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segunda-feira, 18 de abril de 2022

Dylan Dog: primeiro estranha-se...




Dylan Dog, o “detective do pesadelo” criado por Tiziano Sclavi, estreou-se em 1986 com desenhos de Angelo Stano. As particularidades da personagem e as intersecções do policial com o fantástico resultaram num êxito popular, sendo o fumetto (história aos quadradinhos) mais vendido em Itália depois de Tex, adaptado já ao cinema nos Estados Unidos, onde é publicado pela Dark Horse, e traduzido em inúmeros países entre os quais, desde há pouco, Portugal.

Os fumetti nunca lograram entre nós uma popularidade comparável à BD franco-belga, exceptuando os autores que nos chegavam por essa via: Hugo Pratt, Milo Manara, Vittorio Giardino, ou através do circuito alternativo, como Guido Crepax, com excepção feita aos autores Disney – Romano Scarpa e todos os outros – que nos chegavam embrulhados na panóplia multinacional da companhia. Mesmo um grande mestre como Franco Caprioli (1912-1974) teve uma presença modesta por cá. Uma das explicações pode ser a de o público português, pelo menos o que anda pelos 50-60 anos, habituado desde muito cedo a edições a cores – ainda há semanas vimos como as aventuras de Tintin eram coloridas na revista O Papagaio, enquanto que no país de origem saíam a preto e branco –, fosse pouco atreito ao preto e branco. Quem se lembra da “revolta” dos leitores da revista Tintin, quando Vasco Granja passou a publicar o Corto Maltese conforme o original?... Nos dias de hoje, porém, com a grande diversidade de oferta, a conversa será outra.

Dylan Dog (DD), antigo agente da Scotland Yard, dando ares ao actor Rupert Everett, é uma personagem desempoeirada, com algumas excentricidades: tal como Sherlock Holmes toca violino, à espera do seu eureka, também DD se deixa ir enquanto sopra um clarinete. Tem aversão à bebida e ao tabaco, em contrapartida é um sedutor, com uma nova conquista a cada aventura. Na sua caça a zombies e outras criaturas conta com o auxílio de Groucho, também mordomo e parceiro multifunções, sósia de Groucho Marx, piadista contumaz até ao insuportável, e do inspector Bloch, o antigo chefe de DD na polícia.

O Número 200, com texto da milanesa Paola Barbato (1971) e desenhos do já nosso conhecido Bruno Brindisi, no extraordinário Até que a Morte Vos Separe, vai às origens da personagem, ainda na polícia, e ao primeiro caso como detective particular, à relação com Bloch e ao surgimento de Groucho. E ficamos a saber os motivos da aversão a álcoois e fumos, assim como as prováveis causas da pulsão de conquistador instável, entre outras curiosidades, como o surgimento do modelo do galeão que nunca é terminado. Para quem ainda não conhece DD sugerimos sem reservas o já referido Até que a Morte Vos Separe e Trevas Profundas, enquanto esperamos pelo crossover DD / Batman (ou Groucho / Afred; Bloch / Gordon...). Como escreveu um conhecido poeta, a propósito doutras ingestões, “primeiro estranha-se, depois entranha-se”.


Dylan Dog – O Número 200

texto: Paola Barbato

desenhos: Bruno Brindisi

edição: A Seita, Prior Velho, 2021


«Leitor de BD» 

quinta-feira, 1 de julho de 2021

estórias "para rapazes"


 BD não é só feita de Tintin e Príncipe Valente, Peanuts e Gaston Lagaffe, Corto Maltese ou Calvin & Hobbes. Muito do encanto que determinadas publicações tiveram, e que se mantém, sem nostalgia, décadas após o encerramento, deve-se também a uma quantidade de séries secundárias que preenchiam as revistas, criando uma aura que era partilhada pelos leitores. Por cada obra-prima, há uma infinidade de trabalhos correctos, que contribuem decisivamente para a consistência de uma visão global do trabalho de um determinado autor ou de um período. Alguns, sendo um recurso para tapar-buracos ao tempo em que eram publicados, hoje são vistos como fragmentos indissociáveis de uma época.

É o caso da série e do álbum que hoje aqui trazemos: Os 3 A – Os Piratas do Nevoeiro. André, Alain e Aldebert (Al, para os amigos) são três jovens escuteiros de espírito aventuroso, surgidos em 1963 nas páginas da revista Tintin belga, com desenhos de Mittéï (1932-2001) e texto de um certo M. Vaseur, pseudónimo de um nome sonante da BD, A.-P. Duchâteau (1925-2020), o argumentista de Ric Hochet, o repórter-detective.

