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sexta-feira, 20 de maio de 2022

Astérix atravessa o Donbass



Viajantes do Mundo Antigo, ainda não foi desta que os gauleses visitaram a Lusitânia, onde estavam os verdadeiros irredutíveis – “Não se governam nem se deixam governar”, escreveu a propósito Sérvio Sulpício Galba, a Júlio César. Quando pegámos no último Astérix, com o intuito de aligeirar o espírito da barbárie que nos ameaça e tolda os dias, com entrechoque de imperialismos, a carne para canhão em que foi transformado o povo ucraniano e o bombardeio maciço das opiniões públicas pelas mais desavergonhadas manipulações, verificámos que Ferri e Conrad nos transportam para a área geográfica do actual teatro de operações, a uma distância de dois mil anos.

Tudo começa quando o geógrafo Desorientadus propõe a Júlio César uma expedição ao Barbaricum, território vasto no leste da Europa e Ásia Central, com o fim de capturar um grifo – animal lendário, meio águia meio leão, com orelhas de cavalo –, descrito pelo viajante grego Dosamais de Colagénio. Um bicho daqueles em luta contra gladiadores aumentaria a popularidade de César, e para tal Desorientadus dispõe de informações de uma prisioneira amazona sármata (supostos antepassados dos eslavos), a bela Kalachnikovna. Ao mesmo tempo, Astérix, Obélix e Ideiafix acompanham Panoramix o druida, em deslocação à Sarmácia, ao encontro do colega xamã local Karnanteskeukine (adaptação não de todo feliz de Cékankondine – “c'est quand qu'on dine”, ou seja “quando é que se janta”...). Estamos, pois, no território que abrangia a actual Ucrânia, o sul da Rússia e o norte do Cazaquistão; tendo os autores concluído este 39º álbum da série ainda em 2020, embora o conflito permanecesse a baixa intensidade, não anteciparam a tragédia que se está a passar. As confusões étnicas sempre estiveram presentes nas histórias do pequeno gaulês, com muitos piscares de olhos à actualidade – quem não se lembra de Astérix e os Godos (1963) ou A Odisseia de Astérix (1981), este um dos melhores de Uderzo a solo, paródia da instabilidade perpétua no Médio Oriente? –; mas a verdade é que o momento não está para paródias, antes para recolhimento, solidariedade e espírito crítico afiado.

Trata-se de um álbum de sinal mais de Jean-Ives Ferri (argumento) e Didier Conrad (desenhos), o quinto da dupla, em que o mais conseguido, quanto a nós, continua a ser A Filha de Vercingétorix (2019). Os nomes de sonoridade russa são alguns deles esplêndidos, mesmo na tradução portuguesa: Gasodutine, o decano sármata; Botabaichine, o destilador; Wolverine, o lobo do xamã, companheiro de correria do Ideaifix; ou Klorokine, o anfitrião (aliás, a Covid-19 é a estrela no que respeita a gags). O desenho de Conrad, procura manter-se fiel a Uderzo.

Neste tempo de trevas, que São Goscinny continue a olhar por nós.


Astérix e o Grifo

texto: Jean-Ives Ferri

desenhos: Didier Conrad

edição: Asa, Alfragide, 2021

«Leitor de BD»

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

discurso directo: Tibet

 Jijé [Jerry Spring] foi progredindo até se tornar francamente bom, mas um dia apareceu um jovem que fazia Jijés cem vezes melhor! Era Giraud [Blueberry]. Mas devo confessar que nunca li Charlier [argumentista de Blueberry], nem Martin [Alix, Lefranc] ou Hubinon [desenhador de Barba Ruiva e Buck Danny]. Fiquei-me por Hergé [Tintin], Jijé e pelo prodigioso Franquin [Spirou e Fantásio, Gaston], que é um verdadeiro criador, sempre em busca do domínio do desenho, como Hermann [Bernard Prince, Comanche, Jeremiah, As Torres de Bois Maury, Duke]. Quanto a Uderzo, trata-se de um artesão de génio, mas chamo criador àquele cujo trabalho não se parece com nada feito antes. Em Uderzo vemos o traço de Walt Disney, Astérix tem as mesmas proporções que Mickey, Obélix é o anão Feliz da Branca de Neve!» Tibet, (1931-2010). desenhador de Chick Bill e Rick Hochet (com argumento de A-P. Duchâteau), em entrevista à Bo-Doï, Fevereiro de 2000,

«Leitor de BD»

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Barba Ruiva

 


O flibusteiro que comanda o “Falcão Negro”, personagem mítica da pirataria desenhada, criada em 1959 por Jean-Michel Charlier e Victor Hubinon para a revista Pilote, está de regresso e em maus lençóis, na companhia do filho adoptivo, Eric, Três-Pernas, o poliglota, e Baba, um colosso negro. Todos os conhecemos, no original ou através da paródia que deles fizeram Goscinny e Uderzo. Les Nouvelle Aventures de Barbe-Rouge – Pendu Haut et Court, texto de Jean-Charles Krahen, desenhos de Stefano Carloni, Dargaud, Paris, 2020.

