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terça-feira, 26 de outubro de 2021

ALCORA, a aliança “ímpia” entre o Portugal “multirracial” e o Apartheid.



 

 

Nos últimos anos a bibliografia sobre o Exercício ALCORA tem-se vindo a ampliar graças às investigações nos arquivos que conservam documentação sobre a guerra colonial. Avulta dentre a bibliografia o trabalho de Vicente de Paiva Brandão, ALCORA, a derradeira tentativa de manter o Ultramar Português, Casa das Letras, 2020. Tudo terá começado com a tese de doutoramento do autor a que se deu um alindamento posterior. Reconheça-se que há singularidades na pesquisa de Paiva Brandão, percorreu arquivos nacionais e estrangeiros, procedeu a História Oral e recolheu opiniões de intervenientes que acompanharam o desenvolvimento deste protocolo.

Dá-nos em primeiro lugar uma síntese da História da África do Sul, que nos poderá ajudar a compreender a essência do poder branco e a perceção que o país do Apartheid possuía sobre a importância crucial de ter o respaldo do Império Português. O autor dá-nos neste ponto uma evolução do pensamento sul-africano ao longo do período que se iniciou com a descolonização do continente africano e das iniciativas tomadas para a aproximação com o Estado Novo, impunha-se, na lógia de Pretória, uma defesa mútua dos valores da civilização ocidental.

A política de Salazar era, por um lado, recetiva à cooperação mas, por outro lado, reticente quanto às ambições hegemónicas da África do Sul e ao risco de aparecer na comunidade internacional como parceiro de uma política racista, como o autor observa: “No caso português, duas ordens de razões justificavam que se procurasse discrição: primeiro, tal colaboração existia e era uma mais-valia para as forças lusas que não convinha publicitar; por outro lado, a Lisboa não interessava a colagem a Pretória, pois esta revia-se no sistema do Apartheid, doutrina que colidia com o multirracialismo veiculado por Portugal. Também no que dizia respeito à Rodésia, o executivo luso pautava-se pela prudência, devido às desavenças entre Ian Smith e o governo de Londres, agravadas após a Declaração Unilateral de Independência daquele território em relação ao Reino Unido. Este hábil jogo diplomático prolongou-se durante o consulado de Salazar, mas com Marcello Caetano, com a agudização das incursões da Frelimo, sobretudo na província sul-africana de Tete, e a crescente atividade da SWAPO no Sudoeste Africano, em associação com movimentos de libertação angolanos, levou ao estabelecimento, em outubro de 1970, de um convénio ultrassecreto cujo título nos dossiês é de Exercício ALCORA. Vai-se formalizar o compromisso das autoridades dos três países em definirem estratégias e planos concertados para combater inimigos mortais”.

Em 1964, a Rodésia do Norte tornou-se na República da Zâmbia, avolumaram-se as críticas ao domínio branco, a Rodésia do Sul, em novembro de 1965, declara unilateralmente a independência face à Grã-Bretanha, surge um novo aliado para combater a subversão dos independentistas, haverá bloqueio por parte da Grã-Bretanha, graças ao porto da Beira, Salazar facilitará os abastecimentos essenciais do governo do domínio branco de Ian Smith.

Como se disse acima, Marcello Caetano foi convencido a uma nova abordagem militar, 1970 é o ano da Operação Mar Verde, dirigida contra a Guiné-Conacri e a Operação Nó Górdio no Norte de Moçambique, com a primeira agravou-se o isolamento diplomático de Portugal, com a segunda a FRELIMO que deixara as suas bases às moscas foi avançando para o Tete.

O autor dá-nos conta do que foi a política de aproximação da África do Sul a certos países africanos, tudo se agudizou em termos de política externa: falência no diálogo com os estados africanos, incluindo Madagáscar; esfriamento das relações com o Botswana; afastamento e hostilidade do Lesoto; manteve-se alguma cooperação com o Malawi, Maurícias e Suazilândia e algum relacionamento com a Zâmbia. É de utilidade o enunciado sobre a diplomacia bilateral, se bem que esta matéria apareça estranhamente repetida noutros pontos do livro. O entendimento entre a África do Sul e o Estado Novo fez parte da estratégia militar sul-africana logo na década de 1950 e o autor dá um bom quadro destas diligências; entretanto todo o cenário da subversão se alterara com os três teatros de guerra nas colónias portuguesas e assim chegamos a outubro de 1970 em que o Exercício ALCORA reuniu Portugal, a África do Sul e a Rodésia, todos os convites endereçados pela África do Sul às antigas potências coloniais não obtiveram resposta. Portugal tinha recursos limitados e aceitou apoio externo dentro da combinação trilateral, o apoio em meios aéreos foi muito bem-vindo.

E dá-se uma descrição do suporte, logo no Sudeste de Angola com os helicópteros Alouette III e a colocação de combustível no Sudeste angolano. O autor observa que esta cooperação iniciara-se já em 1968, agora intensificava-se, o protocolo tinha um objetivo muito elástico: “Investigar os processos e meios de conseguir um esforço coordenado tripartido entre Portugal, a República da África do Sul e a Rodésia, tendo em vista fazer face à ameaça mútua contra os seus territórios na África Austral”. Dava-se ênfase ao aspeto militar, estabeleceram-se modos organizacionais envolvendo também a contrainformação, telecomunicações, unidades de reserva e até reconhecimento e fotografia aérea. Este último aspeto era muito importante para Portugal que não dispunha de grandes meios ao nível fotográfico. Em 1971, reuniu-se a subcomissão ALCORA de defesa aérea, aí se constatou que os caças da Força Aérea Portuguesa F-84 e G-91 eram inferiores a uma hipotética ameaça de aparelhos Mig-19 e 21. E concluiu-se ser imperioso a criação de uma força de ataque com Mirage M-5 e F-1; a ajuda suplementar em helicópteros foi também considerada.

Os políticos sul-africanos estavam atentos à evolução da FRELIMO em direção ao distrito de Tete, podia pôr em perigo a construção da barragem de Cahora Bassa, que seria vantajosa tanto para a África do Sul como para a Rodésia. Os sul-africanos tinham ficado igualmente dececionados com as iniciativas espalhafatosas de Kaúlza de Arriaga. Quando, em setembro de 1971, Ken Flower, chefe dos Serviços Secretos rodesianos, se encontrou com Marcello Caetano, deu a saber ao político português que a guerra poderia estar comprometida em Moçambique, caso não se alterasse a respetiva orientação, havia infiltrações da FRELIMO provenientes da Zâmbia e dirigidas a Tete. Ian Smith irá nos próximos anos revelar a inquietação que lhe provoca a situação em Moçambique. Intensificou-se o apoio militar a Portugal.

