A acção decorre no arquipélago de Chausey, no Canal da Mancha – Paul tem aí o refúgio, numa pequena casa que herdara dos avós –, e desencadeia-se quando, num paroxismo de desespero, o pavor de ficar meio inutilizado em consequência da doença, como sucedera ao pai, empreende o caminho para a costa para se suicidar. Mas um sinal luminoso a estralejar, indício de naufrágio, trava o intento. Conhecendo os rochedos como a palma da mão, arranca numa lancha em direcção ao pequeno veleiro em risco de se desfazer de encontro às rochas. A bordo está Kirsten, assistente editorial na casa que o publica, que se dirigira à ilha, sem avisar, para acertar pormenores.
Recuperada e enxuta já no acolhedor chalé, vendo as fotografias de inúmeras mulheres dispostas nas paredes, pede-lhe que fale sobre o projecto, o mesmo é dizer que lhe conte a sua história. Duas gerações diferentes, ele um abencerragem dos libertinos anos 60 e 70, ela jovem mulher do tempo do #mee too, o caldo não tardará a entornar-se; Kirsten a acusá-lo de ser um predador exibindo troféus de caça, o que Paul nega com veemência; pelo contrário, apreciando as mulheres e o prazer mútuo que uma relação suscitava, apenas estava atento aos sinais, tendo a experiência ensinado que quando um homem aborda uma mulher, se esta não tiver já reparado em si com agrado, dali não levará nada... Quando a dinâmica do diálogo precipita a acção, ficamos a saber que Kirsten não é apenas a publisher que se lhe apresentou, mas alguém com ligações ao passado.
Se o argumento cumpre (de Denis Lapière, Namur, 1958) abeirando-se perigosamente de alguns clichés, o maior interesse reside no trabalho de Dany (Daniel Herontin, Marche-en-Famenne, 1943), um dos últimos grandes nomes da idade de ouro da revista Tintin. As pranchas iniciais, as da tempestade sobre a ilha, são magníficas, as analepses distinguem-se do tempo presente através do recurso à aguarela e as expressões, numa BD que assenta sobretudo em diálogos de forte tensão, são bem logradas.
Dany sempre foi um pouco narciso: Olivier Rameau, protagonista da série que criou com Greg, assemelha-se ao autor quando jovem, e a bela Colombe Tiredaile teve por modelo Marcy, sua mulher. Colombe, mesmo nos parâmetros mais rígidos da imprensa da época foi sempre uma figura sexuada, que se vai erotizando à medida que o tempo o permite. Por isso, quando da série de gags eróticos Ça Vous Interèsse? – que deu a Dany uma aura de homme à femmes, apesar de casado com a mulher que ama há mais de 50 anos, como fez questão de frisar numa entrevista a propósito deste álbum –, ninguém se admirou que a imagem decalcada de Colombe também por lá aparecesse. Há quem veja em Paul um seu auto-retrato físico, no que o desenhador só concorda parcialmente. A verdade é que Lapière destinou o argumento a Dany e a mais ninguém; e, mutatis mutandis, a evocação de Colombe, isto é da mulher, Marcy, continua neste álbum. No fundo, diga-se o que disser, Dany é um homem que fica.
Un Homme qui Passe
Texto: Denis lapière
Desenhos: Dany
Edução: Dupuis, Marcinelle, 2020