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sexta-feira, 8 de novembro de 2024

A Tale of Two Cities.

 


Foram tempos magníficos, foram tempos tenebrosos, foi a era da sabedoria, foi a era da estultícia, foi a época das convicções, foi a época da incredulidade, foi a idade da luz, foi a idade das trevas, foi a Primavera da esperança, foi o Inverno do desespero, tínhamos tudo diante de nós,  nada tínhamos diante de nós, íamos todos direitos para o Céu, íamos todos direitos em sentido contrário – em suma, aquela época assemelhava-se tanto à presente que algumas das suas eminências mais exuberantes insistiam que apenas a poderíamos adjectivar, para o bem ou para o mal, lançando mão do grau superlativo.


Charles Dickens, História em Duas Cidades, 1859




   

sexta-feira, 26 de julho de 2024

As cinquenta tonalidades dos elefantes olímpicos

 

As cinquenta tonalidades dos elefantes olímpicos


A publicação em Portugal do livro Jogos de Poder, do investigador e ex-atleta olímpico Jules Boykoff, é apenas o mais recente capítulo de uma longa lista de denúncias sobre o problemático universo das Olimpíadas, nomeadamente ao nível dos muitos “elefantes brancos” deixados em herança às cidades organizadoras. Mas se agora tendemos – e bem! – a olhar com desconfiança o fenómeno dos Jogos, mais importante se torna sublinhar que nem só da cor da neve se fez este reino de paquidermes.

 



Se o caldeirão olímpico falasse ou, mais bem dito, cantasse, à semelhança dos seus primos saídos das histórias de bruxas, talvez se sentisse tentado a recorrer, no momento em que a tocha se aproxima, ao Dá-me Lume de Jorge Palma, marcando assim, com um toque de humor, o ponto alto da cerimónia de abertura, ela própria, por sua vez, muito provavelmente o ponto alto de qualquer edição dos Jogos Olímpicos. Sendo Paris a cidade anfitriã da próxima, seria certamente um bom momento para os largos milhares de portugueses que, misturados nas quinhentas mil pessoas previstas nos números da organização, irão assistir, ao vivo, à grande inovação desta XXXIII Olimpíada: a transferência, pela primeira vez, do interior de um estádio para um genuíno ambiente urbano, da sempre espectacular inauguração do evento.

Conjugar esta surpreendente decisão – tomada sob o signo da abertura popular e da facilidade de acesso, e considerada tão relevante que foi dada a conhecer ao mundo através do Presidente Macron lui-même – com a da não construção de um estádio olímpico de raiz – optando-se, ao invés, por utilizar o Stade de France, um equipamento em funcionamento regular desde o Campeonato do Mundo de Futebol de 1998 –, deu origem a um coro de elogios, proferidos dentro e fora do Hexágono, que revelou bem o cansaço de largas parcelas da sociedade (e das respectivas carteiras) com a multiplicação de “elefantes brancos”, uma espécie que nunca correu qualquer risco de extinção desde que se mostrou ao mundo (eventualmente na forma de Torre de Babel) e que costuma encontrar na ecologia dos grandes eventos condições óptimas de reprodução.

De facto, depois de décadas a ler notícias e a ver imagens de instalações olímpicas abandonadas, das piscinas extraordinárias e caríssimas cuja água nem ao Natal seguinte chega até aos pavilhões outrora resplandecentes engolidos pelo mato logo na primeira Primavera, não é de estranhar que os contribuintes – e mesmo quem não contribui – fiquem aliviados por saber que a organização de uns Jogos, preocupada com o futuro e consciente das experiências passadas, pretende evitar “gigantismos” e aposta na contenção dos egos e dos custos que os costumam suportar. Quando essa filosofia de sobriedade mostra a sua força em Paris, uma cidade normalmente obcecada com a grandeur, junta-se ao alívio a surpresa: se até a capital de Luís XIV, Napoleão, Charles de Gaulle e Mitterrand, sede de um vasto Clube das Inutilidades Magníficas com sócios do jaez do Grande Arche de La Défense (300 mil toneladas de vaidade em forma de betão, vidro e mármore), começa a perceber as vicissitudes financeiras e ambientais da pompa, então há esperança para a tão debatida sustentabilidade do mundo.

Posto isto, que não é pouco e muito menos irrelevante, talvez seja igualmente justo sublinhar, numa subjectiva e discutível tentativa de separar o trigo do joio, que nem todos os milhões, ou biliões, quiçá triliões gastos em 128 anos e 32 edições das Olimpíadas modernas tomaram a forma de escandaloso desperdício, um pouco como se os estádios, sem excepção, aproveitando-se do seu design, tivessem assumido o papel de gigantes retretes onde lunáticos e perdulários decisores despejaram sem tino nem proveito camiões e camiões de dinheiro. Sobre esses casos, quase incontáveis, não há falta de relatos e de falatório. Quanto aos outros, os que honraram a despesa com uma obra marcante, muitas vezes revolucionária e ainda em usufruto, têm sido mais raras as crónicas, pelo menos nos últimos anos, uma realidade algo injusta que merece reparação.

 

776 a.C.



A chama que irá “dar lume” ao caldeirão parisiense, e que se encontra neste momento na parte final de uma viagem de 101 dias e 10 000 “passagens de testemunho”, foi acesa no passado mês de Abril em Olympia, a cidade grega localizada no Peloponeso onde toda esta alegre confusão teve início. Cumprindo a lei de ferro dos eventos, chegámos, entretanto, às três dezenas de modalidades e dez milhares de atletas, mas nesse longínquo ano de 776 a.C., quando ocorreu a primeira edição, tudo se resumia a uma corrida a pé entre duas pedras, afastadas entre elas, ao que parece, 192 metros. A essa distância se deu o nome de stadion, palavra que foi em simultâneo utilizada – não sabemos se por falta de inspiração, preguiça ou simplificação comunicacional – para baptizar a prova em si e também a pista onde foi disputada, uma construção simples que ainda lá se encontra, ao lado de várias outras antiguidades em ruínas (nomeadamente o Templo de Zeus, casa da desaparecida estátua esculpida por Fídias, uma das sete maravilhas do mundo), todas obviamente inscritas na lista de Património Mundial da UNESCO.

Pai de todos os estádios, incluindo do Municipal de Braga, cujo custo total de 192 milhões de euros poderá ter sido uma homenagem à unidade de medida acima referida, o stadion de Olympia foi utilizado regularmente até 393 d.C., ano em que o Imperador Teodósio, entre outras medidas de combate ao paganismo, decretou o fim da versão 1.0 dos Jogos Olímpicos. Se estes onze séculos de perseverança dos materiais seriam já um excelente indicador ao nível da amortização do investimento na infra-estrutura desportiva, perdoe-se o jargão económico, melhor ficaram os rácios quando os responsáveis por Atenas 2004 decidiram lá fazer a prova de lançamento do peso, aumentando a vida útil do recinto para uns invejáveis 2780 anos, marca apenas superada pela vida útil do defesa central Képler Laveran Lima Ferreira, mais conhecido por Pepe. A responsabilidade pelo complicado legado desses J.O. na capital grega, que cumprem agora o 20.º aniversário, terá, pois, de ser procurada noutro lugar, a começar talvez na cobertura de 256 milhões de euros idealizada por Santiago Calatrava para o estádio principal, e que se encontra, neste momento, interdita por risco de colapso.