O autor dá-nos seguidamente a apreciação do histórico da cooperação militar bilateral, desvela os múltiplos contatos entre os parceiros do protocolo trilateral, a África do Sul esteve sempre atenta à evolução dos acontecimentos em Angola e Moçambique, temia que ambas as colónias caíssem na esfera da influência colonista, e depois dos graves acontecimentos na Guiné de 1973 abriram os cordões à bolsa para que Portugal comprasse armamento e equipamento à altura dos novos desafios. Para o autor, a intervenção da África no Sul nas guerras que Portugal travou em África não terá sido decisiva. É da maior conveniência ler esta obra no contexto das diferentes investigações efetuadas desde a década de 2010.


                                                                                                       Mário Beja Santos




segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Quando um navio abandonado nos faz viajar pelos fantasmas do império.

 

 

O que há de mais eletrizante no romance Angoche, Os fantasmas do Império, de Carlos Vale Ferraz, Porto Editora, 2021, é o aproveitamento de um enigma aparentemente irresolúvel para viajarmos aos derradeiros anos da vida imperial portuguesa. Um navio mercante partiu de Nacala em 23 de abril de 1971, com destino a Porto Amélia (hoje, Pemba). Ia com 24 almas e um importante carregamento de material de guerra. No dia seguinte, um petroleiro encontra o Angoche à deriva, incendiado e sem ninguém a bordo, parecia mais uma dessas histórias de navios-fantasmas. Abre-se inquérito, especula-se quanto ao facto de ter havido duas explosões, atribuiu-se tudo ao terrorismo. Depois do 25 de Abril, os relatórios da PIDE/DGS. O romance do autor da obra-prima Nó Cego questiona a moralidade e o egoísmo, mas o que ficará desta digressão e inquirição, onde se aparenta um trabalho de escrita de crime e mistério, muita conversa do autor com o tio de Dionísio na Ericeira, é irmos às entranhas da guerra em Moçambique, forjam-se amizades entre os homens da Marinha, o capitão-tenente Dionísio era então oficial de informações e as nótulas históricas que o autor introduz como de primordial importância, não exatamente para apurar o desempenho de temíveis serviços secretos sul-africanos que se teriam servido do Angoche para mandar um sério aviso – Moçambique não poderia ser independente. Dentro do círculo em que se move Dionísio há uma ou outra figura que recebe destaque, Saúl, sabia muito de missa sobre o Angoche, entram no terreno literário os homens do BOSS, os Serviços de Informação e Segurança da África do Sul. Era logo evidente na primeira fase de inquérito a contradição das mensagens, houvera manipulação ou distorção para que a mentira falasse mais forte.

É neste contexto que Carlos Vale Ferraz nos desvela uma panorâmica do que foi efetivamente a luta pela independência de Moçambique, dá-nos quadros de intensa vibração entre o que era o norte e o sul, o papel das potências racistas que subordinaram a política portuguesa a um quadro de maior vigilância de terrorismo através do Exercício Alcora, movem-se figuras exuberantes, por vezes completamente dissonantes, como Kaúlza de Arriaga e Jorge Jardim, é magistral o retrato do chefe de brigada da PIDE, Casimiro, há as mulheres de relações fáceis, algumas delas profundamente amadas, aparece um agente da secreta francesa, Dominique de Roux, que andará por Lisboa à volta o 25 de Abril. Tudo isto nos vai aparecendo em encontros entre o autor e o seu tio Dionísio, ele vai soltando a língua com muito vagar, o mistério em espiral deve permanecer até ao fim, Saúl aparece e reaparece, é um cafajeste, ainda por cima ligado a Margarida Palma Vidigal, detentora de muita informação, e há Van den Bergh, o chefe da BOSS, tratado como um porco ou um amoral. E o autor, inopinadamente, dá-nos frescos do melhor recorte literário:

“Os marinheiros de todo o mundo conhecem a Costa dos Esqueletos, no deserto do Namibe. Um local árido, no Atlântico Sul, onde a corrente fria de Benguela choca com o ar escaldante do continente, provocando temporais que atiram os navios contra os baixios de rochas cortantes. Pouco ou nada cresce nas areias do Namibe, e raros animais conseguem adaptar-se a um meio ambiente tão inóspito (…) As instalações discretas, de casernas pré-fabricadas, quase invisíveis nas areias da Costa dos Esqueletos, escondiam a prática de ações fora de qualquer limite e à margem de regras elementares de humanidade por parte dos dirigentes de Pretória, em particular dos polícias sul-africanos. Os barracões, semelhantes aos dos campos de concentração nazis, esconderam laboratórios para a realização de tenebrosas experiências de guerra química e biológica, desenvolvidas pelos Serviços Secretos Sul-Africanos”. Também o que se passa em Moçambique é alvo do impiedoso olhar clínico do autor: “No desconjuntado triângulo do poder em Moçambique, os vértices lutavam uns com os outros para ocuparem o topo. O governador-geral e o comandante-chefe apenas se relacionavam para indispensáveis assuntos de serviço, mas Kaúlza, como Dionísio tivera oportunidade de verificar, também se entendia mal com Jardim, um espinho permanentemente cravado na vaidade do cabo de guerra, através do domínio que o engenheiro exercia sobre as milícias de negros, a DGS, a comunicação social, o seu jornal e a sua rádio, a influência nos países vizinhos, as amizades e cumplicidades entre ele e os políticos e militares da África do Sul, da Rodésia, os dirigentes do Malawi e até da Zâmbia. Jardim ignorava o governador-geral, que por sua vez não lhe reconhecia outro estatuto do que um fura-vidas agente de negócios, e intrigava contra o jornal, espalhando a ideia da sua incapacidade política e militar”.

Há mortes estranhas, como a de Margarida, fez-se constar que se suicidara. Chega o fim da comissão de Dionísio em Moçambique, nestas consecutivas conversas entre o autor e o seu tio Dionísio, apura-se que o Angoche o manchara na sua dignidade e o obrigara a envolver-se nos acontecimentos do 25 de Abril, entramos num universo patético, Jorge Jardim ameaça com uma solução de independência. Há um encontro em Madrid entre dois homens de informação, Dionísio e Peter W, oficial inglês. Este revela a Dionísio que a má sorte do Angoche e dos seus tripulantes caiu no meio do jogo em que as fações do governo da África do Sul travavam dentro da estratégia total. Destas conversas entram e saem dos bastidores outros oficiais da Marinha como Saúl e Cândido, fala-se das ligações de Saúl a Calvão, este ligado ao negócio de armas. Saúl confessou a Dionísio a operação dos Serviços Secretos sul-africanos sobre o Angoche. Calvão merece destaque, ele que ganhara nome na Operação Mar Verde, o assalto a Conacri, aparece ligado a várias insurreições, mas o império desmorona-se.

