quinta-feira, 24 de outubro de 2024
sexta-feira, 9 de agosto de 2024
Regresso e despedida.
Agosto, de Jorge Silva Melo
Não é preciso o Outono para se concluir que o Verão é a única estação. Basta apenas o barulho das crianças à beira mar em brincadeiras sem amanhã. Um dia convidaram Walt Whitman, sentado ao ar livre numa praça, a juntar-se à conversa de um grupo de jovens no interior. Retorquiu: «No, dearie, I love to hear your laughter, but I do not care for your talk.» Como a morte, também a felicidade nada tem a dizer. Na terra da alegria, da água e do Sol, eternamente ditosas por um tempo breve, são moribundos que não saúdam ninguém.
João Tiago Proença
sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024
quarta-feira, 6 de setembro de 2023
Recomendações para uma alimentação que dê mais vidas aos anos.
O
mais recente livro da coleção Pela Sua Saúde – Ciência Alimentar, da Fundação
Francisco Manuel dos Santos, intitula-se Alimentos de Hoje, é sua autora
Catarina Sousa Guerreiro, 2023.
Com
o triunfo da sociedade de consumo a alimentação ganhou foros de globalização,
encontramos em qualquer hipermercado alimentos de todas as proveniências. E
assiste-se a um paradoxo: existe uma maior disponibilidade que propicia a
diversidade alimentar, mas, por outro lado, emergiram padrões alimentares e
estilos de vida pouco saudáveis. Existem quilómetros de literatura em que se
faz o diagnóstico de que estamos cercados por alimentos altamente energéticos,
em que simultaneamente temos um estilo de vida sedentário, isto numa atmosfera
em que a atividade física é minimizada.
O
que a autora deste ensaio releva é que o moderno conceito de nutrição se apoia
no facto de alguns alimentos e/ou ingredientes, para além do seu papel de
nutritivo, apresentarem também um efeito fisiológico benéfico para o organismo.
O alimento que possui estas características é designado por funcional porque
tem um efeito benéfico sobre determinadas funções do organismo, para além dos
efeitos nutricionais habituais. O que desenvolve um mercado de alimentos
apresentados como miraculosos, que em tempos eram conhecidos por alicamentos,
isto é, alimentos com efeito medicamentoso. Tal como nas dietas da moda, há
muito boa gente a bater à porta destas lojas ditas de saúde, à procura de um
milagre que não pode existir.
E,
por isso, selecionou com base em critérios científicos, nutricionais, culturais
e de práticas exequíveis 15 alimentos, advertindo que ninguém alcançará um
plano nutricionalmente equilibrado apenas com eles, fazem parte de uma matriz
que até pode ser designada por dieta mediterrânea onde o valor nutricional é
acompanhado com algum efeito fisiológico sobre o organismo.
Logo
o azeite virgem extra, é a gordura vegetal que faz bem, ele é um dos grandes
responsáveis pelos benefícios que a dieta mediterrânea apresenta em relação às
doenças crónicas, como obesidade, doenças degenerativas ou cancro, entre
outras. E diz sem hesitação: “Para aqueles que procuram retirar da dieta o
melhor benefício para a saúde, aconselho a utilização do azeite virgem extra.
Na confeção dos alimentos prefiram-no aos outros óleos e margarinas, utilizando
também no pão/tostas como substituto da manteiga.”
Segue-se
o iogurte, está entre os alimentos fermentados mais populares do mundo. Pode
ser consumido como figura central de refeições como pequeno-almoço ou lanche,
pode-se comer a qualquer hora do dia. E a autora chama a atenção que do ponto
de vista prático e utilização do consumo, é importante reter que, idealmente,
os iogurtes não necessitam de conter muitos outros ingredientes para além das
matérias-primas e das culturas microbianas. Em síntese, um alimento versátil,
capaz de fazer parte da dieta em diferentes momentos e formas. A escolha recai
nos naturais não açucarados.
Temos
agora a aveia integral, um grão bastante nutritivo, tem um maior teor proteico
do que outros cereais e uma excelente composição da fibra, pelo seu equilíbrio
de fibra solúvel e insolúvel. Pode-se optar por farelo de aveia ou pelo floco
de aveia integral, misturando-a com leite ou com iogurte e fruta.