Não tendo sorte com as construções recentes, a Grécia, numa daquelas ironias que talvez lá tenham sido representadas teatralmente pela primeira vez, parece ter boa fortuna com as antigas. É que além do complexo de Olympia, algo deslocado neste texto por não estar directamente relacionado com as Olimpíadas da era moderna, alberga também nas suas fronteiras o Panatenaico, um estádio que nasceu em Atenas ainda na Antiguidade, sendo depois progressivamente abandonado até à ruína, com o mármore que o compunha a ser roubado e utilizado noutras obras por empreiteiros dinâmicos e com espírito de iniciativa, espécie rara mas que de vez em quando aparece, e vendo algumas das suas maravilhas a emigrarem, como por exemplo o Trono de Biel, exposto actualmente no Museu Britânico. Entretanto, após extensos trabalhos arqueológicos desenvolvidos durante o séc. XIX, o Panatenaico é totalmente reconstruído com o famoso e nobilíssimo mármore branco do Monte Pentélico, o mesmo que faz brilhar o Pártenon à luz do tórrido sol grego, numa operação milionária patrocinada por homens de negócios de bolsos fundos que tinha em vista os J.O. de 1896, ou seja, os primeiros da modernidade. Agora que caminhamos para os trigésimos terceiros, parece justo reconhecer, a título de balanço, que o Kallimarmaro (“beleza em mármore”), nome pelo qual também é conhecido, se portou bem, aguentando décadas de eventos variados, inspirando, com o seu misterioso túnel de acesso e com a sua simplicidade clássica em forma de ferradura, vários arquitectos, incluindo alguns pouco recomendáveis como o nazi Speer, e, aspecto importante, sem nunca ter tido qualquer problema com a cobertura, eventualmente pela prosaica razão de não ter nenhuma.

 

 


(Estádio Panatenaico)

 

 

Oito anos depois, em St. Louis, Missouri, continuaram bem tramados os carecas, sujeitos aos escaldões pela igual falta de um tecto. Por outro lado, desviando a atenção para o que estava debaixo deles, puderam desfrutar dos Jogos em grande segurança estrutural, uma vez que as bancadas foram construídas com a então inovadora tecnologia do betão armado, nessa época em fase de desenvolvimento. A aposta, imbuída de pioneirismo, foi ganha, e ainda hoje lá nos podemos sentar para assistir a jogos ou a provas de atletismo, o mesmo acontecendo com o vizinho Francis Gymnasium, um espaço que, além da prática desportiva, costuma ser escolhido para acolher os debates entre candidatos a Presidente dos Estados Unidos, sempre excelentes oportunidades para se trocarem juízos sobre bons e maus investimentos.

Os mais atentos terão reparado que Paris 1900 não foi referido, algo que acontecerá também com Londres 1908 e com mais uma ou outra edição, pois em não havendo obra marcante ou duradoura, ou, quem sabe, havendo ignorância do signatário sobre obra que afinal até tenha existido, delas se guardará de Conrado o prudente silêncio. Não é porém o caso dos Jogos de Estocolmo (1912), Paris (1924) e Amesterdão (1928), todos merecedores de alguma atenção, quer pela perenidade geral dos estádios que os acolheram, os três ainda no activo, quer por algumas particularidades dignas de nota: o recinto sueco, sendo dos mais pequenos de sempre, foi um dos que mais recordes do mundo viu serem batidos na história do atletismo, numa excelente demonstração da máxima “less is more”; o francês, construído sob uma apertadíssima restrição financeira, conseguiu proteger os carecas do sol com uma desafiante cobertura de ferro suportada por apoios mínimos, demonstrando dotes de engenharia (civil e financeira) que podem ainda ser apreciados, uma vez que o estádio, exactamente 100 anos depois, será um dos palcos de Paris 2024; o holandês (ou será paísbaixês?), esse, saído do estirador de Jan Wils, arquitecto fundador, na companhia de Mondrian, van Doesburg e Gerrit Rietveld, do grupo De Stijl, seria, só pelo génio do criador, um lugar a ter em conta – não por ser um exemplo desse movimento marcado pela ortogonalidade e forma cúbica revestida a cores primárias, mas por representar a “outra vida” de Wils, ligada ao expressionismo do tijolo vermelho característico da “Escola de Amesterdão”. Ademais, pormenor decisivo, foi dele a ideia de fazer renascer a chama olímpica da antiguidade grega, tendo construído uma elegante e grandiosa torre para servir de “castiçal”, embelezando ainda mais um estádio já de si lindíssimo – que o digam os benfiquistas, que de lá trouxeram, numa época pré-maldição, a sua segunda taça de campeões europeus.

 



(Estádio Olímpico de Amesterdão)

 

 

Mania das grandezas

E eis-nos assim chegados à década de 30 e aos dois colossos que a marcaram, um deles sob o signo do espanto e optimismo, por ter sido possível ao engenho humano de uma nação construir tal poderosa maravilha, o outro sob o signo do espanto e pessimismo, por ter sido possível ao engenho humano de uma nação construir tal poderosa maravilha. A diferença? O gigantismo de Los Angeles 1932 era patrocinado por uma democracia liberal consolidada, com as suas virtudes e defeitos bem conhecidos de todo o mundo; o outro, de Berlim 1936, era um projecto de poder de um sistema político misterioso instituído três anos antes, um regime que se apoiava numa ideologia nazista ainda pouco transparente quanto às suas verdadeiras intenções, mas da qual o que se ia sabendo não augurava nada de bom.

À parte isso, o assombro. Cem mil lugares – uma escala nunca vista – em ambos os casos; noventa portões de acesso no de L.A., permitindo uma evacuação total em pouco mais de 15 minutos; uma capacidade logística no de Berlim que garantia conseguir enchê-lo, compra dos bilhetes incluída, enquanto o Diabo – ou o próprio Hitler – esfregava um olho. Em relação à durabilidade, nada parece haver a apontar: o recinto californiano, que recebeu Carlos Lopes no final dos 42.195 metros do nosso contentamento, já acolheu as Olimpíadas de 1932, as de 1984, e prepara-se agora para uma nova aventura em 2028, colocando a fasquia das reutilizações num nível difícil de ultrapassar; o intimidante palco germânico, por seu lado, não durará certamente, à semelhança do III Reich, os mil anos previstos pelos megalómanos nazis, mas lá continua de pedra (muita) e cal (pouca), após várias renovações, muitas provas de atletismo, nomeadamente um campeonato do mundo, e centenas de jogos de futebol, incluindo dois mundiais da FIFA, um deles, em 2006, com direito a uma histórica cabeçada de Zidane.

 


(Parque Olímpico de Berlim)

 

Desviando-nos substancialmente da linha do tempo, num salto importante para perceber um contraste revelador, importa falar sem delongas de Munique 72, os segundos Jogos realizados na Alemanha, tristemente célebres pelo atentado terrorista contra a delegação de Israel, mas arquitectonicamente felizes pelo sublime trabalho de Günter Behnisch, Frei Otto (que era também engenheiro) e Günther Grzimek, paisagista responsável por implantar na capital da Baviera um parque exemplificativo do seu conceito de “verde democrático”. Construído especificamente para servir de antítese à experiência nacional-socialista de 1936 – projectar poder através de formas neoclássicas de rigorosa geometria e de pesadas placas de pedra aparelhada –, o Parque Olímpico de Munique é um prodígio de leveza e de abertura, e o estádio nele plantado (é a palavra certa, pois está significativamente enterrado no terreno), com a sua delicada cobertura ondulada, é uma obra tão bem feita que consegue até disfarçar a tremenda complexidade técnica e consequente inovação estrutural que permitiram a sua existência. Imitando uma teia de aranha, caso as aranhas fossem do tamanho de dinossauros, a “tenda”, que cobre uma larga parcela dos equipamentos desportivos, precisou de 436 km de cabos de aço para garantir a própria sobrevivência contra ventos e nevões, uma membrana protectora de milhares de metros quadrados de um arrojo poucas vezes visto, embora nada esmagador por estar sabiamente harmonizado com colinas, lagos e árvores. O que esmagou, claro, foi o custo da brincadeira, sacos carregados com o poderoso marco alemão a caminho do bolso dos empreiteiros que ergueram a canópia, movimentaram milhões de metros cúbicos de terra e executaram as fundações com quase 40 metros de profundidade, e dos muitos engenheiros, técnicos e cientistas que tudo isto possibilitaram a partir de laboratórios e centros de investigação. Em sua defesa, porém, diga-se que na História da Humanidade em geral, e na dos J.O. em particular, já se gastou bem mais em coisas bem menos fabulosas.

