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segunda-feira, 15 de março de 2021

Bandidos da TV.





Esta extraordinária série documental da Netflix mostra o que já sabíamos, que o Brasil de hoje é um país de opereta e que, no Brasil de hoje, o Estado de direito é uma gargalhada. Mas o que a série mais mostra, no Brasil e em todo o mundo, é o risco da delação premiada. Ameaçando um desgraçado qualquer com dezenas de anos de prisão, é fácil obter-se o que se quiser. O preso diz tudo, confessa tudo, acusa tudo e todos, quem nós quisermos. Daí à manipulação e ao abuso policiais vai um passo. Seja inocente ou não o protagonista de «Bandidos da TV», o que mais impressiona é a forma como as autoridades de um país – Brasil, Portugal ou outro – podem construir um «caso» com base na delação premiada e no testemunho de cúmplices criminosos, desejosos de salvarem a pele. As testemunhas dizem tudo e o seu contrário e, mesmo na ausência de outras provas (documentais, etc.), um ser humano pode ser condenado à prisão – o que, no Brasil de opereta, equivale muitas vezes a uma morte certa. 


Na Idade Média, a confissão era a «rainha das provas», o que incentivou a tortura, para obrigar os acusados a dizerem o que os algozes queriam ouvir. No nosso tempo, a delação premiada pode levar a resultados idênticos. Em tese, a delação premiada pode ser um bom instrumento de investigação criminal e de obtenção da prova (de prova complementar, corroborada por outros meios). Mas, na prática, o risco de, num sistema descontrolado, ela tornar-se a «rainha das provas» e converter-se no método «normal» (e preguiçoso) de trabalho das polícias é muito, muito grande. 


Risco tremendo, resultados revoltantes. 





   



  




sábado, 11 de julho de 2020

Emídio Santana: a voz resistente do anarquismo.







https://www.rtp.pt/play/p7469/e482640/emidio-santana-a-voz-resistente-do-anarquismo

Documentário sobre Emídio Santana (1906-1988), uma abordagem ao percurso do destacado militante da corrente anarco-sindicalista, do movimento libertário e do jornal A Batalha.

RTP2, dia 9 de julho 2020, quinta-feira, pelas 23:30
Realização: Edgar Feldman
Direção de produção: Paulo Guerra
Texto e entrevistas: Pedro Caldeira Rodrigues


Ilustrações: Jorge Galvão / Stuart Carvalhais

[Com a colaboração do cineasta Rui Simões (imagens inéditas de Emídio
Santana) e do Coro da Casa da Achada, que se incluem entre depoimentos e
análises de Lígia de Oliveira, João Santiago, João Freire, António Ventura,
João Madeira, Fernando Rosas, António Araújo, João Soares, Manuel Almeida e Sousa. Um documentário que também constitui um tributo ao diário A Batalha, órgão da Confederação Geral do Trabalho (CGT), fundado em 23 de Fevereiro de 1919 e que celebrou o seu centenário]








terça-feira, 5 de maio de 2020

O estado de apocalipse.






          Os convidados comentam os cortinados e bibelots dos anfitriões depois de saírem; os telespectadores comentam mal espreitam um directo no ecrã. As críticas foram instantâneas quando se viu o belo tapete Lx Tiles numa sala de receber na residência do primeiro-ministro em S. Bento. E António Costa recebia a RTP, nas pessoas de António José Teixeira, hoje director de Informação, ontem assessor de outra actual figura televisiva, Luís Marques Mendes, e Carlos Daniel, o entra-e-sai-e-entra na RTP, sempre com a porta giratória à disposição pelas altas instâncias do poder. Costa estava duplamente em casa: na residência oficial; na informação do operador de que é representante máximo do único accionista.

          Os telespectadores tiveram razão em apenas comentar o que se via, porque, quanto ao que se ouvia, nada houve de novo na entrevista. Era 30 de Abril. Costa repetiu durante uma hora o que dissera à tarde durante mais de uma hora. Foi uma conversa de amigos; pena não terem servido um cálice de Porto.