Não
há surpresa pelo que vem a seguir, o alho e a cebola, não só pelo sabor que
conferem aos alimentos, mas pelas suas aplicações terapêuticas. Seguem-se as
couves variadas, recorde-se que as cozeduras prolongadas podem levar à difusão
de elementos ricos para a água; não se esqueça de variar muito, se hoje consumir
verdes e amarelos opte amanhã pelos brancos e pelos roxos. Na sequência vêm as
leguminosas, com imensas propriedades, desde o teor proteico, ao vitamínico e
de fibra, possibilitando a substituição equilibrada de proteínas da
carne/peixe. Uma das formas de as inserir na alimentação é através das suas
farinhas, mas convém expressar que nutricionalmente não são tão ricas.
Agora,
uma palavra para frutos oleaginosos e sementes, primam pelo seu alto valor
energético e baixo teor de água (amêndoas, cajus, nozes, avelãs, pistáchios,
nozes-macadâmias). E diz a autora: “As nozes estão associadas a mais uma
alegação de saúde autorizada pela Autoridade Europeia de Segurança Alimentar, a
qual refere que o consumo diário de 30g de nozes contribui para a melhoria da
elasticidade dos vasos sanguíneos.” É recomendado que estes frutos oleaginosos
sejam consumidos ao natural, sem adição de açúcar ou de sal. Temos agora os
frutos silvestres (framboesas, amoras, mirtilos…), uma excelente fonte de
muitos ingredientes (vitaminas, minerais, fibras alimentares). Opte pelos
frutos da época. E agora uma palavra para o quivi, e a autora explica porquê:
“Numa população em que mais de 20% das pessoas apresentam um trânsito
intestinal lento, muito decorrente do baixo aporte de fibra e sedentarismo, e
que em simultâneo apresentam excesso de peso, a escolha deste fruto é muitas
vezes óbvia”. Além disso, é reconhecido por um alto consumo de fibra, tem um
poder antioxidante, anti-inflamatório, anti-hipertensivo, e mais outros antis.
Agora
a direção muda para a dimensão proteica, ovos e peixe. No ovo, a autora procura
desfazer o mito: “Na mente do consumidor está sempre latente a dúvida acerca do
impacto do seu consumo (aproximadamente 400mg de colesterol por ovo) nos níveis
de colesterol no sangue. Durante décadas, diversas recomendações, muitas vezes
contraditórias, indicavam que deveria existir uma certa alimentação ao seu
consumo, muito pela consequência do efeito que iria causar no risco de doença
cardiovascular. Sabe-se hoje que os níveis de colesterol alimentar não se
relacionam diretamente com os níveis elevados de colesterol total e do LDL.
Esta subida deve-se sobretudo ao consumo de gordura trans e de gordura
saturada. O ovo continua a ser um produto alimentar de alta qualidade nutricional
para adultos, idosos e crianças. O peixe é o maior representante de proteína
animal que incorpora os princípios da dieta mediterrânica, juntamente com
produtos lácteos. Pode optar-se por conservas de sardinha ou cavala bem como
pelas conservas de atum ou bacalhau, podem intercalar-se com peixe fresco ou
congelado.
O
leitor ainda tem várias surpresas à sua espera nesta seleção alimentar: a
curcuma, o café, o chá verde, o chocolate preto. Sendo nutricionista, a autora
exemplifica como no nosso dia a dia se pode planear a inclusão dos alimentos
que ela selecionou. Tece um elogio à dieta mediterrânica e defende a sua dama
que é uma alimentação mais saudável de onde deve estar excluída em cerca de 1/5
do que habitualmente consumimos, no fundo alimentos altamente calóricos, ricos
em açúcar, sal e gordura e que, dramática e insidiosamente, tiram vida aos
nossos anos, bastaria que adotássemos estilos de vida saudáveis na nossa mesa.
Obra
do maior interesse, até pela linguagem utilizada, para futuros profissionais de
saúde, pois a nutrição deve fazer obrigatoriamente parte da sua formação.
Mário Beja Santos
sábado, 26 de agosto de 2023
quarta-feira, 26 de julho de 2023
Prova de Vida (1) - Eládio Clímaco.
segunda-feira, 12 de junho de 2023
Mês de Junho, rei dos meses.
Mês de Junho, rei
dos meses,
Mês dos santos
populares,
Mês-paixão dos
portugueses,
Motivo dos seus
cantares
E também dos seus
manjares.
És o mês dos
manjericos
E do “alecrim
dourado”
E dos belos cravos
ricos.
Com sardinha és
celebrado
E com vinho
requintado.
Com as marchas
populares,
Fazes das donas
donzelas
E enches de magia
os ares;
Ruas enfeitas de
velas
E o Tejo de
caravelas.