 



(Parque Olímpico de Munique)

 

 

O desastre

Sem nos afastarmos muito, cronologicamente falando, basta avançar uma edição, para Montreal 76, rumo a um dos maiores desastres financeiros – e não só – de sempre. Os admiradores do projecto, tentando equilibrar a balança, não deixarão de referir a monumental torre inclinada, responsável por gerir a abertura e fecho da cobertura do estádio, e, sem dúvida, um dos símbolos mais visíveis e reconhecíveis da cidade actualmente. Impressiona, de facto, mas não tanto como as fotografias da cerimónia de abertura, onde no lugar da torre se veem apenas gruas e pontas de varões de aço, símbolos inconfundíveis de obras não terminadas. A dita-cuja chegou mais tarde, mais concretamente em 1988, com um ligeiro atraso de três Olimpíadas, e continuou a ser paga até 2006, com um ligeiro desvio orçamental de 1300%. Valeu a pena, todavia, pois ainda se conseguiu abrir e fechar o tal tecto umas dezenas de vezes, antes de se tornarem tão evidentes os problemas que não restou outra opção senão trocá-lo por outro, solução que durou até o tal outro, por sua vez, começar também a dar problemas, e assim sucessivamente, numa novela que, 48 anos volvidos, continua em exibição, montada num argumento que incluiu corrupção, caos no estaleiro, greves infindáveis, atletas olímpicos misturados com trolhas que tentavam desesperadamente “segurar as pontas”, desmoronamentos de pedaços de betão com várias toneladas, feridos, processos em tribunal, incêndios, falhas estruturais, e a quase falência do município. Com a cidade ainda dividida entre aqueles, pessimistas, cujo derradeiro sonho é a demolição do paquiderme, e os restantes, optimistas, que acreditam que tudo acabará por correr bem se continuarem, ad aeternum, a regá-lo com dinheiro, é provável sermos ainda presenteados, durante muito tempo, com a única herança evidente e indiscutível destes Jogos, a saber: as anedotas.

 


(Estádio Olímpico de Montreal com uma cobertura)

 



(Estádio Olímpico de Montreal com outra cobertura, em direcção a mais uma, e assim sucessivamente)

 

 

Comparadas com Montreal, as restantes barracadas olímpicas, por maiores que tenham sido, parecem sempre diminutas e aceitáveis, no mínimo passíveis de contraditório. Por isso, e também pela promessa inicial de concentrarmos a atenção nas edições que equilibraram minimamente os custos com um legado decente, passemos ao de leve pelo património de Moscovo 80 (o estádio Lenine, que entretanto foi rebaptizado como Luzhniki, conta apenas com a fachada original, pois tudo o resto foi demolido e reconstruído para o FIFA 2018; e sendo essa fachada, em estilo neoclássico, um derivado fora de prazo do Olímpico de Berlim, não teria vindo mal nenhum ao mundo se tivessem deitado tudo abaixo); e de Seoul 88 (uma obra interessante, de um arquitecto interessante, onde nada de interessante se passou desde a cerimónia de encerramento); e de Atlanta 96 (um estádio sem interesse nenhum, substituído logo em 1997 por outro, também sem interesse nenhum, e entretanto por um terceiro – sim, adivinharam – igualmente desinteressante; como todas estas metamorfoses foram planeadas e orçamentadas por americanos, é provável que o legado financeiro não tenha sido mau, mas o patrimonial, esse, não existe); e de Londres 2012 (é verdade que o neofuturista Centro Aquático da arquitecta Zaha Hadid, estrela mundial da arte do estirador, primeira mulher a receber o Pritzker, “rainha da curva” e de muitas outras designações elogiosas, é, de facto, um magnífico exemplar da “WOW! architecture”, e talvez seja até, como referiu à época o Presidente do Comité Olímpico Internacional (COI), uma obra-prima, mas os orçamentistas conseguiram meter tanta água como as próprias piscinas, e a brincadeira derrapou até aos 300 milhões de euros, um valor que só se justificaria se os atletas tivessem exigido nadar em champanhe francês); e do Rio 2016 (“OLIM(PIADA)”, escreveu um brasileiro anónimo numa vedação do Parque Olímpico, dando à luz um resumo provavelmente mais certeiro do que injusto); e, por último, de Tóquio 2020, um caso que se compreende melhor a partir da anterior edição nipónica, quase seis décadas antes e na mesma cidade: os Jogos de 1964.

 


(Centro Aquático de Londres)

 


Não parecem existir grandes dúvidas de que a boa vontade de cidadãos e contribuintes em relação à organização de Olimpíadas tem vindo a diminuir, uma disposição mental que provoca a redução do número de cidades candidatas e a multiplicação de acções de protesto contra quem se chega à frente. O escrutínio cada vez mais intenso e profissional, responsável por boa parte deste estado de espírito, levanta, contudo, problemas de comparação entre iniciativas recentes e iniciativas antigas, quando o exame das relações de custo-benefício por parte de jornalistas, investigadores ou activistas não era tão desconfiado e minucioso.

Salta, porém, à vista, mesmo aceitando que os japoneses de 1964 gostavam tanto de desperdiçar dinheiro como os seus descendentes de 2020, que antigamente o desperdiçavam melhor. A Arena Budokan e, principalmente, o Pavilhão Yoyogi, da autoria de Kenzo Tange, ambos intensivamente utilizados durante os últimos 60 anos, são obras emblemáticas da arquitectura do Japão, não sendo exagero atribuir à segunda o estatuto de prodígio estético e estrutural. Tange era um conhecedor profundo da tradição japonesa e também um entusiasta do Modernismo, pelo que abordou o equipamento olímpico com as mais avançadas tecnologias construtivas disponíveis (que lhe permitiram erguer o maior espaço coberto sem pilares jamais visto), inspirando-se todavia nos templos xintoístas para desenhar as suas linhas onduladas e arrojadíssimas coberturas, quase uma “pele” suspensa numa rede de cabos de aço.

 

(Pavilhão Yoyogi, Tóquio)

 

 

Também em Roma, quatro anos antes, e na Cidade do México, quatro anos depois, foi o mundo presenteado com vasta perícia e refinado gosto. Nas Américas, sob a orientação de Augusto Pérez Palacios, um arquitecto atento à importância de valorizar os edifícios através da articulação entre as várias disciplinas das belas-artes, o Estádio Olímpico em forma de cratera, precursor da pista de atletismo em tartan, espantou tanto o povo como as elites, homenageando a cultura e a geologia locais com a utilização de rochas vulcânicas como material de construção, numa inspirada referência que transformou os atletas em personagens quase literais do romance Debaixo do Vulcão de Malcolm Lowry. A cereja em cima do bolo, colocada pelo volumoso Diego Rivera, um artista que sem dúvida gostava de doces, consistiu num extraordinário relevo cuja imponente dimensão só não é maior devido à interrupção dos trabalhos por morte do muralista. Integrado na principal cidade universitária mexicana, o estádio, em conjunto com muitas outras obras do campus, foi devidamente reconhecido pela UNESCO, no ano de 2007, como Património da Humanidade. Quanto aos jogos romanos de 1960, destacou-se Pier Luigi Nervi com o seu domínio absoluto da arte do betão armado. O Palazzetto dello Sport não é o único filho olímpico do inovador e patenteado “Sistema Nervi”, mas é possivelmente o mais elegante, com a sua cúpula em infinitos losangos, assinatura de autor admirada e reconhecida em qualquer faculdade de engenharia ou arquitectura do mundo. Um Panteão do séc. XX, construído em tempo recorde graças ao revolucionário método de pré-fabricação, e com um custo total de 263 milhões de liras, mais ou menos o preço actual de um gelado numa esplanada da Piazza Navona. A vizinhança, essa, é complicada, constituída pelos edifícios desportivos que Enrico Del Debbio, Luigi Moretti e Costantino Costantini, sob as ordens de Mussolini, projectaram no Foro Italico para servir a candidatura da capital italiana à organização dos J.O. de 1940 (que nunca chegaram a ocorrer por causa da II Guerra Mundial). Utilizados 20 anos depois, a complicação não deriva da falta de beleza, grandeza ou funcionalidade, mas sim, pelo contrário, do excesso dessas características num ambiente de manifesta estética fascista. Perante as estátuas do Stadio dei Marmi ou a piscina coberta do Palazzo delle Terme, entre toneladas de carrara e travertino, não há maneira de escapar ao fascinating fascism, título do ensaio que Susan Sontag, pensando em artistas como Leni Riefenstahl, escreveu em 1975.

