“Favela”:
sabemos o que é, mas não a origem da palavra... O Morro da
Providência, também conhecido por Morro da Favela é a mais antiga
aglomeração do género no Rio de Janeiro, iniciado por veteranos da
Guerra de Canudos, a quem foram prometidas casas quando regressassem
das operações. Fartos de esperar, ocuparam uma elevação no local
da Providência, lembrando o morro da Bahia – onde vicejava a
favela, tipo de arbusto endémico –, de onde faziam pontaria aos
homens de Antônio Conselheiro, “profeta” milenarista que
sublevou os miseráveis da região, dando origem às campanhas de
Canudos, descrita numa obra-prima da nossa língua, Os Sertões
(1902), de Euclides da Cunha, e também motivo do extraordinário
romance de Mario Vargas Llosa, A Guerra do Fim do Mundo
(1981).
Morro da Favela,
de André Diniz, agora em segunda edição portuguesa, aumentada, é
a quadrinização (palavra horrível) do relato autobiográfico do
fotógrafo Maurício Hora (1968), nado e criado no morro, filho de um
bicheiro tornado um dos primeiros traficantes de maconha do local,
que, após duas prisões, decide poupar-se e à família, passando a
trabalhar na estiva. De acordo com os critérios de hoje, Maurício
cresceu numa família disfuncional. Pai pouco dado a rotinas, mas
sempre presente quando não estava preso, mãe com episódios
esquizóides, irmãos, além dos avós, referências de estabilidade.
O que Maurício Hora transmite através dos quadrinhos de André
Diniz, traduz-se, por paradoxal que pareça, numa certa felicidade,
uma nostalgia por esse país da infância,
em que o amor existia, apesar dos crimes, do medo, em particular da
polícia, boa parte comportando-se como bandidos com farda e melhor
armados. Acima de tudo, Maurício veicula uma grande empatia, sempre
vizinha do amor, que preenche também o coração de Maurício –
demonstra-o o fotógrafo e o activista sócio-cultural. Na Favela há
gente como todas as outras, gente boa e de trabalho, quantas vezes
alvo da violência do Estado, ou capturadas pelo tráfico, que ali
dita a lei; e há sobretudo uma invisibilidade para quem vive no
asfalto, junto à linha de costa, circunstância que o fotógrafo tem
vindo a contrariar, como artista e dinamizador social, procurando dar
voz a quem a não tem.
Se a matéria de
que se faz esta narrativa – o depoimento de Maurício Hora – é
só por si de primeira grandeza, que dizer do trabalho de André
Diniz? Em primeiro lugar a estrutura narrativa disposta como uma
espécie de romance de formação. Do ponto de vista gráfico, a
opção pelo fundo negro realça as linhas dos desenhos, os espaços
em branco, as notáveis expressões das figuras, integralmente num
preto e branco que nos faz colar os olhos às páginas, um percurso
que termina com uma única vinheta colorida, o sorriso de Dona
Iracema e o lado bom e fraterno da entreajuda em comunidade.
André Diniz e
Maurício Hora pertencem àquela família de artistas cuja estética
é servida por uma ética. O mundo é demasiado interessante na sua
complexidade para confinar-se aos arredores do umbigo.
Morro
da Favela
texto e desenhos:
André Diniz
fotografias:
Maurício Hora e
Augusto Malta /
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro
2.ª edição,
Polvo, Lisboa, 2020