Viajantes do Mundo Antigo, ainda não foi desta que os gauleses visitaram a Lusitânia, onde estavam os verdadeiros irredutíveis – “Não se governam nem se deixam governar”, escreveu a propósito Sérvio Sulpício Galba, a Júlio César. Quando pegámos no último Astérix, com o intuito de aligeirar o espírito da barbárie que nos ameaça e tolda os dias, com entrechoque de imperialismos, a carne para canhão em que foi transformado o povo ucraniano e o bombardeio maciço das opiniões públicas pelas mais desavergonhadas manipulações, verificámos que Ferri e Conrad nos transportam para a área geográfica do actual teatro de operações, a uma distância de dois mil anos.
Tudo começa quando o geógrafo Desorientadus propõe a Júlio César uma expedição ao Barbaricum, território vasto no leste da Europa e Ásia Central, com o fim de capturar um grifo – animal lendário, meio águia meio leão, com orelhas de cavalo –, descrito pelo viajante grego Dosamais de Colagénio. Um bicho daqueles em luta contra gladiadores aumentaria a popularidade de César, e para tal Desorientadus dispõe de informações de uma prisioneira amazona sármata (supostos antepassados dos eslavos), a bela Kalachnikovna. Ao mesmo tempo, Astérix, Obélix e Ideiafix acompanham Panoramix o druida, em deslocação à Sarmácia, ao encontro do colega xamã local Karnanteskeukine (adaptação não de todo feliz de Cékankondine – “c'est quand qu'on dine”, ou seja “quando é que se janta”...). Estamos, pois, no território que abrangia a actual Ucrânia, o sul da Rússia e o norte do Cazaquistão; tendo os autores concluído este 39º álbum da série ainda em 2020, embora o conflito permanecesse a baixa intensidade, não anteciparam a tragédia que se está a passar. As confusões étnicas sempre estiveram presentes nas histórias do pequeno gaulês, com muitos piscares de olhos à actualidade – quem não se lembra de Astérix e os Godos (1963) ou A Odisseia de Astérix (1981), este um dos melhores de Uderzo a solo, paródia da instabilidade perpétua no Médio Oriente? –; mas a verdade é que o momento não está para paródias, antes para recolhimento, solidariedade e espírito crítico afiado.
Trata-se de um álbum de sinal mais de Jean-Ives Ferri (argumento) e Didier Conrad (desenhos), o quinto da dupla, em que o mais conseguido, quanto a nós, continua a ser A Filha de Vercingétorix (2019). Os nomes de sonoridade russa são alguns deles esplêndidos, mesmo na tradução portuguesa: Gasodutine, o decano sármata; Botabaichine, o destilador; Wolverine, o lobo do xamã, companheiro de correria do Ideaifix; ou Klorokine, o anfitrião (aliás, a Covid-19 é a estrela no que respeita a gags). O desenho de Conrad, procura manter-se fiel a Uderzo.
Neste tempo de trevas, que São Goscinny continue a olhar por nós.
Astérix e o Grifo
texto: Jean-Ives Ferri
desenhos: Didier Conrad
edição: Asa, Alfragide, 2021