          As três ou quatro câmaras mostraram brilhantemente o cenário. Os espectadores puderam manter a atenção visual na magnífica sala, melhor que os cenários das séries da Netflix ou da Fox Life. Não lhes escapou o tapete, mas um outro acessório, essencial, pôde transmitir incólume, de forma subliminar, a mensagem da entrevista. Era um livro que estava na cómoda por trás dos jornalistas. Um livro aberto. Um livro de arte, bem ilustrado. Muitas pessoas gostam de ter livros de arte na sala, para os convidados verem as capas. Transmitem o seu grau de sofisticação e aquecem visualmente a ambiência. O Arquitecto do Universo de S. Bento preferiu abri-lo, revelar o interior, transmitir a sua mensagem. Vêem-se, e viu-se ao longe, durante a entrevista, o verso da folha 209 e a frente da folha 210. Ei-lo!, ilustrando o primeiro-ministro e os dois conversadores da RTP, o Apocalipse do Lorvão![1] A mensagem foi clara: depois do estado de emergência, depois do estado de calamidade, fatalmente virá o estado de apocalipse!





          Do lado esquerdo, o monge desenhou e pintou a Nova Jerusalém, a Jerusalém Celeste, profetizada por Ezequiel e retomada por S.Paulo no Apocalipse. Está nas imagens, está no texto sagrado:

E levou-nos, em espírito, a um grande e alto monte e mostrou-nos a grande cidade, a santa Jerusalém, que de Costa descia do céu.
E tinha a glória de Costa; e a sua luz era semelhante a uma pedra preciosíssima, como um punho cerrado, como rosa resplandecente.
E tinha um grande e alto muro, com 12 portas, nas portas doze ministros, e nomes escritos sobre elas, que são os nomes das 12 lojas de Portugal.
Da banda do levante tinha três portas de lojas, da banda do norte três portas de lojas, da banda do sul três portas de lojas, da banda do poente três portas de lojas.[2]

          O verso da folha 209 do Apocalipse do Lorvão é muito rigorosa nesta representação da visão do Grande Arquitecto de S. Bento.[3] O artista dos reinados de Afonso Henriques e Sancho I mostra as 12 portas de lojas, os 12 ministros, mostra o Arquitecto do Universo entregando a Cidade a si mesmo, na sua ubiquidade, e em baixo, o Cordeiro, metáfora visual do povo, sob o poder da espada, ou a espada do poder.

          Na cidade celeste, continua Paulo, Costa defende-nos do novo coronavírus: «não entrará nela coisa alguma que contamine», nela só entrarão «os que estão inscritos no livro» de Costa, agora com máscaras ou viseiras.



          Na frente da folha 210, escolhida para mais inculcar nos espectadores a mensagem da entrevista, o autor do mosteiro de Lorvão escolheu a Água da Vida e a Árvore da Vida. Foi de novo literal e simbólico na representação icónica: duma torneira sai em jacto a Água da Vida, que «é a palavra do senhor primeiro-ministro», para a boca dum crente, que um ministro segura, qual algoz; «e, no meio da praça da Cidade, e de uma e da outra banda do Tejo, estava a Árvore da Vida, que produz doze frutos, dando seu fruto mês em mês a cada ministro».

          Agradeçamos à RTP ter-nos trazido, com tanta doçura, tão brilhante representação dos nossos anos por vir: o estado de apocalipse. «E, se alguém tirar quaisquer palavras do livro desta profecia, Costa tirará a sua parte da árvore da vida, e da cidade dele».

Eduardo Cintra Torres




[1] Datado de 1189; da livraria do Mosteiro do Lorvão; depositado por Alexandre Herculano na Torre do Tombo em 1853; edição fac-símile, Valencia, ed. Patrimonio, 2003.
[2] Os palimpsestos introduzidos malevolamente nas citações em todo este texto foram criados a partir do Apocalipse do Apóstolo S. João, 21:10-13, 22-1-2, 22-17, 22-19, da Bíblia Sagrada, trad. por João Ferreira de Almeida.
[3] A folha 209v e a folha 201f foram retiradas da versão digitalizada do original, disponibilizada no site da Torre do Tombo.











segunda-feira, 10 de junho de 2019

Chernobyl fashion.