Desfilam ranchos
briosos,
Rufam alegres
tambores,
Bailam os pares
airosos
Com seus trajes
multicores,
No meio de mil
andores.
Entre aquela gente
boa,
Santo António está
festeiro.
Dos nubentes de
Lisboa
Não é só
casamenteiro,
Mas também seu
padroeiro.
Manchester, CT, 13
de Junho de 2021
António Cirurgião
terça-feira, 4 de abril de 2023
Mestre da Banda das Oficinas de São José de Lisboa.
No ano lectivo de 1957-58, fui nomeado, mediante o voto de obediência,
para o cargo de professor nas Oficinas de São José de Lisboa, colégio da
Congregação Salesiana para alunos internos e externos, onde se ministrava o
curso de admissão ao ensino secundário, o curso preparatório, o curso comercial
e o curso industrial. No próprio dia da chegada, fui chamado ao gabinete do
Padre Prefeito, a fim de me informar sobre os cursos que ia ensinar nesse ano
lectivo. Quando pensava que me poriam a ensinar apenas Português, Francês e
História Universal aos alunos do curso comercial e do curso industrial,
matérias que eu já tinha ensinado noutros colégios salesianos, vejo-me também
responsável pela Matemática do segundo ano do curso preparatório.
Como faltavam ainda umas quatro semanas para o início do ano lectivo, lancei-me
imediatamente a preparar, com a maior diligência todas essas matérias, mormente
a Matemática, dado que nunca tinha ensinado essa disciplina nem gostava dela.
Passada uma semana, vejo-me intimado a comparecer no escritório do Padre
Director, para ouvir dos lábios dele que, em virtude de, inesperadamente, e com
grande pena dele, Director, o padre encarregado do orfeão e da banda, ter sido
destacado para missionário em Macau, eu tinha de desempenhar essas funções.
Perante tais circunstâncias, não tive outro remédio senão aceitar essa penosa
incumbência, embora fizesse saber, com o maior respeito, ao Padre Director que,
quanto ao orfeão, não via qualquer problema, mas que, quanto ao desempenho das
funções de mestre da banda, eu não tinha a mínima competência. À minha objecção
retorquiu o Padre Director, com grande amabilidade, que, dado o meu
conhecimento do solfejo, do piano e do órgão (instrumentos em que eu não
passava de um mísero amador), e, continuou ele, dada também a minha experiência
de tocador de tuba na banda de outro colégio salesiano, não me seria difícil
vir a ser mestre competente de uma banda constituída por cerca de quarenta
elementos.
Num gesto impregnado de simbolismo pedagógico e como que para tornar mais leve
o pesado fardo que me punha sobre os ombros e tornar mais palatável o trago
amargo que me punha nos lábios, o Padre Director colocou-me nas mãos trementes
a partitura, novinha em folha, de uma marcha intitulada Querer é Poder, e
rematou assim a conversa:
- Para que vejas que eu tenho toda a razão para confiar em ti, no teu brio e na
tua força de vontade, recomendo-te que esta seja a marcha com que virás a abrir
todas as actuações da banda nas festas do colégio e em todos os desfiles
cívicos. Toquei-a ao piano e pude verificar que é uma marcha simples, fácil e
bonita, de efeito garantido – concluiu o Reverendo Padre Director.
Proferidas estas palavras, esboçou um breve sorriso, aconselhou-me a implorar a
protecção de Santa Cecília, padroeira da música, desejou-me boa sorte, deu-me a
bênção e entregou-me as chaves da sala de banda.
Triste, apreensivo, como se pode imaginar, dirigi-me à
sala de banda e abri a porta, trepidante. Depois de passar perfuntoriamente os
olhos por todos os instrumentos e por algumas partituras, subi ao pódio e
imaginei a localização dos diferentes naipes da banda, dispostos em semicírculo
e em plano inclinado: na primeira e segunda filas estavam as duas
flautas, a requinta, os primeiros e segundos clarinetes; na terceira fila, o
saxofone soprano e o saxofone alto e os trompetes; na quarta fila, as três
trompas, os três trombones e os dois bombardinos, um em cada extremidade; e na
última fila, a caixa, os ferrinhos, a pandeireta, os pratos, o bombo e os
dois baixos ou tubas, um em cada extremidade.
