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sexta-feira, 8 de julho de 2022

animais como nós


Com
George Herriman, o criador de Kazy Kat (1913), e o trio gata-rato-cão, por entre amores mal resolvidos e “crimes” associados, abriu-se um veio nos quadradinhos que chegou aos nossos dias, o do antropomorfismo, Ao contrário do que se possa pensar, este não é forçosamente orientado para um público eminentemente infantil: Pat Sullivan e o surreal Gato Félix (1919), Walt Disney com Ub Iwerks, Floyd Gottefredson e Carl Barks, entre outros, e as suas inúmeras personagens, do impoluto rato Mickey (1928) ao irascível Pato Donald (1934), passando pelo avarento Tio Patinhas (1947) a puros bandidos como João Bafo de Onça (1926) e os Metralhas (The Beagle Boys,1951), constituem uma pequena parte da panóplia de personagens antropomórficas que cobrem as inconstâncias do comportamento humano. Sem desenvolvermos, é obrigatória a referência ao underground Fritz o Gato (1965), do genial Robert Crumb – a libertação sexual chegada aos comics –, e o notável Maus (1980), de Art Spiegelman, em que o triunfo do mal e o drama pessoal que o Holocausto representou, é-nos contado através de ratos, gatos, cães e porcos. Também na Europa, Raymond Macherot, com Clorofila (1956) e Sybilline (1967), elaborou sobre o bem e o mal servindo-se das aventuras daqueles ratinhos, enquanto o Inspector Canardo (1978), um “Columbo” em corpo de pato etilizado, deslindava crimes viciosos sob nuvens de fumo, prenunciando um menos rugoso Blacksad (2000), dos espanhóis Guarnido e Canales.

Não é bem uma fábula do género rato do campo / rato da cidade, à La Fontaine que Rodolfo Mariano, guitarrista e autor de BD (Coimbra 1981), nos apresenta neste intrigante – a começar pelo título – Bottoms Up, Prémio “Toma lá 500 paus e faz uma BD” de 2019, e seu primeiro livro. Chegado da aldeia, transportado por um atrelado cigano ou circense puxado por uma espécie de muflões de aspecto satânico, o rato Simão apeia-se no limiar da grande cidade. Por bagagem, uma mochila sem fundo acomoda um velho mapa, meias de cada nação entre uma parafernália de objectos úteis e inúteis, e ainda um livro mágico sobre “naves especiais”. Dirigindo-se à cidade, procura a chave que possibilite a libertação de um amigo, prisioneiro do Inquisidor-Mor. Uma mélroa de nome Cassandra ou o fantasma da raposa vegetariana Annalisa, contracenam com Simão, no meio de bandidos, carrascos, guardas, comerciantes e mortos-vivos que povoam uma urbe que poderia vir descrita num livro de Tolkien. Caso invulgar nos quadradinhos nacionais, o estilo de Rodolfo Mariano já foi comparado com o do americano Simon Hansselman; o francês Lewis Trondheim é também um nome que aqui nos parece ecoar. Elogio da amizade e denúncia do poder, anuncia-se uma sequência da narrativa com Cloak and Dagger – ou seja: capa e espada –, que, como Bottoms Up foi primeiro publicada online. Mariano tem uma apetência pelo imaginário fantástico pulp, que utiliza para falar de coisas sérias, e o antroporfismo revela-se uma esplêndida opção.


Bottoms Up

texto e desenhos: Rodolfo Mariano

edição: Chili com Carne, Cascais, 2019.

«Leitor de B D»

