Uma colectânea de BD tem a vantagem de fazer uma aproximação ao estado da arte e o inconveniente de trazer uma molhada de trabalhos menos relevantes, que, porém, se diluem se o nível geral for satisfatório. No livro de hoje – apresentado impropriamente como “antologia”, conceito que pressupõe a escolha de material previamente existente e, em geral, já publicado – o nível geral das narrativas propostas é interessante, impressão benigna para a qual contribuíram duas pepitas, essas sim, merecedoras de figurar em qualquer antologia.
TheLisbon Studio (TLS) é uma experiência de coabitação, de que resultaram quatro volumes temáticos, dedicados às Cidades, ao Silêncio, às Viagens e, este ano, às Raízes. Raízes literais ou metafóricas, de cunho realista ou alegórico , são sete: “O último dia da marmota”, de Quico Nogueira; “Solitude”, de Filipe Andrade; “Ferida, entre os canaviais”, de Marta Teives, com texto de Pedro Moura; “One Way”, de Bárbara Lopes; “Sem cuecas nem soutien”, de Nuno Saraiva;“Em nenhum outro lugar”, por Ana Branco e “Entre as sombras e a luz”, de Ricardo Cabral.
Escreve no prefácio André Diniz, brasileiro de raízes bem portuguesas: “Um único conceito pode ter diferentes conotações ao ouvido e às emoções de cada um de nós, e nenhum caminho é mais apropriado para explorar essas possibilidades do que a arte.” Entre uma narrativa de antecipação, a abrir, e o fecho no género fantasia – ambos graficamente conseguidos, mas algo débeis nos argumentos –, as restantes remetem-nos para evocações da infância e da juventude, os espaços, os afectos familiares e de camaradagem, a descoberta, a despreocupação, as equívocas percepções de quem ainda viveu pouco, por vezes o próprio desenraizamento e a distância a que tudo isso já está, parece que ainda ontem, E as pepitas aí estão, não desfazendo, abençoados 12 euros (p.v.p.): “Solitude”, de Filipe Andrade (Lisboa, 1986), uma narrativa sem palavras, um poema gráfico, 14 pranchas, incluindo o frontispício, a maioria de vinheta inteira; o tópico do farol, da solidão elemental e da passagem do tempo, a transmissão hereditária de uma missão. Apetece ouvir o standard do Ellington, já agora magnificado por Billie . Sinestesias...
Nuno Saraiva (Lisboa, 1969), um dos grande autores portugueses de BD e também notável cartoonista, com um estilo inconfundível, em “Sem cuecas nem soutien” fala-nos dos “episódios iniciáticos” que fizeram o caminho para o autor que é: o programa de Vasco Granja, doseando sabiamente Tex Avery e Zdeněk Miler, Chuck Jones e Norman McClaren, as ilustrações fulgurantes de Gustave Doré para Bíblia, os traumas que o Calimero provocava, os “anos dourados” no recreio da escola a cantar a música do “Sandokan” (“sem cuecas nem soutien...), índios, cowboys e outros bonecos de levar no bolso para brincar, enquanto os tempos não mudavam e as brincadeiras se tornavam outras. Doze pranchas, falsa vinheta dupla nas páginas pares, mais duas em baixo; seis nas páginas ímpares, os olhos deslizam e páram. Esplêndido. Abertura e remates a condizer.
TLS Series – Raízes
Vários autores
edição: The Lisbon Studio e A Seita, Lisboa, 2020