«Leitor de BD», jornal i

quarta-feira, 15 de julho de 2020

30 anos de História com Spirou

Depois de números consagrados a Uderzo e a Morris, a publicação Historia BD #3 dedica as suas páginas a Franquin, passando em revista o tempo e os tempos que acompanharam o genial autor belga, no período em que se dedicou às histórias do groom do Hotel Moustique: Spirou par Franquin et les Trente Glorieuses – 1945-1975, Paris, Julho de 2020.


sexta-feira, 3 de abril de 2020

Albert Uderzo (1927-2020)

A vinheta inicial de A Odisseia de Astérix (1981) – um dos melhores álbuns de Uderzo a solo –, mostra a luta pela sobrevivência travada pelos habitantes silvestres da floresta gaulesa. Uderzo está ali no seu esplendor artístico de autor de BD humorística e de inspiração animalista, no espectáculo cruento que a natureza constantemente nos dá, dulcificado pela matriz dos comics americanos, onde bebeu: de Walt Disney e seus colaboradores a Milton Caniff, o criador de Terry e os Piratas e Steve Canyon, este último não despiciendo para a a BD de aviação Tanguy e Laverdure (1959), com texto de Jean-Michel Charlier, o excelso argumentista de Fort Navajo (Tenente Blueberry).
A grande influência, porém, e porque exercida pessoalmente, foi a de Edmond Calvo (1892-1957), um prodigioso animalista, a quem chamaram o “Walt Disney francês”. A sua obra mais reconhecida, La Bête Est Morte! – La Guerre Mondiale chez les Animaux, publicado imediatamente após a Libertação, trouxe-lhe o reconhecimento do próprio Disney. Os mestres excepcionais detectam-se sempre nos díscípulos de génio. Neste Uderzo de 1981, sexagenário já entrado, temos a impressão de Calvo é visivel. Aliás, é-o desde 1946, quando aos 19 anos, após vencer um concurso, publica o primeiro álbum – um feito para a época –, Les Aventures de Clopinard, le Dermier des Gognards, um perneta sobrevivente da batalha de Waterloo...
O êxito incomparável de Astérix o Gaulês não existiria sem o talento de Uderzo, sem a inteligência da caracterização psicológica daquelas figuras caricaturais, quase disneyescas. Sim, Goscinny era o espírito crítico, a audácia do subtexto, o génio da ironia; mas só com Uderzo e Astérix é que Goscinny é completamente Goscinny. Encontraram-se em 1951, e tiveram praticamente uma década de afinação, até apresentarem, em 1958, uma obra que faria jus àquela chancela de dream team, como lhe chamou o hergéfilo Jacques Langlois, Uderzo & Goscinny: Humpá-pá o Pele Vermelha, nas páginas da revista Tintin, que em muito antecipava o tom de Astérix: na América do Norte do século XVIII, a tribo dos Shavashavah é confrontada com a invasão de forças europeias, francesas e inglesas, com as quais tem de lidar. Aldeias a que não falta um chefe patusco, invasores alienígenas... Humpá-pá intrépido, menos experiente que o pequeno gaulês, tem também o seu perceiro, cómico e desajeitado como Obélix, o cavaleiro Humberto de Massa Folhada (ou Escalpe Duplo, como lhe chamavam os índios, por causa da peruca) porém trinca-espinhas, ao contrário do fabricante de menires.
No ano seguinte, na revista Pilote, Uderzo desdobra-se entre a BD realista de Tanguy e Laverdure e outra de teor humorístico, Astérix o Gaulês, em benefício da qual abandonará a primeira. Curiosamente, é substituído por um expoente da “Escola de Marcinelle” (da revista Spirou), Jijé, que dará à série dos pilotos-aviadores uma rugosidade que o traço suave de Uderzo não permitia.
Após a morte de Goscinny, Uderzo foi muito criticado por os seus álbuns a solo não alcançarem o nível dos anteriores, algo que é excessivo. O Grande Fosso e As Mil e Uma Noites de Astérix são outros títulos ao melhor nível da dupla.
(publicado no Sol)


segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

um Astérix à la Goscinny

O génio combinado de Goscinny (1926-1977) e de Uderzo (n. 1927) marcou o imaginário do nosso tempo. O primeiro pertence, aliás, àquele grupo raro de autores cujas expressões entraram no quotidiano – “uma aldeia gaulesa”, aplicada a uma comunidade irredutível, incapaz de se normalizar, será o exemplo mais saliente, de resto muito usada entre nós nos tempos da Troika.
Depois de alguns anos em colaboração, e após o surpreendente 'chumbo' de Humpa-pá, o Pele-Vermelha num referendo aos leitores do Tintin belga, Goscinny e Uderzo criam este universo centrado no pequeno gaulês, apresentado no número inaugural da revista Pilote, em Outubro de 1959. A ideia é um achado: graças à poção mágica do druida Panoramix, cuja ingestão confere a quem a beba uma força sobre-humana, a aldeia consegue rechaçar os assaltos das poderosas legiões de César. As narrativas vão-se aprimorando logo a partir da segunda história, A Foice de Ouro, o traço de Uderzo como o humor de Goscinny; explorando o gag de actualidade, as referências históricas, recentes ou da Antiguidade, e um irresistível manejo dos equívocos e das idiossincrasias do género humano, atingem níveis elevadíssimos. Recordemos A Zaragata, O Domínio dos Deuses, O Adivinho, todos os restantes.
Após a morte inesperada de Goscinny, Uderzo lançou-se sozinho ao trabalho, com resultados desiguais, mas com a fasquia muito alta e por vezes vencida (O Grande Fosso, A Odisseia de Astérix, As 1001 Horas de Astérix) Retirado este, a grande responsabilidade de continuar coube a Jean-Ives Ferri (Mostanagem, Argélia, 1959) e Didier Conrad (Marselha, 1959), autores dos últimos quatro álbuns.
Este mergulho na história gaulesa, com uma suposta filha do chefe arverno Vercingétorix, derrotado por Júlio César na batalha de Alésia (52 a.C.), parece-nos plenamente conseguido, com Ferri a revelar-se pela primeira vez um verdadeiro émulo de Goscinny, o que, convenhamos, não é fácil. O aproveitamento recorrente do trauma de Alésia, fazendo com que o nome daquele chefe gaulês seja apenas sussurrado, é gerador de situações da maior comicidade, claramente goscinnyanas... Já Conrad não é Uderzo (ninguém é Uderzo), e ainda bem. As revisitações dos clássicos da BD franco-belga, caracterizam-se, nos casos mais conhecidos, por uma sujeição ao cânone (supomos que por imposições contratuais de diversa natureza), apesar de alguns avanços em relação aos originais, o que é importante, sob pena de cairmos numa mastigação sem grande interesse. É sempre difícil fazer ‘igual’ e bem, e bem melhor partir dos traços gerais de cada série com o(s) respectivo(s) autor(es). Na BD franco-belga não haverá melhor exemplo que o de Spirou. Conrad parece querer seguir o seu próprio caminho, e tão maior relevância poderá alcançar quanto mais se libertar da ‘tutela’ de Uderzo.
Astérix – A Filha de Vercingétorix
texto: Jean-Ives Ferri
desenho: Didier Conrad
edição: Asa, Alfragide, 2019




terça-feira, 30 de julho de 2019

BDteca- José Abrantes & Miguel Rocha, O ENIGMA DIABÓLICO (1998): Mortimer encontra o Joker

O pastiche e a paródia, sobretudo em forma de homenagem, é uma prática comum em BD. Talvez o melhor exemplo seja a brincadeira de Uderzo e Goscinny com o pirata Barba Ruiva e tripulação, que vogavam nas páginas da revista Pilote, onde Jean-Michel Charlier e Victor Hubinon faziam publicar as aventuras do bucaneiro do 'Gavião Negro', as mesmas folhas que davam guarida a Astérix. E tão bem sucedida foi a graça, que os piratas recorrentemente postos a pique nos álbuns do pequeno gaulês se tornaram mais conhecidos que as personagens originais... A paródia pode mesmo constituir-se como subgénero: na revista Mad tem aí um dos seus pratos fortes; no mundo franco-belga, está nas bancas, inclusive em edição portuguesa, a bem sucedida charge a Blake e Mortimer, As Aventuras de Philip e Francis, de Nicolas Barral e Pierre Veys.
O pequeno volume da colecção «Quadradinho» #16, da autoria de Miguel Abrantes (Lisboa, 1960) e Miguel Rocha (Lisboa, 1968) é um despretensioso exemplo destas recriações. Título e capa remetem de imediato para as personagens de E. P. Jacobs: o primeiro é um divertido achado, combinando O Enigma da Atlântida  e A Armadilha Diabólica; o protagonista inominado, com barba passa-piolho, lembra o Prof. Mortimer, enquanto que o vilão não é o Coronel Olrik, mas um certo Conde Moloch, com acentuados traços do insano Joker, deslocado de Gotham para o lugar de Orelhos, onde se situa o solar lúgubre em que decorre a acção; em perigo e a pedir salvação, uma frágil jovem parecida com Adèle Blanc-Sec.  Melhores os desenhos que o texto, mas o conjunto funciona.  
O Enigma Diabólico (Associação Salão Internacional de Banda Desenhada do Porto, 1998)





segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Repostagens: Piratas

A figura do Barba Ruiva exerceu sempre sobre mim um fascínio a que não foram alheios o traço de Victor Hubinon e a destreza narrativa do grande Jean-Michel Charlier. Apesar disso, o poder caricatural duma certa dupla Albert-René foi tal, que não consigo pegar num álbum de aventuras do comandante do «Falcão Negro» sem que me venha à memória aquela angustiosa interjeição: «Os gau!... Os gaugau!...»

[29 de Abril de 2005, postado aqui]