E nesse mundo em cinzas, o autor socorre-se de outra alegoria, a casa do tio Dionísio desaparece num incêndio criminoso. “As câmaras de vigilância e os sensores contra estranhos, que protegiam a vivenda, haviam sido desligados, os fios cortados. A central de controlo da empresa de segurança não recebera qualquer sinal de intrusão. O corpo do meu tio nunca foi encontrado, nem descoberta a causa do incêndio, nem os autores”. Novo silêncio, como no atentado ao Angoche, os grandes criminosos hão de sair impunes. E os mortos não falam.

De leitura obrigatória. 


Mário Beja Santos



 


sábado, 13 de março de 2021

Guiné-Bissau: O Estado é frágil; no entanto, as sociedades rurais são a alma da nação.

 

 



 

O título da obra Lineages of State Fragility, Rural Civil Society in Guinea-Bissau, por Joshua B. Forrest, Ohio University Press, 2003, parece desconcertante e, contudo, trata-se de uma arguta e audaciosa investigação de que, incompreensivelmente, não se vê qualquer alusão nos autores de referência neste domínio particular da investigação. É um dos mais importantes trabalhos de tese sobre a Guiné-Bissau que eu conheço, e por essa razão pretendo falar dele com uma certa minúcia.

Falar em Estado frágil está muito longe de ser uma novidade quando se fala da Guiné-Bissau. Há consenso que um estado desta natureza tem uma incapacidade estrutural para impor decisões políticas levando a generalidade dos grupos a sentirem-se enquadrados numa perspetiva nacional. Não é frágil o Estado onde se pagam impostos, se possui um sistema educativo, um serviço público de saúde, mecanismos de salvaguarda da segurança pública, intervenções em calamidades, e o muito mais que se sabe. O que não se sucede na Guiné-Bissau. O que Joshua Forrest apresenta como premissa maior é de que este Estado frágil tem as suas raízes no modo de desenvolvimento das sociedades rurais tanto nos períodos pré-coloniais como coloniais. E para dar consistência à sua tese o autor disserta sobre a história da Guiné-Bissau em quatro momentos específicos: o espaço político pré-colonial e o encontro afro-europeu; a organização do território durante a presença colonial e a resposta das sociedades civis, na vertente étnica; como as sociedades rurais responderam ao período da ocupação e pacificação; por último, a luta armada e o Estado pós-colonial.

No essencial, Joshua Forrest pretende dar uma sequência às identidades étnico-políticas, mostrando que quando os europeus desembarcaram na chamada Costa da Guiné, Senegâmbia, Terra dos Negros, ou outra expressão equivalente, já existia uma rede comercial e um vasto sistema de alianças à procura de equilíbrio. As identidades étnico-políticas deram provas, sem prejuízo da sua autonomia, de se mostrarem capazes de estabelecer alianças de longo prazo. A relação do colonizador com os reis locais revelou-se bizarra: na generalidade dos casos, o colono, para fazer o seu comércio em paz, tinha que pagar uma daxa, um tributo, não pagando sujeitava-se às mais tortuosas retaliações. Durante séculos, o colono não se propôs ocupar o território e quando o ensaiou encontrou uma reação áspera, daí os múltiplos incidentes e combates. A prova de que Forrest estudou e refletiu profundamente sobre os elementos da sua tese aparecem com clareza quando ele fala nas alianças multiétnicas, à volta do grande cerco de Bissau (1890-1909). Na verdade, ainda na segunda década do século XX, o Estado colonial controlava uma porção ínfima do território. Há pormenores desta análise do maior interesse, como é o caso do armamento usado por ambas as partes até ao momento em que a evolução do armamento deixou as sociedades guineenses sem capacidade de resposta. O armamento e o número de efetivo a combater. Quando em 1907, o régulo do Cuor, em estreita conivência com outros régulos de regiões limítrofes, impede a navegação do Geba, pela primeira vez Lisboa reagiu autorizando um considerável exército para castigar o rebelde, foram enviados contingentes de Portugal e de Moçambique, embarcações bem equipadas, o exército com o melhor armamento disponível. Mais tarde, durante as campanhas do capitão Teixeira Pinto, usou-se o terror e a dissuasão combatendo sem tréguas.

Pacificação nunca significou na Guiné domínio absoluto, até porque foi entendido, perante o mosaico étnico e a diversidade de sociedades horizontais e verticais, que o Estado colonial beneficiaria de receber a fidelidade das etnias islamizadas, fenómeno que estará presente na luta armada de 1962 a 1974. Reparo que Joshua Forrest é o primeiro investigador que recua a data da luta armada para 1962, há hoje provas inequívocas de que nesse ano o PAIGC desmantelava infraestruturas, fazia emboscadas, lançava intimidações, socorria-se do terror e assassinava comerciantes brancos e cabo-verdianos. O autor recorda o mercenário senegalês Abdul Indjai, de quem Teixeira Pinto fez um herói, no fundo fez do mercenário o proprietário de uma porção do país, embora se tenha virado o feitiço contra o feiticeiro, Abdul Indjai veio a revelar-se um aterrorizador de populações entre o Oio e o Geba, caiu em desgraça, foi preso, retirado da Guiné e exilado em Cabo Verde.

Estamos perante uma investigação em que se pretende dar como facto consumado a autonomia e a capacidade de resistência a nível local. O Estado colonial nomeia régulos que não merecerão a confiança das populações locais. Balantas, Manjacos e Felupes manter-se-ão à margem da administração colonial, a despeito do trabalho forçado e do imposto de palhota. A vida social, política e económica destas etnias manter-se-á inteiramente livre, são sociedades que disporão de uma intensa rede comercial informal, os comerciantes deslocar-se-ão calmamente pelas fronteiras porosas do Senegal e da Guiné Francesa. Quando o governador Carvalho Viegas escrever nos anos de 1930 o seu importante relato sobre a Guiné não iludirá de que a administração da colónia é mais teórica do que o real, com funcionalismo altamente corrupto e culturalmente desqualificado. Será Sarmento Rodrigues o governador destinado a ver mais longe e a pretender alterar a situação de ocupação fictícia: Bissau ganha dignidade, lançam-se infraestruturas, procura-se conhecer a cultura guineense, atraem-se os mais capazes, o governador pretende ver em marcha uma colónia modelo. Serão convocados planeadores urbanos, arquitetos entusiastas, até artistas em lançamento. No momento em que escrevia estas considerações sobre a importante investigação de Forrest, decorria no Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian uma retrospetiva a José Escada. Ele vai aparecer a trabalhar nos painéis da nova Associação Industrial e Comercial de Bissau, no local mais central da cidade. Sarmento Rodrigues cuidou de uma administração mais motivada e capacitada.