 

 


(Estádio Olímpico Universitário, Cidade do México)

 


(Palazzetto dello Sport, Roma)

 


(Stadio dei Marmi, Roma)

 


(Palazzo delle Terme, Roma)

 

 

Os Jogos da Austeridade

Traumatizados que estamos com as derivas perdulárias, em alguns casos na ordem das dezenas de milhares de milhões de dólares, facilmente esquecemos que estas, embora caracterizem boa parte dos 128 anos de Olimpíadas modernas, não os representam na totalidade. Em Helsínquia 52, por exemplo, parecem ter tido lugar uns Jogos modestos e eficientes, com o Estado a assegurar o financiamento de infra-estruturas de longo prazo (vias rápidas, ferrovias, um novo aeroporto, tudo ainda em pleno funcionamento) e a receita dos bilhetes e da publicidade a ser encaminhada para as restantes despesas. E o legado patrimonial, bem amparado na solidez intemporal do melhor funcionalismo vanguardista nórdico, está ainda de óptima saúde, não obstante a esbelta torre do Estádio Olímpico, durante décadas um símbolo da Finlândia independente e moderna, poder agora ser vista, à luz dos irritantes novos códigos de conduta, como uma manifestação de “masculinidade tóxica”.

 



 

Já em 1956, pelo contrário, a “toxicidade” dos machos tinha amplo apoio e carinho popular, razão pela qual um jogo de pólo aquático entre a invasora URSS e a invadida Hungria ficou para sempre na memória colectiva, comentado com respeito e admiração apesar de ter consistido numa manifestação de orgulho ferido vingado ao soco e ao pontapé. O “ringue” onde tudo se passou, e que era afinal uma piscina radicalmente original ao nível estético e estrutural, ainda lá está, reconhecido pelos australianos como uma herança valiosa das Olimpíadas de Melbourne, um equipamento em forma de pirâmide invertida cuja firmeza ficou definitivamente provada no tumulto com que os milhares de adeptos nas bancadas responderam ao “banho de sangue” proporcionado por soviéticos e húngaros. Ademais, construído no espírito do minimalismo de materiais, não pesou muito no bolso dos contribuintes, tendo sido mais caro, contudo, do que o somatório financeiro de todas as instalações desportivas inauguradas em Londres no ano de 1948: exactamente zero libras.

 


(Centro Aquático de Melbourne)

 

A cidade inglesa, na ressaca da guerra, optou por não construir nada de raiz, limitando-se a adaptar o edificado já existente, às vezes com um espírito de desenrascanço bem português, como quando foi colocada uma plataforma de madeira na piscina, que tinha 60 metros de comprimento, conseguindo assim encurtá-la para os 50 metros regulamentares. Não satisfeitos, assim que as provas de natação terminaram, com nítido domínio americano, encaixaram mais uns estrados em cima da água e deram início à competição de boxe, não à maneira do que viria a ser informalmente praticado em 1956 no centro aquático de Melbourne, mas rigorosamente de acordo com o previsto nos códigos desportivos.

Para a história ficou o epíteto de “Jogos da Austeridade” e Wembley, inaugurado em 1923 como Estádio do Império, serviu como sede do evento, tendo ainda aguentado mais meio século antes de se ver substituído por um dos expoentes da megalomania contemporânea, o The New Wembley, um dos campos da bola mais caros de sempre, com um custo de construção que daria para levantar do chão 10 estádios da Luz, e que ainda assim parece barato quando comparado com o rei do esbanjamento, o americano SoFi Stadium, orçamentado no valor de 35 (trinta-e-cinco!) recintos iguais ao utilizado pelo Benfica. Em princípio vamos vê-lo em L.A. 2028, mas, como se trata de um investimento privado, talvez não dê origem a demasiada contestação. Semelhante sossego também se sentiu em Pequim 2008, não por falta de estrondoso dispêndio público, mas eventualmente por falta de paciência das autoridades para níveis de ruído acima dos 30 decibéis de um murmúrio. O Estádio “Ninho de Pássaro”, esse, custou menos de 500 milhões de dólares, o que até parece pouco para essa soberba floresta de aço saída da imaginação da prestigiada dupla Herzog & de Meuron com a consultoria do artista Ai Weiwei, entretanto caído em desgraça junto do governo chinês, arriscando virar Wei AiAi, e que lamenta agora ter participado no projecto, actualmente um “elefante branco” com pouca utilidade prática, embora tão bonito e espectacular que se transformou numa atracção turística capaz de mobilizar milhões de visitantes por ano.

Foi talvez por falta de amor a essa espécie animal da família dos esbanjadoris maximus que a organização de Barcelona 92, um projecto maturado durante mais de meio século, aplicou todos os seus neurónios no desenvolvimento de um modelo diferente, desde essa altura utilizado pelo COI para responder aos múltiplos ataques de que é alvo por parte dos inúmeros críticos dos megaeventos em geral e das operações olímpicas em particular. Há certamente algum exagero nos elogios dirigidos à capital catalã, que também recorreu ao habitual esquema da suborçamentação prévia seguida de derrapagens póstumas, bem como a uma distribuição não equitativa dos benefícios do acontecimento. Ainda assim, tudo pesado e medido, parece ter sido de facto uma oportunidade devidamente aproveitada para melhorar a cidade no seu conjunto, da “criação” de uma imensa frente de praia à demolição de instalações industriais abandonadas, da renovação do sistema de transportes à limpeza de rios e construção de modernos sistemas de esgotos. Legado patrimonial relevante inaugurado propositadamente para as competições, talvez apenas o Palau Sant Jordi, uma arena multiúso desenhada pelo japonês Arata Isozaki, discípulo de Kenzo Tange e vencedor, tal como o seu mestre, do prémio Pritzker. Quanto ao resto da herança, sobressai a subida galopante de Barcelona nos rankings internacionais de turismo, para alegria de muitos e tristeza de outros tantos.

Considerados por várias personalidades como “os melhores de sempre”, os J.O. de 1992 não conseguiram reter esse título por muito tempo, não por culpa própria, sublinhe-se, mas devido à volatilidade do elogio, sempre pronto a voar, na companhia dos figurões olímpicos, para as edições seguintes. Foi assim que em Sydney, oito anos volvidos, Juan Antonio Samaranch, Presidente do COI, presenteou os australianos com o mesmo estribilho, num discurso que só foi bem recebido pelos locais porque estes o ouviram antes da conta de vários milhares de milhões de dólares ter chegado às suas casas na forma de impostos.

 

Pentatlo das Musas

Nas edições olímpicas da primeira metade do século XX, além dos prémios desportivos, eram também atribuídas medalhas a quem se destacava no mundo das artes, fosse na literatura e na música, fosse na pintura, escultura ou arquitectura. A manter-se essa extraordinária competição, Jørn Utzon, que desenhou a Ópera de Sydney, teria certamente ganho uma medalha de ouro na década de 70, quando essa obra foi inaugurada, isto apesar do seu custo astronómico, do atraso de 10 anos na construção, e da derrapagem orçamental de 1400%. Em certo sentido, podemos especular que não foi o despesismo olímpico que irritou os contribuintes da Austrália no ano 2000, mas sim o facto de esse despesismo, ao contrário do que aconteceu com a Ópera de Utzon, não se ter traduzido em algo que suscitasse espanto e deslumbramento por muito tempo, eventualmente para sempre. Nos campos charmosos das Inutilidades Magníficas, há pouco adubo disponível para o crescimento da exaustão fiscal.

