Allan Kardec (pseudónimo de Hippolyte Léon Rivail, 1804-1869) é um dos nomes que associamos ao espiritismo, "disciplina" muito na moda na Europa na transição dos séculos XIX-XX, que se sustenta na capacidade de nos pôr a falar com os mortos, sabe-se lá com que vantagens para a humanidade. Come quem gosta, e à partida não haverá grande mal nisso – pois não há quem creia num deus feito homem concebido por si próprio no ventre de uma virgem?... Quando Jorge de Sena se referia aos desvarios "mediúnicos" de Pessoa – que atraíram a atenção de um aldrabão de feira como Alesteir Crowley – teve a sabedoria de avisar que não interessa nada o que pensamos sobre aquilo que o poeta dos heterónimos acreditava, mas para o percebermos integralmente não o deveríamos ignorar. Este Kardec, que influenciou milhões de pessoas, e continua a ter muitos seguidores em países como o Brasil, é uma figura susceptível de ser estudada e biografada, com óbvio distanciamento crítico, atitude que não obriga a excluir uma possível empatia. Podemos ser ateus e apreciar a postura do papa Francisco, por exemplo. O que é mais difícil é a condescendência com a apologia da crendice, da pseudofilosofia e da pseudociência, que é o que nos dá o livro de hoje, da autoria de Carlos Ferreira (Porto Alegre, 1970) e Rodrigo Rosa (nascido na mesma cidade, em 1972).
Kardec quer impingir-nos a vulgata espírita, servindo-nos o processo de "conversão" daquele que viria a ser o nome sonante de uma das muitas bizarrias que o ser humano inventou para tornear e tourear a morte. Trata-se, portanto, de um produto pobre e apologético, cheio de lugares-comuns, não faltando a tradicional narrativa do céptico ilustrado que se converte e torna apóstolo. No entanto, a coisa é tão pequeno-burguesa, que em vez dum coisa épica, do tipo estrada de Damasco, as “revelações” processam-se no conforto de salões parisienses, dentro dos quais sacolejam as célebres mesas giratórias através das quais os mortos comunicam com os vivos… – que diabo!, uma queda do cavalo numa rota do Médio Oriente como aviso divino é algo intenso e deu várias obras-primas da cultura ocidental, algo que dificilmente se verifica neste misticismo moviflor.
Mas lá pretensão não lhe falta, nada menos do que a redenção universal, recuperando uma "idade do ouro" que só existiu nas narrativas mitológicas e na cabeça dos poetas antigos, porém sempre pronta a germinar com os tontinhos de ocasião, não faltando o acinte em discurso directo e tom de seita, numa referência ao "ninho de ratos que é o materialismo" (pág. 46).
Quanto ao mais: a história está gizada com fluidez e o trabalho de Rodrigo Rosa servem bem a narrativa; dir-se-ia bem de mais, uma vez que a matéria-prima é pobre. As vinhetas que representam a Paris esventrada pelo Barão Haussmann para a construção dos amplos bulevares que hoje nos encantam -- e tanto jeito deram para minimizar o efeito das barricadas duma cidade tradicionalmente insurrecta --, esses quadrinhos de Rodrigo Rosa são exemplares nos seus pormenores dramáticos. Mas BD é texto e desenho; e quando só um merece relevo, o todo resulta irremediavelmente coxo.
Kardec
texto: Carlos Ferreira
desenhos: Rodrigo Rosa
edição: Polvo, Lisboa, 2019