 

 


Estátua do capitão Teixeira Pinto

 

 


Abdul Indjai, o serere que se pôs ao serviço de Teixeira Pinto e foi premiado como régulo do Oio

 

Ao iniciar-se a luta armada, a Guiné possui uma administração colonial, um serviço de saúde elogiado pela OMS, Spínola conferirá durante o seu mandato uma enorme respeitabilidade à audição multiétnica através dos Congressos do Povo, eventos que tiveram a particularidade de juntar representantes das sociedades rurais. É nesse contexto que o investigador norte-americano se debruça sobre o soçobro do Estado pós-colonial. Amílcar Cabral falara repetidamente na “armadilha de Bissau”, advertira enigmaticamente quanto ao “suicídio da burguesia”, deixara escrito que o Estado devia descentralizar-se, um país com aquela dimensão, saído de uma dilacerante luta armada, com tais e tantas confrontações étnicas, o Estado pós-independência devia estar junto das populações. Ninguém o ouviu. Com as consequências à vista.

O Estado na República da Guiné-Bissau permaneceu sempre frágil, distante e indesejável para muitos dos autóctones. Os comités de tabanca rapidamente caíram em desuso e praticamente não funcionaram nas regiões onde a presença portuguesa era mais forte. Luís Cabral e Nino Vieira prometiam modernização: surgiram os grandes desastres da pseudo-industrialização, os doadores foram-se cansando de ver tanto projeto posto em abandono, descurado por meras guerras intestinas. Em poucos anos, as sociedades guineenses aperceberam-se que vinham autocarros oferecidos, automóveis suecos para os governantes, que até o dinheiro da cooperação sueca para pagar aos professores era desviada, os correios deixaram de funcionar, as estradas só eram reparadas com a cooperação chinesa, o sonho dos Armazéns do Povo tornou-se num pesadelo de corrupção e incompetência. Os régulos voltaram a ser a autoridade legítima, floresceram as escolas corânicas.

Enfim, estamos perante um trabalho tão controverso que há inúmeras questões para tentar responder, desde as alianças multiétnicas que precederam a chegada dos portugueses, em que termos mais precisos se pode argumentar que as sociedades rurais guineenses recusaram o Estado, etc. Forrest também implica o novo olhar sobre a luta armada e as propostas de Amílcar Cabral. Creio serem estes os aliciantes fundamentais para percebermos que esta obra é indispensável para entender melhor a Guiné-Bissau de há muitos séculos até hoje.

Recapitulando, a tese fundamental de Joshua B. Forrest é de que o território onde hoje situa a República da Guiné-Bissau sempre faz parte de Estados fracos, é uma situação que remonta ao período pré-colonial, tendo daí resultado um modo de desenvolvimento das sociedades rurais que foram descobrindo as suas redes comerciais, estabelecendo redes de alianças entre etnias e mesmo em períodos de grande intimidação, em termos coloniais e pós-coloniais, assim mantêm a sua identidade e autonomia. Esta tese é forçosamente controversa. Basta pensar nas propostas de Amílcar Cabral no tocante à nação guineense e à unidade Guiné-Cabo Verde. O líder do PAIGC declarou e escreveu que a cultura desenvolvida pela luta armada estava a dar uma fisionomia ao novo Estado, as etnias iriam todas confluir numa nação que se pautaria por uma democracia revolucionária. O Congresso de Cassacá, em fevereiro de 1964, teria marcado a condenação das práticas mágicas negro-africanas e a punição severa de chefes da guerrilha torcionários e crentes nessas práticas mágicas. O PAIGC era apresentado como uma unidade entre cabo-verdianos, luso-africanos e africanos. Sabe-se que o golpe de Estado de 14 de novembro de 1980 liquidou esse sonho. Ficou o verso do hino nacional, escrito por Amílcar Cabral “nação forjada na luta” para significar a importância maior de que a nação deve preceder o nascimento do Estado, este teria de ser moldado pelo partido em convergência com o mundo rural guineense.

 

A caminho do Congresso de Cassacá, 1964, Amílcar Cabral na primeira fila

 

 

Logo no prefácio, Joshua Forrest sublinha a natureza do colonialismo português na Guiné: durante séculos, os portugueses selecionavam bases de comércio, de preferência na orla marítima, estabeleciam relações com os chefes locais para acordar os negócios da escravatura, pagavam taxas por tal fixação, tinham que cumular os chefes locais com presentes; o fim do tráfico negreiro implicou outro tipo de intervenção, a exploração agrícola, mas mantiveram-se os múltiplos conflitos com os chefes locais; a pacificação proporcionada pelas campanhas de Teixeira Pinto abriram espaço para acordos de paz com a lógica “dividir para reinar”; a Guiné não conheceu industrialização, os negócios, a partir da II Guerra Mundial, significavam arroz, amendoim, madeiras exóticas, curtumes e pouco mais. Criou-se uma administração colonial que recorria ao trabalho forçado e procurava cobrar impostos. Mas as infraestruturas só se realizavam com dinheiro metropolitano. Território incómodo pelo clima adverso, com uma presença de população branca mínima, em que o essencial da administração era ocupado por cabo-verdianos; a potência colonial publicitava na metrópole o fascinante do mosaico étnico, os guineenses atraíam o público que frequentava as exposições coloniais e mesmo a Exposição do Mundo Português. A potência colonial tinha uma presença precária e fugia aos conflitos com as sociedades rurais, Bissau era o centro nervoso dos negócios, dos símbolos da civilização, das instituições de educação e saúde e mesmo da cultura.


Filial do BNU em Bissau

 

 

Na primeira parte do seu trabalho, o autor elenca as sociedades pré-coloniais, designadamente os Balantas, Papéis, Manjacos, Felupes e Bijagós. Quando os portugueses arribaram à Costa da Guiné o império do Gabu decompunha-se e os Mandingas, então etnia profundamente guerreira, chegada ao território no século XIII, tinha um papel primordial. O autor destaca um território povoado por animistas (Felupe, Beafada, Brame-Papel, Balanta, Cobiana, Banhum, Baiote, Nalu, Mancanha e Bijagó). Os Mandingas terão ocupado parte do Gabu e estabeleceram uma federação de Estados satélites. Datam desta fase relações entre etnias e a prática de trocas comerciais entre as etnias de interior com as da costa. Tem o maior interesse a análise que o autor faz à evolução de todas estas etnias entrelaçando-as inclusivamente com a economia do Gabu.

Mais adiante, Forrest dá-nos um panorama das relações luso-africanas entre os séculos XV e XIX. Destaca a natureza contratual em que os mercadores e a administração colonial ficavam dependentes dos chefes locais. O quadro de exceção era dado pelos lançados, que contestavam os negócios da coroa e se lançavam por contra própria em negócios com os africanos. É-nos dado um quadro do funcionamento da Guiné das praças e presídios e da crescente importância do crioulo, a língua veicular, salientado o papel dos grumetes, a aceitação e rejeição dos missionários. O papel precário da administração e do poder político colonial é-nos revelado por Ziguinchor e Bolama. Perto de 1730, as populações do rio Casamansa pretenderam repudiar não só os comerciantes portugueses como todos os outros, foi necessária uma conjugação de forças que levaram a uma maior influência dos franceses. Os ingleses pretenderam Bolama, fizeram negócios com os chefes locais, maltrataram os representantes portugueses, a situação atenuou-se porque Honório Pereira Barreto interveio e reestabeleceu uma nova aliança com as chefias locais, e mais tarde a questão de Bolama foi dirimida pelo presidente Ulisses Grant, dos EUA, que deu razão aos argumentos portugueses. Mas Forrest escalpeliza a situação das outras praças e deixa claro que havia uma resistência ativa à volta das praças e dos presídios.