 
 
 
 



O El País publica uma colectânea de imagens de certas bombas atómicas e de certos bobos nucleares que, armando-se em influencers e à conta de uma série de sucesso da HBO, decidiram fazer-se fotografar em Chernobyl, onde morreu muita gente. Para sabermos do que estamos a falar, vejam um extraordinário documentário da Netflix sobre a Cidade 40, Ozersk, uma cidade que não existia, centenas de milhares de pessoas que não constavam das estatísticas nem contavam para nada. Foram expostas a radiações várias vezes superiores às das vítimas de Chernobyl. Como é possível brincar com a dor alheia? O Instagram devia fechar de imediato essas contas, retirar as imagens, que são pornográficas. E o mundo, claro, é um lugar estranho.  
 
 


domingo, 9 de junho de 2019

Uma sinopse no Purgatório.

 
 
 
 
 

 
 
 
Uma sinopse no Purgatório
 
Em 2015, apresentei à SP Televisão, a seu pedido, uma sinopse para uma série ficcional, destinada a um canal generalista. O texto de seis páginas entrou no silêncio do Purgatório. Há, dias, porém, vi, numa rua da minha freguesia, um anúncio publicitário de uma produção em estreia na SIC, Golpe de Sorte. A ideia-base era a da minha sinopse. Muito alterada, para tentar atrair mais espectadores, lá estava o pobre que ganha o EuroMilhões e à sua custa aprende a aplicá-los. Fui ao purgatório do meu computador e desencantei, silencioso numa pasta sem uso, o texto da minha sinopse. Ei-lo.
 
João Pateta
 
Sinopse para uma série televisiva curta
I
 
João é empregado de balcão, mas mais que tudo um faz-tudo, num desses bares de vila do “país real” a que se pode chamar tasca. Chamam-lhe pateta porque, se faz tudo, faz tudo mal. Ou assim acham. Ele tem sempre uma razão lógica para fazer como fez. E tenta explicar porque lavou assim o chão da tasca ou porque arrumou daquela maneira os copos.
A tasca é dum Manel, que dá emprego ao João porque ele faz tudo, mesmo que mal, e não há na vila quem queria fazer tudo e pelo mesmo valor, que é menos de metade do salário mínimo.
O João é alto, tem uns 20 e poucos anos, e aparenta ser aparvalhado, mas nas suas explicações percebe-se uma inteligência diferente. Não diz o que sabe. Se começa a falar, começam a gozar. Se fala de alguma coisa que leu, só o facto de ele dizer que leu é risível. Que fique bem claro: ele não é pateta. Todos acham que é, mas não é.
A mãe é, ou fica no princípio da narrativa, meia entrevadinha. Bem da cabeça, mas diminuída. O pai, que trabalha no campo, perde assim a mulher-criada, que também trabalhava no campo e fazia tudo em casa, enquanto ele via novelas e futebol.
O João leva porrada do pai, uma vez por outra, e, se não reage, é por ter na cabeça o ancestral respeito. 
Com a mãe entrevada, passa o João a ser o criado da casa, de manhã à noite.
Numa vila pequena há sempre relações sociais, escondendo-se quase sempre as dissensões mais fortes sob o manto grosso da hipocrisia dos campos. Quando há dissensões, o furúnculo rebenta e chega-se amiúde a vias de facto. O João, considerado pateta, assiste e sorri.
Há a Joana, que é uma empregadita duma fábrica à saída da vila. Também faz limpezas. Como estão ambos na base da sociedade, a que apanha com o pó dos carros que passam, dá-se bem com o João.
Pela tasca do Manel passam outras figuras. A maioria goza o João, com simpatia, uns, com superioridade displicente, outros. São figuras para desenvolver se esta estória passar da sinopse.
O João vive a vida possível. Não acabou o Secundário porque tinha de ajudar os pais. O seu único escape é, no computador, ver outras vidas e outras realidades nas notícias, muitas notícias, seguir um curso de inglês no Youtube e, principalmente, jogar xadrez. Começou por gostar das peças, que parecem formar uma estória, reinos simples, não como os da Guerra dos Tronos, mas simples até ter começado a jogar. E joga de noite, muito de noite, no seu quarto. 
O João deveria ter muitos furúnculos sociais à flor da pele, mas encolhe os ombros e deixa-os para trás. Se não pode mudar o seu pequeno mundo, não vale a pena estragá-lo mais.
 