sexta-feira, 4 de março de 2022

um pícaro épico



Não tenhamos medo das palavras: O Burlão nas Índias, de Ayrolles e Guarnido, é obra-prima da narrativa sequencial por imagens, vulgo banda desenhada (ou quadradinhos). O ponto de partida é uma novela de Francisco de Quevedo, La Vida del Buscón (1626), escrita no Século de Ouro (entre os reinados de Carlos V e Felipe IV), em que a Espanha é a maior potência universal. É o tempo de Cervantes e do Dom Quixote, que representa o estertor do ideal medieval cavaleiresco, quando o comércio burguês conhece um definitivo impulso (muito bem retratado no livro), e o mundo é uma vasta Barataria sem lugar para cavaleiros-andantes. Reflexo disso mesmo é o surgimento da novela picaresca, com o Lazarilho de Tormes (1554), de autor anónimo, inaugurando um género propriamente castelhano – embora com algumas extensões fora de portas, como entre nós o do grande Aquilino Ribeiro com o seu Malhadinhas (1922) , em que o protagonista é um descarado e triunfador vigarista. Por isso, um pensador notável como Gregorio Marañón podia confessar no fim da vida, num prefácio ao Lazarilho, que embora tocada pelo génio, execrava a novela picaresca pelo que continha de glorificação dos maiores patifes: “«É uma das misérias da arte”, escreveu a propósito. Mas o picaresco ganharia o favor do público e do Tempo, e não é difícil saber porquê: num mundo socialmente estratificado, em que a uns poucos, a nobreza e os príncipes da Igreja, estava reservada a opulência dada pelo comércio e pela rapina nas Índias (as Américas), uma imensa mole humana esgatanhava-se das alfurjas de onde provinham, simplesmente para não morrer de fome – outro aspecto muito bem focado aqui.

O Burlão nas Índias tem um argumento original brilhantíssimo do occitano Alain Ayrolles (Saint-Ceré, 1968) e desenhos de grande mestria do espanhol Juanjo Guarnido (Granada, 1967) – ou não estivéssemos a falar do co-autor da série Blacksad, vindo do campo da animação, dos Estúdios Disney, tendo trabalhado em filmes como “O Corcunda de Notre Dame”, “Hércules” e “Tarzan”. A obra de Quevedo conta a história de Pablos, um jovem natural de Segóvia, filho de um barbeiro e ladrão e de uma curandeira ou bruxa, que se faz escudeiro de um nobre, com vários incidentes de percurso, levando-o a embarcar para as Índias Ocidentais, para refazer a vida. O dramaturgo espanhol anunciou uma sequela que nunca chegou a escrever; fizeram-no Ayrolles e Guarnido, situando a acção em Cuzco, no Peru, depois da conquista de Pizarro, derrotando o Império Inca. O Peru do ouro e da prata e do mirífico Eldorado, que oportunidades para um vigarista! Pablos vai comportar-se como esperamos, mas nem uma linha mais escreveremos a propósito. Apenas que se trata de uma obra superior no que respeita à ideia, aos recursos narrativos, à composição, ao desenho e á cor. O preço não é convidativo, mas as suas 219 páginas valem cada cêntimo.


O Burlão nas Índias

texto: Ayroles

desenhos: Guarnido

edição: Ala dos Livros, Benavente, 2021

«Leitor de BD»

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

leituras de 2021

Leituras” e não livros de 2021, dá título a esta crónica, pois é impossível ter acesso a tudo; além disso, combinar novidades e clássicos foi sempre o nosso propósito.

A grande banda desenhada pode e deve confrontar-se, sem complexos de inferioridade com os parentes mais próximos, a literatura e o cinema, no que ambos carregam de originalidade na abordagem das paixões humanas, como da técnica muito própria da narrativa: o estilo literário, o ritmo e a musicalidade, têm aqui a sua tradução vinheta a vinheta; a montagem cinematográfica encontra o equivalente na chamada découpage ou planificação dr cada prancha, como num storyboard; ou ainda o formato das séries televisivas ou do antigo folhetim que se ia publicando nos jornais, também com um paralelo nas famosas séries em continuação, em que o interesse do leitor deverá ser despertado para prosseguir no dia ou semana seguintes. Os doze títulos que se seguem são todos grande BD.