O período de 1840 a 1910 é ditado pela chegada de um novo poder local, os Fulas, que vão ocupar uma área vastíssima do antigo Kaabú, desfeitearam os Mandingas, submetendo-os, e obrigaram as sociedades rurais a novas migrações, por exemplo os Beafadas ocuparam Tombali e Quínara, o que implicou que outras etnias se aproximassem e fixassem no mar ou junto do mar. No final do século XIX, a potência colonial estabelecerá acordos com os Fulas, estes tinham feito alianças com os Beafadas e os Mandingas, o que contribuiu a prazo para o desenvolvimento do islamismo no território guineense.

Esta é a primeira parte do trabalho de Joshua Forrest, onde se relevam as identidades étnico-políticas e a sua origem, a fragilidade das relações luso-guineenses até ao final do século XIX e o modo como os reinos africanos reagiram quando foram confrontados com a crescente presença colonial portuguesa. Para o autor, este é o principal ingrediente que leva a que a Guiné-Bissau possua um cimento nacional assente nas sociedades rurais a despeito de um poder central ausente. O próprio PAIGC que montara uma estrutura orgânica para se fazer representar no interior do território como um partido-Estado, primou pela sua ausência, cedo se desmotivou e de um modo geral o mundo rural recebeu-o com indiferença, mesmo com o papel aterrorizante da segurança do Estado.

Vamos agora ver a resistência das etnias à progressiva presença portuguesa depois da Conferência de Berlim, o que aconteceu na campanha de pacificação de Teixeira Pinto e o equívoco que se instituiu na administração colonial de que controlava o território, isto quando era patente que as sociedades rurais mantiveram a sua organização à margem da presença portuguesa.

Estamos agora na segunda parte do ensaio, no auge da ocupação, um período que se situa entre 1890 e 1909, ou seja, o período anterior às campanhas do capitão Teixeira Pinto. Forrest recorda o envolvimento da administração nos problemas de Fuladu, a região do Gabu, onde vão estabelecer alianças com os Fulas, pondo e depondo chefes. Encetam-se campanhas militares para dominar povos de etnia Balanta, Papel, Manjaca e Oinca (o povo que habita a região do Oio) e os animistas Beafadas. A resistência será enorme: em Farim, Geba, Ziguinchor e Cacheu, até mesmo às portas de Bissau. O apaziguamento só foi possível graças a um sistema de alianças entre etnias. A potência colonial procedeu a um tipo de “africanização da guerra”, recorrendo aos Fulas como auxiliares e na casa dos milhares. Essa africanização estender-se-á a Mandingas e Beafadas, bem como a Grumetes.

 

Rua da Alfândega, Bissau, imagem de 1890

 

Ocupar e pacificar é praticamente uma causa perdida, não há meios. Para pagar aos auxiliares, a administração autoriza que estes saqueiem e pilhem as povoações onde entram. Neste período, pasme-se, ainda existe um relativo equilíbrio quanto a armamento, falamos de rifles e munições, adquiridas no comércio informal. Para o autor, o momento de viragem ocorrerá nos anos 1907-1908, há manifesta intenção política de que se ocupe o interior da Guiné. É o governador Oliveira Muzanty quem desencadeará as hostilidades, viverá o grande cerco de Bissau e será o vencedor da campanha do Geba, contra Infali Soncó. Forrest refere a identidade Oinca, ela é um bom exemplo da mistura étnica numa região em que mais recentemente tinham chegado os Balantas, os Mandingas islamizados, os Mandingas Soninké (animistas), vindos do Forreá e Gabu fugidos às guerras entre os Fulas e Beafadas. É um caso de relações interétnicas pacíficas e juntar-se-ão a esta complexidade os Balantas-Banaga.

A administração portuguesa não sabia compreender a noção de cooperação entre as etnias, entendeu-se que o melhor era aproveitar a proposta de um acordo de paz e deixar o Oio por conta própria. Porque o historial da tentativa de ocupação era penoso para Portugal. Em 1897, o tenente Graça Falcão comandou uma coluna militar contra os Mandingas Soninké, perante um assalto verdadeiramente devastador, os auxiliares Mandingas viraram-se contra Graça Falcão e foguearam-nos, Falcão retirou para Farim. Subsequentemente, Falcão recrutou mais auxiliares e soldados, pretendia combater os régulos Mamadu Paté Coiada e o Beafada Infali Soncó (este tinha sido reconhecido pelos portugueses em 1895 como chefe). Vive-se então um grande período de turbulência e o resultado foi um impasse. Breve, a presença portuguesa na região centro-norte da Guiné encontrava-se comprometida. Em 1902, durante o governo de Júdice Biker ocorre o já referido acordo de paz com os Oincas, a parte portuguesa não ficou bem no retrato, os Oincas prometeram pagar tributação, nunca cumpriram.

É então que tudo muda em 1907, com a revolta de Infali Soncó, impedindo a navegação do Geba, estabelecendo uma aliança com um número apreciável de régulos. Infali ofende um oficial da Armada, José Proença Fortes, Muzanty vem a Lisboa pedir meios, perder o Geba e o acesso ao Gabu era regressar à estaca zero. Vai então ocorrer uma expedição envolvendo canhoneiras munidas de metralhadoras, vieram tropas de metrópole e de Moçambique. Em 1908, Infali será derrotado e foge; os outros régulos propõem acordos de paz. No Norte da província, a situação não era muito feliz, os Djolas infligiram pesadas baixas aos portugueses, foi necessário partir de Lisboa uma coluna militar, com artilharia e até médico. Forrest observa que estas vitórias coloniais eram todas elas efémeras, mal partia o efetivo militar iniciava-se a contestação.

O grande cerco de Bissau foi uma rebelião séria, havia antecedentes, de tal modo que os portugueses se viram na contingência de trazer para Bissau auxiliares Beafadas e Fulas e tropas de Cabo Verde e Angola. À volta de Bissau, os régulos de Antula, Bandim e Intim, de Safim e Nhacra, tinham feito uma aliança para contrariar a presença portuguesa. Em maio de 1894, o governador Sousa Lage atacou Bandim e Intim, a cerca de dois quilómetros de Bissau. Em julho desse ano, foi a vez dos Papéis de Biombo, com apoio dos Balanta, atacarem Bissau, afundando três barcos. Garantir a segurança dos europeus dentro da fortaleza de Bissau era pouco crível. O dado curioso é que enquanto Oliveira Muzanty prepara uma severa reação no Geba, Bissau está em estado de sítio, as comunicações com Conacri tinham cessado. Os comerciantes estrangeiros, crucialmente interessados num estado de paz, estabeleceram conversações com os régulos, incitando-os a pagar multas pela rebelião, os Papéis recusaram. A reação portuguesa foi um bombardeamento das povoações Papéis à volta de Bissau. Forrest descreve com todo o detalhe estas danças e contradanças, pode avaliar-se como todo o governo de Oliveira Muzanty foi passado a combater e a resistir. Regressará a Portugal em janeiro de 1909 deixando a Guiné em estado de pura rebelião.