II 
 
Mas… há sempre um mas, mas um dia por dá cá aquela palha, ou por dá cá aquela garrafa, o pai dá-lhe porrada e o João viu ali uma grande injustiça. Não era maior que as outras. O furúnculo é que estava pronto para rebentar. Era uma terça-feira à tarde, no Verão, no dia das festa local, dedicada ao santo padroeiro. Ouve-se a música pimba e do rancho por todo o lado. O João tinha passado na festa, tirou uma rifa, viu a Joana, e outras personagens que hão-de brotar, ganhou uma ginjinha nos tirinhos. O pai andava por lá, a beberricar; a mãe, em casa, entravada.
E foi depois do almoço que o pai, já bebido e chateado com a vida (pudera), se atirou ao João e o João não se aguentou e só não bateu no pai porque, já com a mão no ar, a recolheu sob o efeito do ancestral respeito. Mas as coisas não ficaram como antes. O João saiu de casa, bateu com a porta, andou a pé pelos campos, a ruminar ah!, se eu pudesse sair daqui. Ao som da música pimba da festa a entrar-lhe pelo cérebro, amaciou, deu-se por vencido pelas circunstâncias, e voltou à vila, não a casa, mas à vila, não foi à tasca, que estava fechada, por luto do Manel, mas andou por ali, e, olha! na montra da loja-que-vende-tudo viu uma caixa dum jogo de xadrez. Entrou, pediu para ver, abriu a caixa e abriu os olhos. As peças de plástico, ora preto, ora branco, estavam em saquinhos de plástico transparente e o tabuleiro, de cartão, dobrado em quatro, forrava o fundo da caixa. O João olhou para o autocolante por baixo da caixa: muitos euros para a carteira dele. “Carteira dele” é maneira de dizer, porque ele não tinha carteira, tinha moedas no bolso. Não podia. Encolheu os ombros: pensou, continuo a jogar na Internet. E, com as moedas na mão, somando mentalmente os 50 cêntimos duma moeda, com quatro moedas de 20 cêntimos, cinco de dez cêntimos e doze de dois e um cêntimo, encolheu outra vez os ombros e jogou no Euromilhões. Ainda lhe sobraram dezassete cêntimos.
Só percebeu que ganhou 112 milhões de euros limpinhos de impostos quando, nos dias seguintes, deram notícia nos telejornais de que se procurava na vila o vencedor do jackpot de terça-feira.
 
III
 
O que faz um vencedor do jackpot de Euromilhões? Falou-se muito disso na vila. A festa anual ficou esquecida perante a realidade do prémio e o sonho que cada um constrói. O João ficou calado, se bem que com a cabeça a andar à volta, mas, como o acham pateta, ninguém notou. Na loja- que-vende-tudo não desconfiam do João, não se lembram de quem jogou, até porque um pateta não entrava no esquema mental dos que se deitava a adivinhar o possível vencedor. Ainda por cima, naquela terça-feira tinha havido muitos forasteiros na vila que apostaram na loja-que-vende-tudo.
O João sabe que tem tempo para levantar o prémio. Esconde o boletim vitorioso nalgum sítio improvável, e pode ser que os argumentistas utilizem essa circunstância para algum suspense. Mas não o perde, porque esse é o suco da barbatana deste argumento. Vai arquitectando coisas na sua cabeça. Continua a trabalhar na tasca do Manel, mas invoca ter de ajudar a mãe para sair mais cedo. Lê estupidamente notícias. Casos anteriores. Não confia a ninguém o seu segredo. Ninguém desconfia: ele continua a lavar o chão da tasca.
E, uma manhã, depois de receber os 200 euros mensais do Manel, o João vai a casa almoçar , dá um beijo à mãe, diz ao pai, que lhe pede o dinheiro, que ainda não recebeu, e, quando sai, já não volta à tasca. Segue por outros trilhos, com medo que o vejam, porque na vila sempre alguém vê os nadas do quotidiano, e apanha a carreira para Lisboa. Pela janela da camioneta vê muitas coisas, as luzes da capital ao princípio da noite, um avião que levanta voo em direcção ao Ocidente.
 