O Burlão nas Índias, de Ayroles e Guarnido: lemos o peso da desigualdade, a pilhagem e a dominação do outro, tal como sucede em Tex – Patagónia, de Boselli e Frisenda; em A Fera, de Zidrou e Frank Pé, sobressai o tema da compaixão e do preconceito; O Último Homem, por Félix e Gastine, o valor da amizade e da lealdade e ainda as implicações do progresso nas vidas de cada um; o apelo do sangue e a condição da velhice estão presentes em Ghost Kid, de Tiburce Ogier, e Monsieur Vadim, de Ghief, Mertens e Tanco; Gus, de Christophe Blain, e o desvario das relações humanas, a que também assistimos em Tu És a Mulher da Minha Vida, Ela a Mulher dos Meus Sonhos, de Brito e Fazenda; a denúncia da guerra, do racismo e a importância da liberdade de imprensa em Mademoiselle J. – Je ne Me Marierai Jamais, de Sente e Verron, e em L'Envoyé Spécial, com os novos autores dos Túnicas Azuis, BéKa e Munuera – a segregação também presente num notável Lucky Luke – Um Cowboy no Negócio do Algodão, de Jul e Achdé, também pelo humor; a precária condição humana agigantada em face dos elementos sobressai em Judea, de Diniz Conefrey sobre texto de Joseph Conrad.

Entre tantos outros que já não cabem aqui, fautores de comédias de enganos, e assombros vários diante da violência da História, os desenhos, do realista ao abstracto, do grotesco ao disneyesco, a prancha audaz, toda a gama de planos, cores aplicadas directamente com pincel ou espalhadas por computador – aqui fica um balanço, num anos de leituras de argumentistas como A.-P. Duchâteau, Alejandro Jodorowsky, Ed Brubaker, Henri Vernes, Jean-Michel Charlier, Lewis Trondheim; e desenhos de Émile Bravo, François Boucq, Mittëi, Moebius, Victor Hubinon; e autores completos como Bob de Moor, Dav Pilkey, E. C. Segar, Greg, Will Eisner. Foi um ano bom.


1. O Burlão nas Índias, Alain Ayrolles e Juanjo Guarnido (Ala dos Livros).

2. A Fera, Zidrou e Frank Pé, (A Seita)

3. O Último Homem, Jerôme Félix e Paul Gastine (Gradiva)

4. Gus – Nathalie, Christophe Blain (Gradiva)

5. Ghost Kid, Tiburce Ogier (Grand Angle)

6.Mademoiselle J. - Je ne Me Marierai Jamais, Yves Sente & Laurent Verron (Dupuis)

7. Monsieur Vadim #1 – Arthrose, Crime & Crustacés, Gihef, Didier Mertens e Morgann Tanco (Grand Angle)

8 . Les Tuniques Bleues – Envoyé Special, BéKa e Munuera (Dupuis)

9. Lucky Luke, Um Cowboy no Negócio do Algodão, Jul e Achdé (Asa)

10. Tu és a Mulher da Minha Vida, Ela a Mulher dos Meus Sonhos, Pedro Brito & João Fazenda, 2.ª ed. (A Seita e Comic Heart)

11. Tex – Patagónia, Mauro Boselli & Pasquale Frisenda, 2.ª ed. (Polvo)

12. Judea, Diniz Conefrey (Pianola Editores).

«Leitor de BD»

domingo, 5 de setembro de 2021

a partir de Quevedo


O Burlão nas Índias pretende prosseguir as aventuras de Don Pablos, o protagonista do romance picaresco de Quevedo, Historia de la vida del Buscón, llamado Don Pablos, ejemplo de vagamundos y espejo de tacaño, publicado em 1626, em Saragoça. O argumentista Alain Ayrolles juntou-se ao desenhador Juanjo Guarnido (Blacksad), cujo apelativo traço disneyesco veio a calhar para mostrar um simpático patife em périplo pelas Índias Ocidentais. Edição Ala dos Livros, Benavente, 2021.

«Leitor de BD»

sexta-feira, 26 de junho de 2020

do melhor

Mesmo sem ainda termos lido senão algumas pranchas. E porquê? À partida, porque o argumentista é Xavier Dorison, de quem já aqui falámos a propósito de Undertaker; depois porque os desenhos de Félix Delepe, um jovem autor de 27 anos são de tal forma soberbos na antropomorfização animal – ao nível de Sokal (Canardo) e Guarnido (Blacksad), que nos deixam ávidos por próxima leitura. Um castelo é abandonado pelos senhores, e os animais dele tomam posse. Sílvio o touro impõe-se e governa pela força. Que aproximações e distâncias a Animal Farm, de George Orwell?... O Castelo dos Animais, tomo 1, edição Arte de Autor, 2020.