quinta-feira, 26 de março de 2020

um clássico imediato

Há obras que nascem já clássicas. É o caso desta longa narrativa de Émile Bravo em torno das primícias de Spirou, L’Espoir Malgré Tout, sobre cujo álbum inicial, Un Mauvais Départ, já aqui falámos, em Setembro passado.
A acção continua a decorrer na Bélgica ocupada pela Alemanha nazi, um suplemento de miséria moral a acrescentar ao já difícil estado de guerra, com o seu quotidiano de medo, carência e princípios vacilantes, em parte devido à necessidade de sobrevivência… Os motivos principais de Bravo: as consequências da guerra, a subnutrição infantil; a perseguição ao judeus, desde a obrigatoriedade do uso da estrela de David ao início das deportações em massa para um lugar na Polónia, cujo nome maldito não fora ainda apreendido por ninguém; finalmente, o amor, a ausência dele, a sua quase impossibilidade em tempos de catástrofe e afastamento, numa abordagem sóbria, clara e nada infantil, uma vez que Spirou, como todas as grandes criações de BD, se destina a todos os públicos.
O desenho minucioso, sendo tão assumidamente “linha clara” é também absolutamente original. A cor, a cargo de Fanny Benoit, está sabiamente doseada, tons frios neutralizados pela presença reconfortante de Spirou e Fantásio em digressão de teatrinho de marionetas contando as aventuras de… Spirou e Fantásio – uma reconfiguração histórica das origens da personagem, cuja criação e criador se perdem e confundem já noutro tempo e noutro mundo, anterior à II Guerra…
Um dos grandes méritos desta narrativa é a densidade psicológica dos protagonistas. Fantásio – o Capitão Haddock de Spirou –, nas suas contradições e fraquezas, postos por vezes em situações-limite, mostra alguma evolução, nunca deixando de ser o contraponto humorístico da generosidade, por vezes candura e integridade do jovem groom a sair da adolescência. Bravo consegue o prodígio, na releitura que empreendeu desta série canónica, a proeza, só ao alcance dos grandes autores, de contagiar as versões pretéritas de Spirou, de tal modo que será difícil pegar mesmo nos maiores, como Franquin ou a dupla Tome & Janry, alheando-nos da poderosa caracterização inscrita pelo autor.
Mesmo em curso de publicação, com dois álbuns editados em quatro previstos, apostamos a cabeça de leitor de BD na consagração futura e absoluta de L’Espoir Malgré Tout como uma obra maior da nona arte, enfileirando justamente com os pares que a aguardam no lugar que lhe é devido: de O Lótus Azul a Maus, de Forte Navajo à Balada do Mar Salgado. Pode o leitor português alegrar-se, pois esta excepcionalidade será garantia de que cedo ou tarde ela aí estará para quantos não possam ler no original.

Spirou – L’Espoir Malgré Tout – t. II – Un peau plus loin vers l’horreur
testo e desenho: Émile Bravo
cor: Fanny Benoit
edição: Dupuis, Marcinelle, 2019



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