IV
 
Chega de noite ao centro da cidade. Anda por ali à procura dum lugar onde ficar e entra numa pensão, a Pensão Estrelinha, onde lhe perguntam se é para ficar uma hora ou passar a noite. O João acha que uma hora não dá para dormir e fica a noite, pagando adiantado e recebendo a toalha na recepção. 
De manhã entra num banco e pergunta o que é preciso para abrir conta. Diz que volta mais tarde. E faz o mesmo noutro banco. E depois noutro. E depois noutro. Segundo as contas que fez, terá tempo para abrir quatro contas bancárias no mesmo dia. Vai depois à Santa Casa e o que lá se passa terá de ser investigado pelos argumentistas, porque este narrador não conhece os detalhes.
Ao fim do dia o João tem contas em quatro bancos, assim distribuídas: já depois do imposto pago, que o João espera que seja, em pequena parte, usado pelo Serviço Nacional de Saúde para acudir de imediato à mãe, 30 milhões, mais 30 milhões, mais 30 milhões, mais 22 milhões. Esta última conta é o fundo de maneio do João. O João tinha tido umas cenas caricatas nos bancos, porque indagou das condições para abertura de contas com mil euros e com muitos milhões. Os bancários, com medo de maltratarem o cliente, que podia queixar-se, explicaram-lhe. Não o enganaram, porque o João já tinha andado a farejar na Internet. E pensava que em boa hora tinha posto a Internet em casa, à custa do seu dinheiro e dumas chapadas do pai.
Agora, ao fim do dia, o João subiu a pé, porque não se acomodara à ideia de que uma pessoa como ele não anda a pé, ao Jardim de S. Pedro de Alcântara, dominou Lisboa com o olhar, abriu os braços, respirou fundo, e gritou para a cidade: “Lisboa, agora nós!”
 
V
 
Na vila as coisas tiveram o desenvolvimento narrativo que se espera de um desenvolvimento narrativo numa vila: logo no dia da fuga, ao pai faltou-lhe o João, para tratar da mãe e do comer, e à mãe mais ainda, porque o João tratava dela. O João calculou este sacrifício da mãe como uma jogada de xadrez em que se dá um peão ao adversário. O pai calou-se, como o rendeiro de Raul Brandão, que era um muro de silêncio. Só no dia seguinte, ao fim do dia, o Manel foi ter com o pai do João quando ele andava a cavar batatas. Precisava dele para fazer tudo no tasco. O Manel e o pai do João não jogavam xadrez, mas sabiam quanto eram dois mais dois: perceberam que o João era, provavelmente, o vencedor do jackpot. Em vez de um, dois: ficaram ali especados, olhando-se nos olhos, dois como que rendeiros de Raul Brandão. 
O Manel pôs a novidade a correr e, se uma notícia qualquer, como o da combinação da D. Arminda a ver-se por baixo da bainha do vestido, já corre depressa numa vila como esta, a suspeita de o João, o pateta, ter ganhado o jackpot — a maior notícia na terra desde a inauguração do monumento aos dois soldados locais mortos na batalha de La Lys — girou pela vila à velocidade da luz. O pai do João não disse à mulher, foi a Jaquina, que foi lá ajudá-la na limpeza e na lida da casa. A mãe sentiu falta do filho, bondoso para ela, mas sorriu, respirou fundo como se nunca o tivesse feito, e viveu feliz no silêncio das fraldas e da cama abandalhada. Coisa estranha, confiava na sagacidade e no bom senso do filho. E este, à distância, sabia que a mãe reagiria assim. O rosário tem muitas contas. 
Sem notícias do João, a vila não teve outro remédio se não esquecer o assunto. Se voltava, o falatório era para maldizer o ingrato, o malandro, esqueceu-se da gente, e essas coisas ditas por gente que nunca se lembrava do João quando ele lá vivia. A vila nem mesmo soube dos envelopes com dinheiro vivo que o João mandava para a mãe, sem nenhum bilhete e como remetente um apartado. Era muito dinheiro, mas ela não sabia o que fazer com ele, nem como. Nem sabia o que dizer ao marido, e por isso não lhe disse. Quando fosse à consulta da caixa na sede de distrito, aí, sim, já teria de ter algum plano. Coisa para argumentistas.
 