Seguidamente, abri uma partitura, peguei na batuta,
dei uma resoluta pancadinha na extremidade do pódio para impor silêncio, ergui
os ombros, assumi um ar austero, franzi o sobrolho, olhei pausadamente, com
semblante autoritário, para os cerca de quarenta músicos imaginários, levantei
os dois braços, quase em arco, com as duas mãos à altura dos olhos; depois,
fazendo de conta que íamos tocar a marcha mais conhecida de John Philip Sousa,
Stars and Stripes Forever, executei com a mão direita, a da batuta, dois
compassos em branco e dei sinal de entrada.
Tudo parecia estar a correr a preceito, quando, de
repente, me dei conta de que, mesmo tratando-se de uma marcha que eu sabia de
cor e salteado, estava totalmente perdido, sem saber se íamos repetir um
andamento, se era o momento de dar a melodia aos instrumentos de metal e o
acompanhamento aos instrumentos de sopro ou vice-versa. No meio dessa diabólica
confusão, quase tive um ataque de pânico. Sem saber como nem por quê, estava eu
a arrojar tresloucado a assustada batuta contra a parede, a descer apavorado do
pódio e a correr para a porta da sala de banda, a abri-la com fúria, a fechá-la
à chave e a dirigir-me como um relâmpago ao escritório do Padre Director e a
pousar desvairadamente as chaves da sala de banda sobre a secretária dele.
Ao ver-me nesse deplorável estado, o Padre Director
ofereceu-me um copo de água, pediu-me que respirasse fundo, que acalmasse e que
lhe contasse o que me tinha acontecido. Contei-lhe tudo e, no fim, roguei-lhe
que, por amor de Deus, não me obrigasse a ser responsável pela banda. Ele,
havendo passado rapidamente pela mente e pelos lábios os nomes de todos os
padres, clérigos e coadjutores que nesse ano tinha ao seu serviço nas Oficinas
de São José, disse-me que eu era o único com habilitações musicais suficientes
para desempenhar devidamente esse cargo. Que, com o conhecimento que eu tinha
de música, e com as três semanas que ainda faltavam para o início do ano
lectivo, havia de ver que eu viria a superar essa dificuldade mais aparente que
real. E como eu continuasse a insistir na minha incompetência para o desempenho
desse cargo, ele, numa atitude a traduzir um misto de autoridade e compreensão
humana, limitou-se a colocar-me nas mãos as chaves da sala de banda e a dizer,
entre sério e sorridente, que não o obrigasse a mandar-me em nome do santo voto
de obediência.
Triste como um suspiro, quase a chorar, com enorme
pena do pobre de mim, por me ver obrigado a ter de desempenhar uma função para
que não me sentia minimamente habilitado, fui carpir as minhas mágoas para o
meu escritório.
Ora aconteceu que nesse mesmo dia, por auspiciosa obra
do azar, depois do jantar, deparei inopinadamente com um padre velhinho,
chamado Pedro Vicente Morais, conhecido simplesmente como Padre Morais, que
tinha vindo do Oratório de São José de Évora passar umas semanas nas Oficinas
de São José de Lisboa. Dado que de há muito tempo eu tinha uma grande confiança
nele, como se fosse uma espécie de avô muito querido, modelo de sabedoria e de
bondade, roguei-lhe que me emprestasse um ombro para nele desafogar as minhas
amarguras.
Depois de me ter ouvido, cheio de empatia e simpatia,
limitou-se a dizer, essencialmente, que não me preocupasse: que durante as três
semanas de férias ele me havia de ensinar o suficiente para eu vir a ser um bom
mestre de banda. É que ele não só era um dos maiores peritos em Portugal na
ciência da Radiestesia, quer dizer, especialista em desencantar águas
subterrâneas e vários tipos de minérios, por meio de uma varinha de madeira, em
forma de forquilha, e de um pêndulo metálico, em forma de peão, preso de um
fio, mas possuía também uma considerável formação musical, tendo sido o
fundador e um competentíssimo mestre da banda colegial, no Oratório de São
José, de Évora, durante muitos anos, sabia construir órgãos e era também um dos
raríssimos padres salesianos que dominava bastante bem a composição, a ponto de
fazer arranjos musicais muito meritórios.