Joshua Forrest avalia a situação do seguinte modo. Trata-se de um período (1890 a 1909) de permanente contestação da autoridade colonial. Esta conta com a fidelidade dos Fulas e Beafadas. O Oio, com as suas enormes florestas, é uma região que vive uma quase independência. Só se pode entender o vigor desta resistência pelos acordos entre as diferentes etnias. Tudo se vai alterar com a chegada do capitão Teixeira Pinto, para o autor vamos entrar num período de terror e de pilhagem dos mercenários, com Abdul Indjai à frente.

Indo um pouco atrás, a I República foi confrontada com as repetidas sublevações das diferentes etnias guineenses, basta recordar o grau de intensidade a que estas se manifestaram entre 1890 e 1909. É neste momento que se decide, custe o que custar, a que o governo de Bolama estenda a sua autoridade fora das praças e presídios e que toda a região se torne segura, obediente e que os nativos paguem impostos. Foi encontrado um oficial experimentado, o capitão João Teixeira Pinto que, antes de mais, quis conhecer o mato rebelde. Encontrou em Vasco Calvet de Magalhães um aliado extraordinário, arranjou-lhe auxiliares fulas e apresentou-o ao mercenário senegalês Abdul Indjai, em Bafatá. Teixeira Pinto apercebeu-se que Indjai estava à frente de um grupo bem preparado de mercenários, quase todos eles equipados com espingardas de cinco tiros.

A campanha inicia-se no Oio, os povos locais mantinham-se intransigentes, recusando a tributação e não aceitando as ordens de Bissorã. Teixeira Pinto põe-se à frente dos seus auxiliares e confronta-se com os Balantas, de finais de março a princípios de Abril. Os Oincas atacam Bissorã e é nesse momento que entra em ação o corpo de mercenários de Abdul Indjai. São destruições sem conta, por onde passam incendeiam, pilham e trazem escravos. Em junho, o Norte do Oio rende-se. No fim do ano de 1913 foi morto um oficial português na região de Cacheu. Segue-se uma expedição violentíssima contra os Manjacos de Pelundo, Basserel e Churo, não faltarão destruições e massacres. Um pouco como um castelo de cartas, a resistência é sufocada ou apaziguada. E Teixeira Pinto, sentindo que o Oio, Cacheu e Mansoa já não oferecem luta, precipita-se sobre a península de Bissau, bombardeia Nhacra, entra em Antula, Intim e Bandim. Os principais fulcros da sublevação foram estancados, as operações na região do Cacheu, S. Domingos, Farim, Oio, Mansoa, Geba e Porto Gole trouxeram o compromisso de que as populações iriam pagar a tributação. O grande rei Manjaco de Basserel viu o seu território reduzido e os Papéis da região de Bissau viram igualmente a sua estrutura quebrada.

Mas graves problemas vão subsistir: em Canhambaque haverá rendição em 1918, mas será fogo de pouca dura; e a autonomia de Indjai, que passa a ser o senhor do Oio e do Cuor, salda-se num período de terror, que obrigará Bolama a decretar uma expedição sangrenta e que culminará com o exílio de Indjai em Cabo Verde. Ficarão bolsas de resistência que irão sendo temporariamente silenciadas. Graças à tributação, mesmo com altos e baixos, a administração entra no interior do território. Joshua Forrest insiste que as comunidades rurais aceitaram superficialmente acatar o poder colonial, não dispõem de capacidade perante o armamento do Exército e da armada portuguesa. Mantém-se uma resistência ao pagamento da tributação e as lutas em Canhambaque prolongar-se-ão em 1925 até terem o seu termo no período de 1935 a 1936. Haverá sublevação em Nhacra, em 1924, e o autor repertoria hostilidades em Bolama, Farim, Gabu e permanentes estados de revolta dos Balantas, como aconteceu em maio de 1944, em Catió.

 

Governador Velez Caroço, Guiné

 

Na década de 1930, houve que sufocar as resistências dos Felupes em Suzana-Jufunco. O capitão Velez Caroço entrou em Suzana em 1 de novembro de 1933, destruiu tudo e dois dias depois Jufunco. O tratamento dos resistentes é implacável. O autor observa que são décadas de uma palpável não-aceitação da soberania portuguesa. Mesmo os Fulas e os Beafadas nem sempre foram completamente fiéis à potência colonial, exigiam melhores pagamentos pela sua prestação ao lado das dezenas ou centenas de soldados regulares.

Também considerando o que se passou nas sociedades rurais durante estas décadas do século XX, o autor mostra casos de rejeição de chefes impostos pelas autoridades portuguesas, uma vincada manutenção das práticas animistas, caso dos Manjacos, e a manutenção de políticas de relação entre etnias para a vida em assentamentos. Ganhou normalidade a criação de povoações com diferentes etnias, mesmo mantendo as tabancas separadas: esta situação ganhou total visibilidade até ao início da luta armada, Manjacos, Beafadas, Fulas, Mandingas, Balantas, entre outros, aceitaram viver uns ao pé dos outros, cultivando a terra em áreas separadas. O autor mostra o caráter multiétnico da região do Cacheu e cita António Carreira que ali foi administrador, ele registou o bom relacionamento entre Papéis, Balantas, Cassangas, Banhuns e Brames, mas também os Manjacos aderiram a viver em comum com as outras etnias, não haverá mesmo conflito com os islamizados, as práticas animistas de uns e dos islamizados, por outro lado, serão acatadas. Mas tornou-se indiscutível que eram os grupos animistas que ofereciam mais resistência na Guiné, os Fulas e os Beafadas eram mais cooperantes com as autoridades coloniais e num campo de certa indecisão estavam os Mandingas.

Analisando a essência do Estado colonial, Joshua Forrest recorda que o grande atrito passava pelos impostos e pela inexistência de grandes grupos económicos, eram as comunidades rurais as detentoras da terra, eram elas que escolhiam os termos da exportação, nomeadamente o amendoim. O comércio transfronteiriço passava à margem do controlo alfandegário, os guineenses atravessavam a fronteira senegalesa, comerciavam com djilas ou faziam trabalho temporário tanto no Senegal como na Guiné Francesa.