A publicação em Portugal do livro Jogos de Poder, do investigador e ex-atleta olímpico Jules Boykoff (edição Zigurate, 2024), é apenas o mais recente capítulo de uma longa lista de denúncias sobre o problemático universo das Olimpíadas, nomeadamente ao nível dos muitos “elefantes brancos” deixados em herança às cidades organizadoras. Mas se agora tendemos – e bem! – a olhar com desconfiança o fenómeno dos Jogos, mais importante se torna sublinhar duas coisas: nem só de albinos se fez este reino de paquidermes, e de quando em quando, estranhamente ou talvez não, até esses dispendiosos exemplares da cor da neve conseguem a proeza de nos encantar.

 

                                                                            Sérgio Barreto Costa

 

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

 

segunda-feira, 13 de maio de 2024

Carta de Bruxelas - 13.

 


 

 

                                                                              Chapéus há muitos

 


Já eram bastantes. Havia o idiota desinformado, que aprecia lenços, cerveja, convívio e um protestozinho contra qualquer coisa que imagina vagamente ser o sistema. Julga-se de esquerda. Havia o engagé, que milita e milita e continuará a militar. Por isso já foi militante, hoje é activista. Sempre de esquerda, sempre de boa consciência moral, sempre atrás do progresso. E lá vai ele pela arreata da História. Na versão sonsa, emite uns sim, mas; por um lado, por outro lado; compreende as duas partes, mas dá razão sempre à mesma. Uma espécie de quod erat demonstrandum, envergonhadito -- na melhor das hipóteses. Havia o repugnante, costuma ser comunista, que toma partido assolapadamente, justifica todas as violências contra Israel e os israelitas com grande fausto de palavras e indignação -- depois janta bem e ceia melhor. Para compor o ramalhete anti-semita, faltava o maluquinho, de obediência neo-fascistóide. Agora já não falta.

 

                                                                        João Tiago Proença





segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Bruxelas, 22 de Outubro de 2023.













A palavra de ordem era "free, free Palestine; boycott Israel". Para esta gente, a última parte vem em primeiro lugar. O resto é fogo de vista.

 

                                                                                            João Tiago Proença





 



sábado, 22 de abril de 2023

O politicamente correto nesta era de fanatismos e de sapiências de ocasião.

 




 

A obra intitula-se Manual do Bom Cidadão, Para Compreender e Resistir à Cultura do Cancelamento, o seu autor é Jorge Soley Climent, professor universitário e com ativismo em várias causas, Publicações D. Quixote, 2023. O título é chamativo, e o autor abre o seu ensaio dizendo que vivemos tempos em que o pasmo se torna rotina, e pronto exemplifica: “Professores com processos disciplinares por ensinar que o sexo é determinado por um par de cromossomas, contas do Twitter suspensas por referirem que a relva é verde, violadores condenados que dizem ser mulheres para os transferirem para uma prisão feminina onde violam umas quantas reclusas…” Será que enlouquecemos todos? O autor diz que não: “Estamos agora a assistir à deflagração de algo laboriosamente preparado, algo que vem de longe.” E dá-nos a sua interpretação de como se constituiu esta nossa era do politicamente correto, apresenta alguns autores que abordam as situações paradoxais de minorias ativas, refere clássicos que denunciaram o totalitarismo comunista, vem um pouco mais atrás aos pensadores da Escola de Frankfurt que geraram uma Teoria Crítica que apontava para a demolição da sociedade, cita-se o inevitável Marx, entra em cena Marcuse, que ganhou fama e algum proveito na crise de maio de 1968, não podia faltar Mao Tsé-Tung e a sua Revolução Cultural, tudo para derrubar e construir uma nova ordem e até o pensador italiano António Gramsci tem direito à palavra, com a sua previsão de que é preciso trabalhar para uma nova cultura que substitua a velha. Em nenhuma circunstância Jorge Soley explica os fundamentos deste ordenamento para se chegar a este tempo em que minorias ativas pugnam a favor da demolição do racionalismo, dos valores solidários, e procura dar-nos um quadro caleidoscópico destas movimentações onde estarão presentes a identidade de género, o racismo, a revolução trans, a perseguição àqueles que defendem o direito de pensar livremente e aceitar as regras do senso comum, tudo tem que ser inclusão, identidade de género, o politicamente correto.

Admito que Jorge Soley acredite piamente que a sua escolha de pensadores que levaram à criação da cultura do cancelamento possua evidência científica. Ora, pensar é divergir. E um filósofo francês, Gilles Lipovetsky, que publicou em 2004 O Crepúsculo do Dever – A Ética Indolor dos Novos Tempos Democráticos, Publicações D. Quixote, já levantara exatamente esta questão na sua análise: moral laica, acabou a época do dever, vivemos numa nova ética nesta sociedade do vazio, do narcisismo, da negação da existência de significados estáveis; as nossas sociedades contemporâneas movem-se numa perda de sentido das grandes instituições morais, sociais e políticas. Lipovetsky escreve mesmo: “A era da felicidade das massas celebra a individualidade livre, privilegia a comunicação e multiplica as escolhas e as opções”; e, mais adiante: “A cultura da felicidade ‘leve’ induz uma ansiedade crónica de massa, mas faz desaparecer a culpabilidade moral.”

 O filósofo trabalha a sua análise de sociedade pós-industrial e de maneira alguma remete para o esquecimento o conceito de “pós-modernidade”. Todo este universo de transformações engendra novos estilos de vida e a restruturação das nossas escalas de valores. Lê-se Jorge Soley e fica-se com a ideia de cultura do cancelamento mistura alhos com bugalhos: técnicas de manipulação, a transformação da discordância em discurso de ódio, a multiplicação dos assassinatos de caráter nas redes sociais, tempos em que o poder político tem medo de se mostrar firme, em que o Twitter ou o Facebook rejeitaram dar a palavra a Trump, à mistura com a eutanásia e o aborto, temas que são muito caros a Jorge Soley, ele é patrono da Fundação Pró-Vida da Catalunha.

Aqui e acolá o autor encontra tremendas analogias entre estes próceres da cultura do cancelamento e as práticas comunistas. Haverá, segundo ele, uma conspiração em curso para gerar um terramoto da nossa cultura, há já colégios a queimar ou destruir exemplares de livros das suas bibliotecas escolares, a iconoclastia é mesmo isso, fazer tábua rasa do passado, destruir monumentos que possam sugerir racismo, colonialismo, religião. É bem verdade que o nosso tempo também se rege por hesitações, algumas delas permanentemente incendiadas, e ele fala nas pessoas de origem hispano-americana que vivem nos EUA, questionando se devem ser tratados por hispânicos ou latinos; há uma minoria de 5% de inquiridos que concordam em ser designados por Latinx, e uma conta satírica no Twitter aproveitou para dizer que os restantes 95% sofrem de racismo interiorizado e deveriam ser classificados como brancos. Alega o autor que o problema posto pela Teoria Crítica da Raça define implicitamente qualquer bom resultado social como uma coisa própria dos brancos. É evidente que um conjunto de instituições entra neste jogo do politicamente correto, será o caso da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood que tem novas normas desde 2020, traduzem-se em critérios que os filmes devem cumprir para serem considerados elegíveis na categoria de Melhor Filme, por exemplo: pelo menos um dos atores principais ou secundários significativos deve pertencer a um grupo social ou étnico infra representado; pelo menos 30% de todos os atores em papéis secundários devem pertencer a pelo menos dois dos seguintes grupos sub-representados: mulheres, grupo racial ou étnico, LGBTQ+, pessoas com incapacidades cognitivas ou físicas ou surdas. O mínimo que se pode dizer é que este conceito normativo é idiota e anda fora da história.