A partir do dia seguinte, até ao início do ano
lectivo, com uma paciência de Job, o bom do Padre Morais passou horas e horas
comigo na sala de banda a ensinar-me quase tudo quanto eu necessitava saber
para me desempenhar satisfatoriamente do cargo de director e de maestro da
banda colegial. Tanto assim foi que, por mais de uma vez, quando éramos
convidados a tocar em paradas ou nas procissões da Quaresma, em várias das
paróquias de Lisboa, tais como a de Santo Condestável, a de São Roque e a da
Ajuda, cheguei a ouvir comentários como este, vindos do meio dos milhares de
pessoas que acompanhavam a procissão ou paravam nos passeios das ruas para ver
passar a procissão do Senhor dos Passos:
- Quem me dera saber música como aquele gajo.
Mal imaginavam esses precipitados e francos louvadores
que “aquele gajo”, além das lições providenciais recebidas do bom do Padre
Morais, roubava incontáveis horas ao sono para passá-las na sala de banda,
sentado ao piano, a estudar meticulosamente as partes dos diferentes
instrumentos, para depois, durante os curtos ensaios que o Director Escolar
relutantemente nos concedia, as ensinar de ouvido a vários dos membros da
banda, por eles não saberem solfejo suficiente.
Outro recurso de que me vali para me sair o mais
decentemente possível da minha aventura de mestre de banda à força foi recorrer
aos bons ofícios dos poucos alunos, normalmente os finalistas, que dominavam
relativamente bem os respectivos instrumentos. Como aprendiam com facilidade as
suas partes, por termos um reportório limitadíssimo, ajudavam-me a ensinar, não
só os aprendizes, mas também os alunos que, sendo já músicos efectivos, nunca
chegavam a atingir o nível que lhes permitisse ler devidamente as partes por si
mesmos.
Por falar nos aprendizes, vou referir um episódio que
tenho contado diversas vezes através dos anos, por me parecer que tem uma certa
graça, modéstia à parte.
Além dos elementos efectivos, a banda tinha, como é natural, um número razoável
de aprendizes, destinados a preencher as vagas criadas pelos músicos que, no
final do ano lectivo, concluído o curso, deixavam o colégio e iam para o mundo
do trabalho. Como é natural também, a maior ambição de um aprendiz é atingir o
estatuto de membro efectivo. E como outrossim é natural, na música
instrumental, como em tudo, entram o talento e a arte, tomada aqui arte em
sentido lato, no de prática ou aprendizagem. Ora aconteceu que nesse ano tive
um aprendiz de clarinete, a bondade e a diligência em pessoa, que, apaixonado
por esse instrumento, fazia um esforço inaudito para suprir a falta de talento.
Passava o tempo e, enquanto alguns dos seus colegas chegavam ao ponto de
poderem ser integrados na banda, por ocasião das frequentes actuações, já
durante as festas do colégio, já durante as paradas ou as procissões, ele,
mesmo com toda a boa vontade deste mundo e do outro, não conseguia atingir essa
meta. Com o ar mais humilde que se pode imaginar, de longe em longe, pedia-me
que o deixasse participar numa procissão como clarinetista. Perante esses
pedidos e o seu empenho exemplar na aprendizagem, e, ao mesmo tempo, com receio
de que, tal como às vezes sucedia com outros, ele viesse a desanimar e a
desistir da banda, lembrei-me de recorrer a um estratagema especial para lhe
satisfazer esse compreensível e ardente desejo.
Íamos tocar numa procissão da Quaresma. Como a banda era fraquinha, por razões
óbvias, eu estabeleci uma série de preceitos, a cumprir rigorosamente, por
ocasião das saídas, a fim de poder tirar o melhor partido possível da nossa
penúria: primeiro, exigir que todos os membros da banda levassem a farda
impecavelmente lavada e primorosamente passada a ferro e os sapatos pretos
engraxados a rigor; segundo, pôr o metal dos instrumentos musicais a brilhar,
mercê do trabalho feito na noite anterior ao dia da saída por alguns
voluntários, sob a minha supervisão; terceiro, reiterar, vezes sem conta, que o
melhor que podíamos fazer era pôr a imaginar todos os que nos acompanhavam nos
desfiles e nas procissões que, perante eles, desfilava uma banda competente, ao
reparar no brilho dos instrumentos, no vistoso das fardas, na elegância e no
aprumo do marchar, ao toque rítmico e sonoro da caixa; quarto, proibir
terminantemente que alguém se atrevesse a tocar sequer uma nota desde o momento
em que fossem buscar os instrumentos à sala de banda até ao sinal de entrada
para cada uma das marchas
executadas
Foi alicerçado no quarto e último preceito que me foi
possível recorrer ao seguinte estratagema: colocar algodão em rama entre a
palheta do clarinete e a madeira, para impedir que dele saísse qualquer som,
por mais que o bom do aprendiz soprasse. Chega o momento de arrancar com a
primeira marcha – uma marcha fúnebre e soturnamente funéria, neste caso – e o
nosso aprendiz de clarinete, cheio de orgulho, de garbo e de alegria, por haver
soado finalmente a hora da sua tão suspirada estreia, sopra como todos os
clarinetistas têm de soprar e imagina – e com muito boa razão – que está a
colaborar no sucesso da marcha (e das marchas posteriores), quando, na realidade,
está a cimentar o seu lugar, como clarinetista real, na banda do ano seguinte.
