Na
vinheta inicial, sob um sol de canícula, um abutre de longas asas
estendidas voa com a cabeça inclinada para o solo; a seguir, em
grande plano, vemo-lo a fixar o olhar em algo; depois, a carcaça de
um cavalo sendo devorada por um bando de aves; no quarto
quadradinho, com o mosquedo a voltear, a carniça é arrancada pelos
fortes bicos concebidos para retalhar. A partir da segunda vinheta,
filacteras sem o apêndice característico transmitem-nos as
reflexões de alguém: «As pessoas não gostam de nós. / Há quem
diga que é porque passamos o nosso tempo no meio de cadáveres. /
Transmitimos a morte como outros transmitem bexigas. / Também consta
que cheiramos mal e que podemos dar azar. / Vá-se lá saber onde
foram buscar isso! / A verdade é que as pessoas não gostam de nós.
/ E ainda bem.» Quinta e última vinheta da primeira prancha: um
homem ainda novo, de barba cerrada, vestido de escuro, sentado de
caneca na mão e cigarrilha na boca, encostado à carreta que lhe
pertence, completa agora o seu pensamento: «Também não gosto
delas.» É Jonas Crow – um gato-pingado, um cangalheiro – o
herói desta série. Acompanham-no
“Jed”, um abutre de asa embriada que Jonas não teve coragem de
matar, e os dois cavalos da carroça funerária: “Zephyr” e
“Cobalt”.
Pela
amostra deste primeiro álbum, publicado originalmente pela Dargaud
Benelux, em 2015, a saga de Jonas Crow tem tudo, autores e assunto,
para vingar. O texto é de Xavier Dorison e o desenho de Ralph Meyer,
ambos parisienses de 1971. O primeiro é argumentista exímio (O
Terceiro Testamento, sequelas de
XIII e Thorgal);
Meyer, tem um lápis ágil e espectacular, além de abundantes
recursos expressivos. Diga-se, a propósito, que a semelhança
fisionómica com Mike T. Blueberry é, mais do que intencional; é um
elo que os autores criam – por razões que nesta fase não são
claras – à melhor BD western.
A cada um a possibilidade de especular...
Crow
é uma personagem, é a personagem:
solitário, misterioso (transporta uma história
consigo), de mão leve com a artilharia e raiva interior que o tornam
temível, além de um coração de manteiga, capaz dos gestos mais
altruístas – e também divertidos, como aquela citação da
“Epístola de São Paulo aos Californianos”… Se o Duke,
de Hermann e Yves H., de quem já aqui falámos, é um pistoleiro que
não gosta de armas, Jonas Crow é uma máquina de matar que odeia
violência... Aliás, o que não falta é um conjunto de
personagens fortes, que tornam este western
intenso e áspero, embora a violência não seja gratuita, antes uma
exigência da própria trama, dotada destas personagens específicas:
um antigo garimpeiro às portas da morte, dono duma
cidade, ganancioso e cruel, uma jovem governanta inglesa hierática e
sensual, um criado de casa ressentido, uma velha chinesa perspicaz,
um xerife venal, e por aí fora, em intriga estonteante.
Undertaker
– 1. O Devorador de Ouro
argumento:
Xavier Dorison
desenhos:
Ralph Meyer
cor:
R. Meyer e Caroline Delabie
edição:
Ala dos Livros, Benavente, 2019