Jorge Soley detém-se na revolução trans, e questiona como é que é possível desligar género da biologia, e caricatura que na ideologia de género, uma pessoa pode levantar-se sendo um aborrecido cisgénero, passar a gender queer à hora do almoço, transsexual ao lanche, andrógino ao jantar e deitar-se como cisgénero. E dá exemplos de fanatismo, caso de uma inglesa que foi exonerada do seu trabalho por exprimir a sua convicção de que, falando em termos biológicos, por muita autoperceção que se tenha, uma mulher continua a ser uma mulher embora se declare homem. O que a levou a ser acusada de transfobia e despedida do seu emprego. A autora de Harry Potter, J. K. Rowling, também anda metida em apuros, acusada de ser transfóbica.

É evidente que o somatório destes casos nos impede dizer que se anda a fazer uma tempestade num copo de água: merece a maior as ponderações o pedido que a ideologia trans faz de abrir as prisões de mulheres a qualquer prisioneiro que se declare mulher. Como igualmente merece toda a prudência o que se está a passar no desporto feminino.

Gerou-se, pois, o imperativo de ver com novos olhos estas arremetidas do politicamente correto e o seu fervor sectário, estas manifestações de mentiras merecem objeção e discussão, nenhum de nós pode ficar à margem destes conflitos e controvérsias que podem, em última instância, minar a base da coesão.

Obra a ler com muitas reticências.


Mário Beja Santos 





segunda-feira, 27 de março de 2023

“O Problema da Habitação”

 


 

Um qualquer estudante de Arquitectura que decida, talvez inspirado por José Saramago, fazer uma “viagem a Portugal”, identificará rapidamente, nos vários concelhos por onde for passando, no interior ou no litoral, no norte ou no sul, uma extensíssima série de conjuntos desenhados por arquitectos famosos ou até famosíssimos – bairros, empreendimentos, blocos, urbanizações, o nome não é importante –, levantados do chão, para mantermos a referência literária, a partir do impulso dado pelos vários poderes públicos nos últimos 100 anos. No entanto, se abrir os jornais para acompanhar o longo e polémico debate sobre a habitação nacional, tropeçará, a cada página, no omnipresente 2%, o número repetido à exaustão, normalmente para que nos sintamos envergonhados em relação ao resto da Europa, relativo à percentagem de habitação pública no país. Entre a observação empírica e as estatísticas publicadas, o que é que justifica, afinal, tamanha discrepância?    

 

 


“Nalgumas ruas das avenidas novas têm‑se construído e estão ainda em construção grandes prédios (…). A renda, porém (…), ultrapassa de tal modo as possibilidades de cada um de nós, que tem dado lugar às mais variadas discussões e mais ásperos protestos (…)! É claro que não são alojamentos desta categoria que fazem falta neste momento.”

 

A frase com que se inicia este texto, e que poderia ter sido retirada de um qualquer jornal português da última semana, mês ou ano, foi, na realidade, publicada em 1945 na revista A Arquitectura Portuguesa. O seu autor, Alberto A.C., dando mostras da inquietação que o assolava, deu ao seu artigo o título de Um problema, a palavra que, ontem, hoje, e muito provavelmente amanhã, mais vezes vemos associada à questão da habitação, mesmo sem contar com o famoso livro do poeta Ruy Belo, o qual, apesar de incluir o verso “uma casa é a coisa mais séria da vida”, é de outro campeonato, mais próximo do metafísico do que da materialidade da argamassa e da alvenaria.

Nesse ano de 1945, naturalmente sublinhado em todos os manuais de História de todos os países do planeta como aquele em que chega ao fim a II Guerra Mundial, ocorreu, em Portugal, o arranque de uma nova política pública de habitação, desta vez, ao contrário do que acontecera nos primeiros programas habitacionais do Estado Novo, focada no arrendamento e não no conceito que tinha animado o início da ditadura: o “cidadão-proprietário”, enraizado na sua pequena, modesta, mas higiénica moradia independente e unifamiliar, e devidamente disciplinado pelo braço forte do Estado. 

Através do pagamento mensal de amortizações, pretendia-se então, nessa época constitucionalmente fundadora de 1933, que o morador, num prazo aproximado de duas décadas, atingisse a posse plena da casa que lhe tinha sido destinada pelo poder vigente. O Programa de Casas Económicas, assim foi baptizado, talvez pelo próprio Salazar ou pelos seus muito próximos Duarte Pacheco (responsável pela construção dos imóveis) e Pedro Teotónio Pereira (responsável pela sempre disputada distribuição das chaves), dirigia os seus maiores esforços não para as classes mais desfavorecidas da população, abrangidas por outras iniciativas (Programa de Casas Desmontáveis, por exemplo), mas principalmente para aqueles que constituíam ou poderiam vir a constituir a base social de apoio do regime: chefes de família, com emprego estável no sector público ou privado, e sobre os quais não recaíssem quaisquer suspeitas de mau comportamento político e moral.

Devidamente “emparedados” entre os critérios de admissão (explicitamente atestados pelos sindicatos nacionais ou pelos respectivos chefes quando se tratava de funcionários do Estado) e a disciplina paternalista assegurada pelo fiscal do bairro (responsável, entre outras actividades, pela organização de um ficheiro actualizado sobre cada morador), os beneficiários deste programa sentiam-se, contudo, privilegiados. A “casa portuguesa”, onde viviam e da qual, caso mantivessem perenemente um comportamento decente e adequado, seriam proprietários num futuro relativamente visível, era, afinal de contas, aos olhos da propaganda oficial, um oásis de vida saudável na periferia, sem comparação possível com a confusão sobrelotada e promíscua dos centros urbanos.              

 

“e são tão económicas as nossas ambições / que não vão muito além das mil evoluções das moscas” (Ruy Belo)

 

Mesmo descontado a propaganda, e tentando, claro, ignorar o tenebroso ficheiro do fiscal, parece verdade que o conceito, qual sapatinho no pé da Cinderela, se ajustava perfeitamente aos gostos e preferências do proverbial “português médio”, eventualmente o mesmo que, nos anos 50, catapultou a canção Uma Casa Portuguesa a um tal grau de sucesso que a própria Amália Rodrigues dela se cansou, chegando mesmo, em alguns concertos, a fazer ouvidos de mercador aos pedidos que muitas vezes lhe gritavam da platéia para que a cantasse.

As quatro paredes caiadas, o cheirinho a alecrim, as uvas douradas e as rosas no jardim, entre outras características – o São José de azulejo, o sol a bater na janela – que garantiam o conforto pobrezinho de um lar, se bem que celebrizadas musicalmente pelos versos que Reinaldo Ferreira e Vasco Matos Sequeira escreveram num hotel de Moçambique, tinham uma existência real nos Bairros de Casas Económicas inaugurados a partir da década de 30 nas então pouco ocupadas cercanias das cidades portuguesas, além de partirem de uma teorização largamente desenvolvida, não só pelo poder político pós-I República, mas também por importantes arquitectos, dos quais se destaca o fascinante e multifacetado Raul Lino.   

Figura ainda hoje polémica, alvo de interpretações não consensuais, dele se pode dizer, tentando não extremar a caracterização, que tendia para o nacionalismo, para o romantismo, para o anti-modernismo. Pouco dado ao fascínio da máquina e da velocidade e eficiência por ela proporcionadas, defensor da manufactura artesanal e do tempo lento, refugiava-se nostalgicamente na História e nas tradições do país, procurando a tal alma e essência da “casa portuguesa”, que imaginava meridional e solar, influenciada pelo mediterrâneo na sua dupla vertente romana e árabe.   

