jeep prevê, supostamente, que Popeye o perderá. Ao ver a namorada e o amigo apostarem contra si, o moral do marinheiro desaba. Livro que nos acompanha desde 1978, relido agora, mantém a graça e o viço. Popeye tem carisma, por isso continua por aí, de saúde.


Popeye e o Jipe

texto e desenhos: E. C. Segar

edição: Editorial Presença, Lisboa, 1973 

«Leitor de BD»

segunda-feira, 15 de junho de 2020

o primeiro Lucky Luke

No fim da II Guerra Mundial, o jovem Maurice de Bevère (1923-2001) trabalhava nuns estúdios de animação em Bruxelas, na companhia doutros futuros talentos da BD: Franquin (Spirou e Gaston), Peyo (Schtroumpfs) e Eddy Paape (Luc Orient). A concorrência dos grandes estúdios norte americanos era avassaladora, e a pequena empresa fechou. Os jovens viraram-se para a banda desenhada, actividade supostamente contígua; porém, como viriam a descobrir, a linguagem é outra e de outra natureza é a arte praticada.
Morris – nome artístico de Maurice, homofonia adoptada para sempre – estava longe de imaginar que a personagem que criara, para o Almanaque Spirou, no fim de 1946, figurando numa breve narrativa intitulada Arizona 1880, viria a ser um dos maiores ícones dos quadradinhos mundiais, no que respeita a difusão e popularidade. Chamava-se Lucky Luke, personagem de que nunca mais se desligou, sendo um dos raríssimos casos em autores de BD a trabalhar exclusivamente a mesma figura. Até Hal Foster, que não imaginamos a fazer outra coisa que não o Príncipe Valente, desenhou previamente um Tarzan…
Em 1948, Morris partiu para os Estados Unidos, na companhia de Jijé e Franquin, e por lá ficou seis anos a trabalhar. Em Nova Iorque, três anos depois, irá dar-se um encontro decisivo com René Goscinny, decisivo para ambos, pois será em consequência dele que o futuro criador de Astérix se lançará como argumentista de BD.
O Lucky Luke inicial tem ainda características de boneco para animação: traços muito arredondados, quatro dedos em cada mão, mas também já algumas das características que o distinguirão: tiro certeiro, um punch de aço, espírito abnegado e corajoso.
Este primeiro álbum, publicado em 1949 na sua edição inicial, traz duas histórias: A Mina de Ouro de Dick Digger (1947) e O Sósia de Lucky Luke  (1951). Na primeira, o mapa de uma mina dum velho pesquisador é roubado por dois bandidos, com o jovem cavalheiresco prometendo à mulher de Dick Digger a sua recuperação; na segunda, Mad Jim é um desperado que aterroriza o Arizona; acontece que é também um sósia de Luke, vestindo a mesma indumentária: este é capturado e Mad Jim faz-se passar pelo nosso herói. Jolly Jumpper, porém, que à época ainda não aprendera a jogar xadrez, não se deixou enganar. A narrativa termina com o original a abater a cópia. No tempo de Morris a solo, Lucky Luke matava; Goscinny acabou com isso.
 A partir de Carris na Pradaria (1955), o argumentista vem acrescentar ao carisma inicial uma refinamento no humor e um carácter menos naïf, além do cómico de situação, reinventando uns primos Dalton (os irmãos originais haviam também sido mortos pelo cowboy solitário) e o cão mais estúpido do Oeste, Rantanplan. Depois foram vieram livros como O Juiz O 20º de CavalariaA CaravanaCalamity Jane, Canyon Apache, ou Os Dalton no Psicanalista, entre outras obras, primas atrás de primas.


Lucky Luke – La Mine d'Or de Dick Digger
texto e desenhos: Morris
edição: Dupuis, Marcinelle, 1969.
edição portuguesa: Asa, Porto, 2005.


segunda-feira, 4 de maio de 2020

a poesia dos quadradinhos - #8 José Pascoal

ALPENDRE

Aqui estou,
Aqui sou,
À sombra de sombras,
O carro de bois,
A albarda do burro,
O balouço na trave,
O cepo onde me sentava
A ler aventuras
De príncipes valentes,
Espadachins violentos,
Corsários coloridos,
Vaqueiros solitários,
Detectives privados,
Poetas do sol-posto.

José Pascoal, Branza, Lisboa, Editorial Minerva, 2019.


Príncipe Valente, por Hal Foster

quarta-feira, 18 de março de 2020

Tarzan

Tarzan dos Macacos, romance publicado em 1912 por Edgar Rice Burroughs (1875-1950), escritor de pulp fiction, tornou-se o epítome de uma certa visão do homem ocidental e da efectiva supremacia de então. A história é conhecida: após um naufrágio ao largo da costa ocidental de África, lord e lady Greystoke, aristocratas britânicos, constroem uma cabana, procurando rodear-se dum mínimo de conforto com os salvados do navio. John Clayton, nascido em plena selva, não chegará a ter memória dos pais. Será Kala, uma fêmea gorila quem descobrirá um bebé a quem chamará Tarzan, ‘o de pele branca’, na sua língua simiesca… Dotado de grande inteligência, destreza física, uma força sobre-humana e um grito de guerra que atemoriza os outros animais, chegado à idade adulta, Tarzan virá a tornar-se o ‘rei’ incontestado dos símios e, com magnanimidade, ditará a lei naquele território.
Tarzan combina a fantasia do bom selvagem às avessas com a do fardo do homem branco, polvilhada pelas imaginosas narrativas finisseculares. Nessa medida, não estranha vê-lo em auxílio do rei Dalon, bem amado soberano cujo reino com cenário medievo fora tomado de assalto por dois aventureiros anglófonos, Flint e Gorrey. Se o monarca parece provir do círculo arturiano, também a princesa Nakonia se assemelha a uma estrela de Hollywood. Ingenuidades que atingem um patamar hilariante quando Tarzan se dirige aos seus num inglês impecavelmente traduzido: «Pois bem! – exclama Tarzan – apesar de ser uma loucura, guiar-vos-ei!»... Narrativa de aventuras puras, verifica-se uma quase paragem da História, quando, depois de expulsos pelo nosso herói, os dois rufias, recorrendo ao financiamento de um magnata do crime, Andol Rakka – o nome orientalizante é outro cliché –, invadem de novo o reino com uma poderosa força de guerra, composta por mercenários, blindados e aviões. Será o homem-macaco a liderar os animais da selva para o embate; os súbditos, aparentemente, parecem incapazes de defender-se por si sós...
O que há de particular interesse neste álbum, é a passagem de testemunho de Hal Foster para Burne Hogarth – os dois maiores desenhadores da série –, de um domingo para o outro: 2 e 9 de Maio de 1937. Foster (1892-1982), vindo da publicidade, trabalha na personagem de Burroughs durante oito anos, abandonando-a para criar o Príncipe Valente, uma das melhores bandas desenhadas de sempre; Hogarth (1911-1986) responde a um concurso aberto pela UFS, com uns desenhos à maneira de Foster, sendo contratado.
Se o primeiro é um soberbo fisionomista e, conhecendo Valente, já o estamos a ver nas vinhetas do homem-macaco, Hogarth, embora ainda muito colado ao primeiro, revela um plasticidade superior no movimento e na anatomia, qualidades que levará ao máximo na adaptação da história original, em 1973.
Tarzan na Cidade do Ouro – 3.ª parte
desenhos: Hal Foster e Burne Hogarth
edição: Futura, Lisboa, 1987
capa de Augusto Trigo, a partir de vinheta de Hogarth