A história, simples e movimentada, conta-se de uma penada: convidados por um armador, tio de Alain, a passar umas semanas a bordo do arrastão “Le Hardi” numa companha na costa da Islândia, são surpreendidos por um cargueiro à deriva, aparentemente sem vivalma. Alcançado o navio, deparam-se com a “Jolly Roger” hasteada – a característica bandeira dos piratas – e dão com a tripulação presa no porão. Chegados à vila piscatória de Slandag, verificam que não se fala doutra coisa, com um clima de suspeição que se abate entre os homens do mar, em especial sobre os mestres dos rebocadores, que beneficiam financeiramente com o resgate dos barcos; e para mais, o modus operandi destes piratas modernos denuncia uma violência inquietante.

Típica série “para rapazes”, como então se dizia, em não se vê uma figura feminina – muito medo das mulheres tinha a católica Bélgica; será preciso esperar pelo Maio de 68 para maior arejamento –, o argumento de Duchâteau é mais do que escorreito; mas a estrela aqui é Mittéï, desenhador em processo de revalorização, que algo estranhamente optará essencialmente pelos quadradinhos humorísticos, como o Incrível Désiré, sendo um dos vários autores que pegaram em Modeste et Pompon, após Franquin ter abandonado a revista Tintin, regressando à Spirou. Mittéï (Jean Thomas Toussaint Mariette), na altura assistente de Tibet em Ric Hochet, apresenta um trabalho empolgante, no dinamismo do desenho e nos enquadramentos das vinhetas. A edição portuguesa, já com mais de meio século, é um desgraça: má impressão e ausência de qualquer referência aos autores. Com raras excepções – como então a Verbo, a União Gráfica ou a Bertrand, orientada por Vasco Granja –, a edição de BD estava geralmente entregue aos bichos.


Os 3 A – Os Piratas do Nevoeiro

texto: M. Vaseur [A.-P. Duchâteau]

desenhos: Mittéï

edição: Editorial Íbis, Lisboa. s.d. [1970]

«Leitor de BD»

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

duas pepitas



 

Uma colectânea de BD tem a vantagem de fazer uma aproximação ao estado da arte e o inconveniente de trazer uma molhada de trabalhos menos relevantes, que, porém, se diluem se o nível geral for satisfatório. No livro de hoje – apresentado impropriamente como “antologia”, conceito que pressupõe a escolha de material previamente existente e, em geral, já publicado – o nível geral das narrativas propostas é interessante, impressão benigna para a qual contribuíram duas pepitas, essas sim, merecedoras de figurar em qualquer antologia.

TheLisbon Studio (TLS) é uma experiência de coabitação, de que resultaram quatro volumes temáticos, dedicados às Cidades, ao Silêncio, às Viagens e, este ano, às Raízes. Raízes literais ou metafóricas, de cunho realista ou alegórico , são sete: “O último dia da marmota”, de Quico Nogueira; “Solitude”, de Filipe Andrade; “Ferida, entre os canaviais”, de Marta Teives, com texto de Pedro Moura; “One Way”, de Bárbara Lopes; “Sem cuecas nem soutien”, de Nuno Saraiva;“Em nenhum outro lugar”, por Ana Branco e “Entre as sombras e a luz”, de Ricardo Cabral.

Escreve no prefácio André Diniz, brasileiro de raízes bem portuguesas: “Um único conceito pode ter diferentes conotações ao ouvido e às emoções de cada um de nós, e nenhum caminho é mais apropriado para explorar essas possibilidades do que a arte.” Entre uma narrativa de antecipação, a abrir, e o fecho no género fantasia – ambos graficamente conseguidos, mas algo débeis nos argumentos –, as restantes remetem-nos para evocações da infância e da juventude, os espaços, os afectos familiares e de camaradagem, a descoberta, a despreocupação, as equívocas percepções de quem ainda viveu pouco, por vezes o próprio desenraizamento e a distância a que tudo isso já está, parece que ainda ontem, E as pepitas aí estão, não desfazendo, abençoados 12 euros (p.v.p.): “Solitude”, de Filipe Andrade (Lisboa, 1986), uma narrativa sem palavras, um poema gráfico, 14 pranchas, incluindo o frontispício, a maioria de vinheta inteira; o tópico do farol, da solidão elemental e da passagem do tempo, a transmissão hereditária de uma missão. Apetece ouvir o standard do Ellington, já agora magnificado por Billie . Sinestesias...