Os títulos dos livros que publicou – A Nossa Casa: apontamentos sobre o bom gosto na construção das casas simples (1918); A Casa Portuguesa (1929); Casas Portuguesas: alguns apontamentos sobre o arquitectar das casas simples (1933) – quase dispensam explicações adicionais sobre a importância deste arquitecto para o Programa de Casas Económicas, muito embora pouca relação houvesse, pela escala e pelos orçamentos, entre os seus projectos particulares (Casa do Cipreste em Sintra, por exemplo) e aqueles que fez para habitação pública. Havia, porém, em ambos os casos, uma ideia de ninho protegido do exterior que batia certo com a ideia transmitida por Salazar num importante discurso radiodifundido em 1933: “a intimidade da vida familiar reclama aconchego, pede isolamento, numa palavra, exige a casa, a casa independente, a casa própria, a nossa casa. Eis porque nos não interessam as colossais construções para habitação operária, com seus restaurantes anexos e sua mesa comum. Para o nosso feitio independente e em benefício da nossa simplicidade morigerada, nós desejamos antes a casa pequena.”

 



Bairro de Casas Económicas das Condominhas, Porto, Arq. Raul Lino e Joaquim Madureira, 1934


Assim eram, pois, os bairros de Raul Lino e respe ctivos discípulos, como o Novo de Belém, o dos Telheiros da Ajuda, o Duarte Pacheco em Braga, o das Condominhas, o do Ilhéu, com as suas casinhas, jardinzinhos, quintaizinhos, janelinhas, patiozinhos, beiraizinhos, hortazinhas, alpendrezinhos e, claro, alguns São Josés de azulejinhos, como na canção popularizada por Amália. Todos esses “inhos” físicos e palpáveis haveriam de contribuir, esperava-se, para o espírito da “casa portuguesa”, tão presente nos versos cantados pela fadista como nos muito anteriores textos do arquitecto Raul Lino, que o fazia depender, até mais do que dos materiais, do “sabor português” e de um “certo ar amoroso de doçura”. Paradoxalmente, todavia, os projectos conciliavam o conservadorismo com alguns aspectos da modernidade, nomeadamente no que se refere à dimensão e simplificação das habitações, tema que alimentava noutros países o estudo racionalista do Existenzminimum, ou seja, a definição do espaço mínimo onde um ser humano poderia viver eficientemente, seja lá isso o que for.

Por outro lado, dois dos pontos fulcrais deste Programa – o “cidadão-proprietário” em vez do “cidadão-inquilino do Estado” e a moradia unifamiliar em vez da habitação colectiva – revelavam tolerância zero a eventuais instintos “modernizadores”, fazendo prevalecer as opiniões mais tradicionalistas - a aldeia reproduzida na cidade - e o fomento da propriedade privada, pedra basilar da muito bem-vista “herança de família”. Tratava-se, em certa medida, de marcar a diferença em relação à forma como a Primeira República tinha encarado a política pública de habitação, embora mais tarde, em 1945, como foi referido logo no início deste texto, também o Estado Novo aderisse, pragmaticamente mas sempre com reservas, ao arrendamento público a aos blocos de habitação colectiva, ponto que se retomará mais à frente.

Já o período 1910-1926, que deve ser analisado mais pelas intenções do que pela obra, uma vez que a balbúrdia instalada não permitiu que se fizesse muita, fica marcado pelo nascimento das primeiras leis sobre a intervenção do Estado na habitação, uma consequência não só da multiplicação de “ilhas” portuenses e de “pátios” lisboetas insalubres, sobrelotados e miseráveis, como também de uma crise de desemprego na construção civil, duas desgraças que, ao ocorrerem em simultâneo, provocavam nas elites o terror de uma revolução temperada com pitadas de peste e de tuberculose.

 

“Ilha” portuense numa época em que Portugal não sofria de problemas relacionados com a taxa de natalidade

 

Os Bairros Operários ou Sociais da República, alguns só projectados, outros parcialmente construídos, mostravam naturalmente menos receio de um certo colectivismo do que aquele que atingiria o pensamento dos primeiros anos salazaristas, o que não se estranha dadas as características e as diferenças ideológicas entre os dois regimes. Esses Bairros, que se davam bem com blocos multifamiliares e com o modelo do arrendamento, previam também a integração de cantinas, lavandarias e balneários, assim evidenciando o género de mundividência que deixava o ditador de Santa Comba com os cabelos em pé.

O poder republicano, no entanto, fazendo-lhe um grande favor, devido em parte ao desagradável facto de ser muito mais fácil e rápido escrever despachos e decretos do que erguer fiadas de tijolos, não conseguiu transformar a sua visão em realidade, e mesmo o Bairro da Ajuda/Boa Hora e o Bairro do Arco do Cego, dois dos poucos empreendimentos que tiveram obra de facto, acabaram por ser finalizados já pelo Estado Novo, que ainda foi a tempo de os “ajustar” à sua concepção individualista. As habitações acabaram assim nas mãos de “moradores-adquirentes”, reforçando-se o pilar família/herança, e os cabelos de Salazar assentaram novamente. Ademais, o facto de ter sido ele a ter de terminar as empreitadas que os republicanos, no meio do caos político e financeiro, não tinham sido capazes de erigir, reforçou a imagem de competência que vinha laboriosamente a contruir desde o dia em que assumiu funções políticas, se não mesmo desde o dia em que nasceu.

 

“Feliz aquele que administra sabiamente / a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias / Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará” (Ruy Belo)

 

Em Junho de 1970, no número 1496 da Seara Nova, o arquitecto Nuno Teotónio Pereira, cansado do aumento contínuo de barracas e bairros de lata na capital, faz publicar um texto sugestivamente intitulado A nódoa de Lisboa. Esse tipo de “alojamento sem ser em prédio”, como eufemisticamente lhe chamava o Censo de 1960, não era de todo uma especificidade portuguesa, como bem podiam comprovar os inúmeros emigrantes lusos transferidos directamente da miséria local para a miséria estrangeira de um qualquer “bidonville” nos arredores de Paris. Esse pormenor, no entanto, não servia de consolo a Teotónio Pereira, nem, supõe-se, aos moradores das barracas, nem tampouco, e isso sabe-se hoje sem sombra de dúvida, às autoridades políticas, que, programa após programa, iniciativa após iniciativa, se sentiam, embora não o confessassem, como Sísifo nos seus trabalhos.

Note-se que nesse ano de 1970, Portugal levava já mais de duas décadas de novas experiências habitacionais públicas, de escala significativamente maior do que aquela que desejava casar, sob apadrinhamento do fiscal e do seu ficheiro, o pequeno proprietário com a casinha portuguesa “de” Raul Lino. A promoção do arrendamento social, vista com muito maus olhos nos primeiros vinte anos de Estado Novo, começa a ser alvo de uma visão refrescada, mais por necessidade do que por convicção, em meados dos anos 40, e algo de semelhante acontece, pelos mesmos motivos, em relação ao tema dos grandes blocos de habitação colectiva.

O Bairro de Alvalade, por exemplo, onde trabalharam vários arquitectos conhecidos dos quais se destaca Miguel Jacobetty Rosa, foi uma iniciativa levada a cabo pelo poder central e municipal que conjugava rendas económicas, extensa área urbanizada e construção em altura, e a sua visibilidade, indisfarçável, logo despertou o interesse de outras cidades portuguesas, que prontamente deitaram a mão aos projectos de Jacobetty e aos fundos disponibilizados pelo Estado.     

 


Casas de Renda Económica do Bairro do Tarrafal, Matosinhos, um dos “pequenos Alvalades” que surgiram pelo país; Arq. Miguel Jacobetty Rosa, 1951

 

Datam igualmente desta época do pós-guerra a construção de Bairros para Famílias Pobres (um dos arquitectos envolvidos foi Ruy Jervis d'Athouguia, um aristocrata reservado que, dando provas de grande ecumenismo, desenhou casas para pobres ao mesmo tempo que projectava edifícios para a elite, como é o caso da emblemática Sede da Fundação Calouste Gulbenkian), Bairros para Pescadores, Bairros do Movimento Nacional de Auto-Construção, um nome que é todo um programa mas que contavam com apoio público, Bairros da Fundação Salazar, os quais, à semelhança da ponte sobre o Tejo, se chamam agora 25 de Abril, Colónias Agrícolas em vários concelhos, principalmente do interior, numa tentativa de travar o êxodo rural, ou seja, de parar o vento com as mãos, Bairros “do” Padre Américo, enfim, todo um conjunto de políticas que, todavia, coexistiam com um sem-fim de lamaçais inundados por barracas de madeira carcomida e chapa esburacada.   