VI
 
E o João, cadê o João? Já não é João. Agora é Francisco, porque também se chama Francisco, só que o nome não ia tão bem com pateta e acabou por ser apenas João lá na vila. Francisco era o nome do padrinho, que emigrou para os States e nunca mais disse nada. Francisco — Francisco Oliveira, o apelido do avô materno, esquecido até então no cartão de cidadão. O João, agora Francisco, continuou a jogar xadrez, mas num tabuleiro de mármore e peças de marfim, na sua casa nova. Já lá vamos, mas primeiro o xadrez: que grande tabuleiro!, quase um metro por um metro! E dois cadeirões, um de cada lado, onde o Francisco se senta à vez para jogar contra si mesmo. Os argumentistas terão de estudar xadrez, porque isto não vai lá sem umas jogadas de vida inspiradas no jogo.
E o tabuleiro estava numa mesa à frente dos grande janelões da casa do Francisco, com vista panorâmica sobre Lisboa. Não, não comprou a casa. Haveria de comprar depois. Alugou. Pagou logo seis meses adiantados, para os arrendatários, uma empresa com nome estrangeiro, não o chatearem. Era gente à portuguesa, que desconfia de um Francisco ainda com ar de João pateta, mas que se cala quando vê o dinheiro. 
Ora, e aqui é que está a novidade, os leitores desta sinopse podem antecipar que o agora Francisco vai espatifar a fortuna em dois anos, como outros. Mas não é assim. O João agora Francisco é jogador de xadrez. Paciente. Pensador. Sabe que a táctica está ao serviço da estratégia. O dinheiro que espatifou foi um investimento: ele já não pode ser João, já não pode ser pateta. Ele pressentiu que o dinheiro não dá vida se a vida não der dinheiro e que um homem muito rico ou é diferente de si mesmo quando muito pobre ou será apenas um muito pobre com uma fortuna momentânea.
Portanto: o João não muda apenas para Francisco. O João muda, apenas. A psicologia social e a sociologia haveriam de explicar esta mudança. Depois dos gastos necessários para passar de João a Francisco e adquirir naturalmente um outro lugar, ele, que ainda é novo, muda rapidamente, mais por dentro do que por fora. O Zuckerberg também anda sempre de T-shirt. É claro que os argumentistas serão tentados a escrever humor fácil com as situações do João pateta a ver coisas que nunca viu, mulheres como nunca viu, e outros etc. que nunca viu, mas não devem ir por aí, essas situações certamente existem, mas terão de ser mais subtis e sem fazer humor de revista. 
E, ui!, tanta coisa que o João agora Francisco nunca tinha visto. Há episódios com mulheres, há. E tanto podem ser soviet girls do Elefante Branco como tias das discotecas in. Ele há cada uma! É que nem na Internet! O João aprende muito com elas, dentro da especialidade de cada uma. 
Este contacto com o mundo dos “de cima” dá muitas cenas interessantes e divertidas, coisas do mundo das tácticas, mas não esqueçamos a estratégia: o João agora Francisco aplica o dinheiro. Investe. Compra e vende. Encontra-se com empresários, banqueiros e até políticos, valha-lhe Deus. Os 112 milhões passaram a 97 em alguns meses, mas depois a fortuna começa a crescer. O agora Francisco é avesso à vida social. Entrega-se aos negócios e, está bem, tem umas gajas. Lá na vila não sabem dele. A mãe, sim, que se mudou para onde a tratam bem, depois de ter ido à consulta da caixa. O pai anda a plantar batatas e a beber na tasca do Manel. Diz que os mata a tiros de caçadeira se os vir pela frente. Ninguém o leva a sério, mas, sabe-se lá!, os argumentos precisam de momentos fortes. O agora Francisco comprou a fábrica da vila, aquela onde trabalha a Joana, e terrenos por lá, sem nunca lá voltar. Fala com a mãe pelo telefone e visita-a. A mãe tem um iPhone e um iPad.
E não há contrariedades? Há. O Francisco ainda João é enganado, quase ou mesmo, por gente dos negócios; pelas namoradas números quatro e sete; a mãe morre, depois de mais uma visita-surpresa do filho, o marido é informado e quase que mata o filho; perde milhões no descalabro de um banco nacional; compra uma herdade que não existe; investe numa telcom que vai à falência: é o que se quiser, como na vida. Mas isso faz crescer o João agora Francisco. Depois morre o pai, para compensar João agora Francisco do desgosto da morte da mãe. O homem não resistiu a uma tarde na torreira do campo depois de uma manhã bem bebida.
 