Nuno Saraiva (Lisboa, 1969), um dos grande autores portugueses de BD e também notável cartoonista, com um estilo inconfundível, em “Sem cuecas nem soutien” fala-nos dos “episódios iniciáticos” que fizeram o caminho para o autor que é: o programa de Vasco Granja, doseando sabiamente Tex Avery e Zdeněk Miler, Chuck Jones e Norman McClaren, as ilustrações fulgurantes de Gustave Doré para Bíblia, os traumas que o Calimero provocava, os “anos dourados” no recreio da escola a cantar a música do “Sandokan” (“sem cuecas nem soutien...), índios, cowboys e outros bonecos de levar no bolso para brincar, enquanto os tempos não mudavam e as brincadeiras se tornavam outras. Doze pranchas, falsa vinheta dupla nas páginas pares, mais duas em baixo; seis nas páginas ímpares, os olhos deslizam e páram. Esplêndido. Abertura e remates a condizer.


TLS Series – Raízes

Vários autores

edição: The Lisbon Studio e A Seita, Lisboa, 2020

«Leitor de BD», jornal i

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Vasco Granja

Na BDteca da Amadora, uma exposição extraordinária sobre um dos grandes divulgadores dos quadrinhos, como ele gostava de escrever, e do cinema de animação, tendo por base a que esteve patente no último Amadora BD, mas aumentada. Documentos, cartas, memorabilia e desenhos originais. Até 2 de Maio.


terça-feira, 6 de agosto de 2019

José Ruy, A ILHA DO CORVO QUE VENCEU OS PIRATAS (2018): croudwriting

Quando atravessamos talvez o melhor momento de sempre da BD portuguesa, pela profusão e qualidade de desenhadores e argumentistas, é de elementar justiça lembrar aqui o último abencerragem dos tempos heróicos das histórias aos quadradinhos nacionais: José Ruy (Amadora, 1930), das páginas de O Papagaio, O Mosquito, Cavaleiro Andante, Tintin, Spirou – até hoje. Apaixonado pela História e pela sua divulgação, não por acaso, a principal personagem que criou é o navegador Porto Bomvento, a singrar pelos cinco cantos do globo; e dois dos seus trabalhos mais marcantes resultem das adaptações em banda desenhada da Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto e Os Lusíadas, de Luís de Camões, a que podemos acrescentar as muitas monografias sobre cidades e vilas do país, sem esquecer as várias biografias, de Charles Chaplin a Dimitrov, reveladoras desse interesse. No campo humorístico, o artista deu o seu contributo na que foi talvez a melhor revista que por cá se publicou, o semanário Tintin. Quem lhe percorreu as páginas, decerto não esquece a dupla de repórteres Clique e Flash deambulando pela redacção do hebdomadário, caricaturando com imensa graça quem a produzia semanalmente, em especial Dinis Machado e Vasco Granja, que nela tiveram influência decisiva.
Se o crowdfunding é uma prática normalizada pela comunicação das redes sociais, com A Ilha do Corvo que Venceu os Piratas (Âncora Editora, 2018), José Ruy tornou-se pioneiro do que poderemos chamar croudwriting, uma vez que a narrativa teve a participação activa dos corvinos, na composição deste relato de história antiga. No século XVII, aquela população isolada fez frente, com êxito, a um ataque duma frota de dez embarcações de piratas barbarescos – assim eram chamados os salteadores marítimos baseados em Argel e em Túnis –, que frequentemente empreendiam razias nas ilhas e no continente, em especial no Algarve, saqueando e fazendo cativos, vendidos nos mercados de escravos do Norte de África.
A narrativa parece seguir de perto as fontes documentais de que o autor lançou mão, por vezes com excesso de didactismo. Trata-se, porém, duma BD clássica de autor histórico, que à História e aos clássicos consagrou uma boa parte do seu labor.  O traço ágil de José Ruy conserva-se inalterado. As vinhetas iniciais da primeira prancha são esplêndidas em movimento e cor, dando em cheio a solidão da pequena ilha, exposta à inconstância dos elementos naturais no meio do Atlântico, e o insulamento daquela população entregue a si própria e a Deus, apenas lembrada pelo donatário, quando este exigia o tributo anual. (Âncora Editora, Lisboa, 2018)