 

“E a alegria é uma casa recém-construída” (Ruy Belo)

 

Assim sendo, logo no início da governação de Marcello Caetano, e como resultado de uma longa reflexão que atribuía as insuficiências da política de habitação (“falhanço” era uma palavra proibida) ao facto de esta se encontrar dispersa por várias entidades, é criado o Fundo de Fomento da Habitação (FFH), organismo destinado, de acordo com o engraçado lero-lero do governo, a “concentrar o estudo da problemática”. Estamos em pleno III Plano de Fomento e numa época em que parte do regime, contra a opinião de uma outra parte mais conservadora, tentava importar para Portugal algum do Estado Social que caracterizava as democracias da Europa ocidental.

O FFH, através do conceito de Plano Integrado (o arquitecto Nuno Portas, cujas ideias foram aproveitadas para esta abordagem, chamava-lhe uma “arquitectura de nova dimensão, integradora dos sucessivos escalões de planeamento”), inicia então o planeamento de empreendimentos de grande escala, não apenas ao nível dos edifícios previstos, mas também em relação às vias de comunicação, às infraestruturas e aos equipamentos sociais, ou seja, dá-se o tiro de partida, no nosso cantinho, ao lançamento dos grands ensembles que polvilhavam desde o final da II Guerra Mundial as áreas metropolitanas francesas, alemãs ou italianas e que, por essa altura, comprovando pela enésima vez a nossa chegada tardia às coisas, começavam a ser postos em causa pelas populações e autoridades desses países.   

 

 


Bairro da Bela Vista, inserido no Plano Integrado de Setúbal; Arq. José Charters Monteiro, 1974. Charters Monteiro formou-se em arquitectura no Politécnico de Milão e foi aluno de Aldo Rossi, que chegou a projectar um edifício, nunca construído, para este Plano Integrado (PI).

 

Vários arquitectos, alguns deles famosos nos dias de hoje mas nessa época em início de carreira, começam por isso, num espaço temporal que engloba os anos finais da ditadura e os primeiros anos pós-25 de Abril, a projectar, no âmbito destes PI, ou Planos Integrados, ou 3,14 para os amigos, blocos e mais blocos de habitação social, uns para arrendamento, outros no sistema de propriedade resolúvel, ou seja, a amortização por prestações mensais característica das “casas económicas” dos anos 30, espalhando pelo território milhares e milhares de casas e apartamentos.

E a estas devemos também somar as muitas habitações construídas como resposta pública a catástrofes (com destaque para os Bairros Gulbenkian, nascidos de uma espécie de PPP formada para acudir as vítimas das grande cheias de 1967), os Bairros CAR, construídos para alojar o mais rapidamente possível os retornados de África, visto que a solução provisória – mosteiros, seminários, casas de acolhimento, conventos, parques de campismo, autocaravanas, pensões, residenciais e hotéis de uma, duas, três, quatro, cinco estrelas, e mais estrelas houvesse, caso isto fosse o Dubai – se revelava excêntrica e dispendiosa, e os Bairros SAAL, cooperativas de trabalho conjunto entre o povo (o real, mesmo, e não o das teorias ideológicas) e grandes nomes da arquitectura (Siza Vieira, Alcino Soutinho, Fernando Távora, Gonçalo Byrne, etc.), numa experiência inovadora e marcante, pontuada por muita utopia revolucionária, mas que teve projecção internacional e nos deixou frases memoráveis, como aquela em que um morador, interrogado sobre as suas preferências conceptuais, contrapõe um magnífico “o senhor arquitecto faça como se fosse para si que de certeza que eu vou gostar.”

 

“E a alegria é uma casa demolida” (Ruy Belo)

 




Mais recentemente, já na época de estabilidade democrática em que dois gigantes, Mário Soares e Cavaco Silva, ocupavam, numa feliz coincidência histórica, as cadeiras da Presidência e da chefia do Governo, provocando-se mutuamente, às vezes de uma forma feroz, mas também contribuindo para que cada um desse o seu melhor na respectiva função, dá-se a construção de dezenas de milhares de habitações destinadas à substituição das barracas que teimosamente ainda subsistiam. Soares aproveita as suas Presidências Abertas para, no âmbito daquilo que na gíria se convencionou chamar “magistratura de influência”, denunciar as indecentes condições de habitabilidade que marcavam certos territórios, e Cavaco, o executivo, responde-lhe com a pulsão, sempre à flor da pele, de “fazer obra”, demolindo, em conjunto com os municípios, uma infinitude de bairros de lata e de habitações precárias degradadas, não todas, infelizmente, dizem uns que por causa do boicote político de algumas autarquias, dizem outros que por causa de várias outras vicissitudes, sendo seguro que, entretanto, talvez mesmo no mês ou na semana passada, há novas barracas a nascer por aí, muito frágeis na aparência, é certo, mas solidamente resistentes aos discursos bondosos sobre pobreza e chagas sociais.

“Oh as casas as casas as casas”, escrevia Ruy Belo já não no livro O Problema da Habitação, de 1962, mas num outro, País Possível, editado nas vésperas do 25 de Abril. Sim, ouve-se perguntar, onde estão as casas as casas as casas, milhares e milhares delas, construídas com dinheiro público nos últimos 100 anos, mesmo que descontemos outras tantas que foram feitas no modelo de propriedade resolúvel, e destinadas por isso, desde o início, a terem como destino final a posse privada? O tal 2%, número que nos martela os ouvidos, o fraquíssimo indicador da nossa liliputiana habitação pública, não parece compatível com tanto arquitecto, tanto projecto, tanta obra.

E, no entanto, é! Consciente das suas próprias e gritantes dificuldades de gestão, da cobrança das rendas à conservação dos imóveis, o Estado, nos últimos 40 anos, tentou livrar-se a todo o vapor, e se calhar ainda bem!, dos seus edifícios arrendados, umas vezes entregando-os às autarquias, quando estas, distraídas, os aceitavam, outras vezes, a maioria, vendendo as fracções aos respectivos inquilinos, numa operação de larguíssima escala que pouca gente, se é que alguém, consegue quantificar. E as autarquias, como é óbvio, sentindo idênticas aflições quando envergaram o fato de senhorio, fizeram o mesmo. O que sobrou, 2%, aí está, para consumo público em letra de imprensa, pois, como muito bem diz o povo na sua descomplexada sabedoria, quem o rabo vende não se senta quando quer.

 

 

PS (salvo seja!) – a maioria da informação que aparece neste texto foi recolhida no excelente livro Habitação: Cem Anos de Políticas Públicas em Portugal, 1918 - 2018 (INCM, Dezembro de 2018, 525 pp.), encomendado pelo Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana IP a um vasto conjunto de investigadores coordenados pelo arquitecto e professor universitário Ricardo Costa Agarez. Seria talvez boa ideia que a Ministra da Habitação e o PM, ainda que na diagonal, deitassem pelo menos os olhos aos estudos solicitados pelo próprio governo de que fazem parte. Poderiam assim contactar com esse longo período em que o Estado – fosse ele dirigido por republicanos radicais, ditadores reaccionários ou democratas liberais –, quando queria entregar casas ao povo (uma opção discutível, mas legítima), metia as mãos na massa e não na argamassa dos outros.

 

                                                                        Sérgio Barreto Costa

                                                                                   sbcosta13@gmail.com


                                                   (texto originalmente publicado no jornal Observador)