VII
 
O João agora Francisco parece um estrangeiro, mas não. É também um coração mole, mais João do que Francisco. Dá-lhe saudades da terra e da Joana, a única que não gozava com ele. Arranja maneira de se encontrar com ela. Lá vem a Joana, com um vestido da modista da vila, desengonçada. Há um muro entre os dois, que cresce quando ela lhe diz que o Moinas lá da vila, o carteiro, anda de olho nela. Ele oferece-se para padrinho e que lhes paga tudo.
Se quiserem um final feliz, com o João a encontrar a cara-metade certa, não há-de ser a Joana. Poderá ser a Cristina, filha do farmacêutico, uma força viva da terra, senhor de fato e gravata, quer na missa, quer as reuniões da sociedade civil. A Cristina era uma que nos tempos da vila não lhe ligada pevide, que o gozava nas costas com os amiguinhos, mas o João não via, tinha então esse sonho, e aos pobres é permitido sonhar. Agora, ao Francisco pôs-se-lhe na cabeça que havia de a conquistar, era uma espécie de Francisco a vingar-se do João. Mas nem Joana, nem Francisca. Esta agora queria o bem bom do Francisco, mas, vejam lá, foi o João que a mandou dar uma volta, num restaurante de Lisboa com duas estrelas Michelin. Mas pode ser que a estória acabe com o João agora Francisco dono da vila, a regressar em triunfo, com a banda local e depois um concerto da Orquestra Gulbenkian no novo Centro Cultural e Desportivo João Francisco Oliveira, que ele ofereceu à vila. E, depois, o João Francisco, agora com 28 anos que já parecem 38, parte num jacto privado de Lisboa para Nova Iorque. 
 
Fim
 
 
Eduardo Cintra Torres
 
 

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

O Saneamento na Radiotelevisão Portuguesa.

 
 
 
 
Nas malhas de organização deficiente da RTP/SARL havia pessoas e ligações de pessoas não definidas em estrutura orgânica que a condicionaram para além da própria vontade da Administração de então.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

boa tarde

 

 
 
Que um homem chamado Trump apareça numa série de coboiada da década de 1950 é coisa que causa espanto. Que esse homem prometa salvar o mundo, aí está. Que prometa salvar o mundo construindo um muro no Texas, dá para perguntar: será Donald ele próprio, messias televisivo, salvador de coboiada? Brrr, medo.

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

O fim da macacada.

 
 



A RTP, talvez em cumprimento de uma indecifrável missão de serviço público, decidiu abrir o canal aberto ao Oculto, maiúsculo. Portugal Culto e Oculto, assim se chama uma séria bem digna de Portugal, país sensacional. Pois tivemos no Episódio 5 a Alquimia «verdadeira mãe da Química e da Física modernas», onde o microfone foi passado ao Professor José Medeiros e Gilberto Lascariz, que é escritor e investigador. E, em entrega anterior (episódio nº 4, portanto), dedicada à «Ordem dos Bardos, Ovates e Druidas» ficámos a saber que «o Druidismo é uma das mais antigas tradições espirituais da Europa e, particularmente, do território nacional». Significa isto, portanto, que Portugal foi terra de druidas, muito mais do que noutras partes da Europa. Já o episódio 6 foi dedicado aos Rosa Cruz, com entrevista ao Grande Conselheiro para Portugal e Moçambique, além de testemunhos de distintos rosacrucianos que se dedicam ao Voluntariado na Área da Educação e da Saúde (com maiúsculas). O episódio inaugural foi atribuído à Maçonaria, abordada «de forma pedagógica». Bem, que canais comerciais nos vendam cenas destas, ainda vá. Que a RTP se dedique a tais macacadas é uma coisa que, enfim, não se percebe. Só vê quem quer, é certo. Mas pagar, pagamos todos. Dizem que é «serviço público». Talvez um druida consiga explicar porquê.