O sistema administrativo era deficiente e corrupto, refere o autor. Na década de 1930, havia na Guiné um total de 359 funcionários, mas os próprios relatórios dos governadores referiam uma quase paralisia por falta de dinheiro, daí a pouca produtividade e a bancarrota moral do funcionalismo. O autor é minucioso na apresentação de dados sobre a recolha da tributação e o trabalho forçado. E diz que o Estado colonial era de uma enorme fraqueza, uma tal fragilidade que impedia uma presença constante nas sociedades rurais, deixando-as autónomas.

Estamos em vias de concluir e vale a pena recordar o itinerário da investigação, uma das mais poderosas e fundamentais de que dispõe a historiografia guineense, tanto do período colonial como do período da independência. O ponto de partida do investigador norte-americano é de que a fragilidade do Estado é um dado permanente daquele território, foram e são as sociedades rurais o esteio económico, social e cultural, sociedades com uma enorme capacidade volitiva para estabelecer acordos de interesse, por motivos de segurança ou de resistência, a despeito da sua autonomia, conseguindo preservar identidade no colonialismo e já na Guiné independente. A partir desta premissa maior, Joshua Forrest vai detetando sinais de que a sociedade civil rural multiétnica guineense assume compromissos de modo a que o poder maior, o do Estado, interfira o menos possível na sua autonomia, nas suas crenças, nos seus modos de comerciar, nas suas hierarquias. Os acontecimentos relacionados com a luta armada são eloquentes, diz o investigador, de que as sociedades rurais, umas cedo apoiaram o projeto do PAIGC, outras movimentaram-se em torno do projeto colonial e outras procuraram manter neutralidade. Mas tudo numa base interétnica, facilitado por um poder colonial frágil e pela pouca importância dada, nesta fase, à presença cabo-verdiana. O autor faz uma leitura de que os outros movimentos de libertação não tiveram qualquer popularidade porque ignoraram os compromissos interétnicos e não valorizaram os conceitos de autonomia das sociedades rurais.

 

Escola do PAIGC

 

Também para se entender a mobilização camponesa por parte do PAIGC é preciso ter em conta a memória sobre a brutalidade do processo de pacificação. Acresce que nas bases controladas pelo PAIGC, independentemente da intranquilidade das operações e dos bombardeamentos, as populações dispunham de acesso a produtos nos Armazéns do Povo, o que fazia sentir que era possível viver sem as compras feitas pelos representantes comerciais (faço aqui um comentário de desagrado ao modo como o autor fala das práticas de terror praticadas pelos portugueses durante a luta armada, omitindo despudoradamente as práticas cometidas pelo PAIGC desde o assassínio, a destruição de povoações, o rapto, a colocação de minas nas estradas e as flagelações e emboscadas que, pela sua natureza, não escolhiam brancos ou negros). O PAIGC teve maiores facilidades de recrutamento em regiões de resistência anticolonial, caso dos Balantas, Oincas, Beafadas e Papéis. O investigador também pondera o papel ambivalente dos régulos, e no caso de imposição das autoridades portuguesas deste ou daquele régulo a população local limitou-se a tolerar a escolha dos portugueses, em muitos casos encontrou outras alternativas. Incluindo entre os chefes Fulas e Mandingas, predominantemente ao lado das autoridades portuguesas mantiveram-se compromissos com outras etnias que aceitaram viver nessas tabancas maioritárias de islamizados. A fraqueza do poder dos régulos trouxe imensas fraturas que não ficaram esclarecidas depois da independência, inicialmente o PAIGC retirou poder aos régulos mas as populações locais logo reconfiguraram as suas hierarquias autónomas.

O legado pós-colonial aparece hoje bem estudado. Amílcar Cabral sonhara com um partido-Estado, a sua presença seria absoluta e contaria com uma ampla participação popular dada pelos comités de tabanca, em meio rural, e por comités de bairro, em áreas urbanas. Conquistada a independência, o PAIGC mostrou-se progressivamente menos influente, não possuía administração nem quadros políticos que merecessem a confiança absoluta das sociedades rurais. No fim dos anos 1970, a presença política nas sociedades rurais era uma sombra, ficara a memória de execuções públicas daqueles que tinham estado do lado do poder colonial, tudo se processara sem qualquer metodologia de reconciliação, a nova autoridade passou a ser temida sem ser respeitada. Joshua Forrest escalpeliza este sistema de participação e mostra como a identidade étnica se manteve preservada, apareceram novos régulos, reconfiguraram-se hierarquias, apareceram escolas islâmicas privadas, até a nova geração Balanta criou um movimento de combate aos valores sociais tradicionais, o Ki Yang-Yang, em Catió.

Tudo teve consequências entre um poder político autofágico, um partido-Estado que muito cedo abriu fissuras e se entregou a intrigas e corrupção, enfim, um governo fraco e inacessível às sociedades rurais que tiveram que encontrar caminhos próprios para a economia agrícola enquanto a clique do partido tinha acesso a financiamentos para criar pontas, as comunidades rurais passaram a vender os seus produtos a comerciantes privados, não tinham confiança nas lojas do Estado, nem nos seus representantes, o comércio informal foi tomando conta de tudo até que nos anos 1980 se começou a passar da estatização para a privatização. Nasceram novos problemas para os quais o Estado não encontrava resposta: criara-se uma administração elefante, ingovernável, sem apetrechos e sem dinheiro para a pagar; sonhara-se com uma industrialização acelerada, tudo acabou em cacos; não se encontrou solução para o problema dos combatentes da liberdade da pátria, houve promessas de cooperativas, mas tudo não passou de promessas e estes combatentes tornaram-se aos poucos numa reserva de descontentamento; e as Forças Armadas foram ganhando relevo e desafetando-se do poder político, contrariando todo o modelo de regulação política instituído por Amílcar Cabral. Gera-se um estado de instabilidade interminável que vai conduzir a um devastador conflito político-militar que segundo Joshua Forrest ditará uma nova vitória para a sociedade rural civil. Será nestas comunidades que os rebeldes capitaneados por Ansumane Mané encontrarão o maior apoio, os velhos combatentes pôr-se-ão ao caminho para escorraçar as tropas estrangeiras.


Imagem do complexo agroindustrial do Cumeré, inacabado, imagem do blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné, com a devida vénia

 

 

Em jeito de conclusão na análise do poder das populações rurais, o autor recorda que todo o século XX se pautou pela luta anticolonial, pela incapacidade do Estado em poder ter chegado a tais comunidades até que no final do século essas mesmas comunidades rurais repeliram tropas internacionais que se tinham prontificado a ajudar o ditador Nino Vieira. Temos, pois, um Estado frágil e uma formidável sociedade civil rural.


Régulo Bacari Soncó, do Cuor, foi sargento das milícias durante a guerra, as autoridades do PAIGC não obstaram a sua eleição

 


No termo da sua investigação, o autor faz uma impressiva apreciação e resumo das suas teses, apresenta-se em oposição aos trabalhos de Peter Karibe Mendy e René Pélissier quanto à natureza da luta étnica face ao poder colonial, ele considera sempre que a luta foi interétnica, sem prejuízo da identidade de cada etnia. A violência do Estado agravou a sua fragilidade, tanto na fase colonial como pós-colonial. E o que se passa nestas sociedades rurais está à vista de todos: refizeram-se regulados, melhorou a convivência interétnica, a ideia de chão marca a identidade de cada um dos cidadãos, as tradições não estão abaladas. O que se passa na Guiné-Bissau, observa o autor, é igualmente percetível nas linhagens domésticas de todos os Estados frágeis da África subsariana.

Trabalho controverso e obrigatório em toda e qualquer futura investigação. 


Mário Beja Santos






sábado, 16 de janeiro de 2021

José-Augusto França disserta sobre as nossas colónias e o pós-colonial

 



 




Introdução: O volume Pensamento e Escritos (Pós-)Coloniais, com coordenação de Maria João Castro, Edições ArTravel, 2017, resulta da Conferência Pensamento e Escritos (Pós) Coloniais que teve lugar no dia 20 de abril de 2016 na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa, e contém os textos de Adriano Moreira, Eduardo Lourenço, Helder Macedo e José-Augusto França, bem como a súmula do debate subsequente. Nomes incontornáveis nas áreas da política, ensaio, literatura e história da arte, os quatro autores pensaram e escreveram sobre o colonialismo português, triangulando a reflexão arte/política/império num testemunho singular de olhares que se cruzam e articulam entre si. O livro está disponível em formato digital no site https://research.unl.pt/ws/portalfiles/portal/5650759/Pensamento_e_Escritos_Pos_Coloniais.pdf.

Sem desprimor da elevada qualidade das comunicações dos outros três intelectuais, já que aqui o nosso propósito é fazer o levantamento da obra deste ilustre tomarense, damos exclusivamente assento à intervenção que ele fez, intitulada a propósito de colónias, e o mínimo que se pode dizer é que é um texto rico de memórias, belissimamente organizado e onde não faltam as questões angustiantes com angustiantes respostas sobre a natureza do nosso colonialismo e as tragédias que veio a suscitar decorrentes da descolonização.

Ele começa assim: “Em princípios de 1945 tomei o paquete África e, depois de ter adquirido um capacete em S. Tomé, desembarquei em Luanda. Melhor dizendo, ao largo da cidade que ainda não tinha cais, e acostei a bordo de um gasolina, rente às obras do porto, onde negros enfaixados de sarapilheira e luzentes de suor acarretavam pedras enormes. Assim foi para um jovem saído de Histórico-Filosóficas”. Conta onde se aboletou e as viagens que fez às fazendas de café do Golungo e o trabalho forçado que pôde ver, e da qual resultou o seu romance Natureza Morta, de que a censura não gostou. Da trama deste romance já aqui se falou, é indubitavelmente uma das obras de ficção de José-Augusto França que importa reter. E fala da sua experiência de historiador onde a vivência colonial é abordada. Escreveu uma história de Lisboa física e moral, aludiu a uma Praça dos Escravos, ribeirinha, nas urbanizações manuelinas. “Esses escravos, trazidos de África, enxameavam Lisboa, conforme testemunhos de viajantes, e sabe-se que podiam dar assassinos a soldo, pela Lisboa barroca dentro. Lamento não saber, por falta de estudos apropriados, a percentagem de mão-de-obra negra na reconstrução de Lisboa, quando foi caso disso, após o Terramoto; mas será importante sabê-lo (…) A pintura não foi aberta a modelos negros e a literatura também não e, em 1868, o Mário, de Silva Gaio, levando o seu herói a África, em simpática deportação política, põe pela primeira vez em cena (notei-o, escrevendo sobre o Romantismo cem anos depois) um negro ‘ser estúpido, selvagem, colocado no último degrau da escala humana’, que se dedica ao herói branco, ‘a luz do espírito que descia sobre o negro’ (…)”. E progride a narrativa falando de livros, da Associação Promotora da Civilização em África, em Sá da Bandeira, no aparecimento do Banco Nacional Ultramarino, na Sociedade de Geografia de Lisboa, a Casa Africana, que tinha a escultura de um preto à porta (…) Em 1998, dei-me a examinar o ano então secularmente comemorado, foi o Centenário da Índia de Vasco da Gama. ‘A África só serviu para nos dar desgostos’ e só era ‘boa para vender’, lia-se na Ilustre Casa de Ramirez, e opinião do ‘vendamo-las’, de Ramalho Ortigão”.

José-Augusto França passa em revista as suas reminiscências imperiais desde 1940, quando andou pela Exposição do Mundo Português, onde houve uma notável realização artística, lembra Alves dos Reis e o Banco Angola e Metrópole, a I Conferência Imperial de 1933, a Carta Orgânica do Império Colonial, a Exposição Colonial do Porto, a Agência Geral das Colónias e a Escola Superior Colonial. Outras recordações lhe ocorrem: um cruzeiro de férias para universitários em 1936, a criação da Junta de Investigações Ultramarinas, a Exposição Histórica da Ocupação no século XIX, o Congresso Histórico da Expansão dos Portugueses no Mundo, Carmona a visitar colónias, Marcello Caetano ministro das mesmas. E depois a criação da ONU, a passagem de colónias a províncias ultramarinas. E seguem-se as experiências do pós-25 de Abril, quando dirigia o Centro Cultural da Fundação Gulbenkian em Paris, ali se realizou um colóquio sobre as literaturas africanas de língua portuguesa e a tentativa de fundar em Luanda uma secção da AICA (Associação Internacional dos Críticos de Arte). Lembrou o cinema de feição colonial, caso de O Feitiço do Império, de Lopes Ribeiro, de 1939, uma Nova Lusitânia, o falhado Chaimite, de Brum do Canto, e lembrou a chegada de uma literatura pós-colonial, caso do romance A Costa dos Murmúrios de Lídia Jorge, mas fez questão de não esquecer as obras literárias de Henrique Galvão, Castro Soromenho e Luandino Vieira. Isto para já não pôr para trás das costas o racismo, e faz perguntas, em jeito de despedida: “Racismo, havê-lo-á em Portugal? Teremos, nós, também, fantasmas no armário? Alguém poderá ter opinião, estaremos nós presos, ainda, e sem anacrónicos arrependimentos que têm feito moda, nas malhas que o império tece – já não havendo máquinas domésticas para as apanhar?”. É esta a comunicação do José-Augusto França, mas relembra-se ao leitor que os outros três intervenientes fizeram igualmente intervenções dignas de nota.

Tanto quanto se sabe, foi esta a última incursão de José-Augusto França sobre os temas do colonialismo e da descolonização.



Cozinha do Museu do Azulejo




Mário Beja Santos