Cronicar a vasta série de episódios relacionados com o
meu estatuto de mestre de banda à força seria uma tarefa muito morosa. Porém,
parece-me edificante e oportuno referir alguns, por neles se poderem compendiar
as principais vicissitudes por que passei no decorrer desse estranho mandato.
De temperamento colérico, segundo o meu mestre de
noviços, pio e fiel devoto de Hipócrates, pai da medicina, e de Galeno, pai dos
quatro humores e dos quatro temperamentos humanos, malgrado os grandes esforços
que fazia para não me irritar demasiado durante os ensaios, às vezes as fífias
e os disparates cometidos por alguns elementos da banda, já por descuido, já
por inépcia, eram de tal maneira enervantes e horripilantes, que eu me sentia
inscientemente impelido a bater com tal força com a batuta no pódio, que ela me
desaparecia das mãos, desfeita em pedaços, e passava, em voo rasante, por cima
das cabeças inocentes dos músicos espantados. Valia-me nessas ocasiões um
trompetista muito imaginoso. Aluno brilhante do curso industrial e aprendiz de
marcenaria, estava sempre munido de uma batuta suplente, para amavelmente me
colocar nas mãos, nessas lamentáveis e imperdoáveis ocasiões de frustração...e
má-criação, da minha parte.
Entretanto, dada a indesejável repetição desse bizarro
fenómeno, um belo dia, quando a batuta, desfeita em pedaços, voou mais uma vez
pelos ares, levanta-se da cadeira um saxofonista, aprendiz de mecânica,
aproxima-se do pódio e, entre as gargalhadas de todos os músicos, a que eu não
pude deixar de associar-me, oferece-me sorridente uma batuta de ferro fundido,
gesto que eu agradeci com uma profunda vénia, uma das poucas coisas que eu
sabia fazer bem, quando estava no pódio, de batuta na mão, diga-se em abono da
verdade. Essa preciosa e exótica dádiva achei-a de tal forma original e
significativa, que, metida numa mala, ao lado de uma linda batuta, feita ao
torno, cheia de floreados, com que o dito e engenhoso aprendiz de marcenaria um
dia me presenteou, ainda hoje me acompanha.
Apesar da sua modéstia, comparada com a da Casa Pia, a
outra única banda colegial de Lisboa, naquele tempo, apraz-me evocar, com
agridoce nostalgia, e mantidas as devidas proporções, três pontos altos vividos
pela banda das Oficinas de São José, sob a minha regência de paupérrimo e
modestíssimo amador.
O primeiro foi o convite oficial feito pelas
autoridades do Governo para a nossa banda contribuir para abrilhantar, em 1959,
o espectáculo organizado no Estádio do Restelo, em homenagem à Princesa
Margaret, da Inglaterra, por ocasião de uma visita oficial a Portugal, durante
seis dias. Embora os grandes aplausos das multidões que encheram o estádio
fossem justamente para o mítico tattoo militar realizado pelos esquadrões a
cavalo e de motos da Guarda Nacional Republicana, a banda das Oficinas de São
José deu um arzinho da sua graça com uma série de marchas ligeiras e foi
respeitosamente aplaudida.
O segundo ponto alto foi a banda ter sido convidada
pela poetisa Fernanda de Castro, viúva de António Ferro, para dar dois
concertos no Jardim da Estrela, de Lisboa, por ocasião da realização das Festas
Nacionais do Mundo Português, por ela organizadas.
Transido de medo por não estarmos à altura das
circunstâncias – tocar em público, num vistoso coreto, para milhares de pessoas
-, a banda acabou por sair-se discretamente bem e ser generosamente aplaudida.
É que, por um daqueles felizes acasos, com que às vezes a sorte bafeja os
pobres mortais, à última hora, quando já estávamos a fazer as afinações, para
dar início ao primeiro concerto, surge-me no coreto, como que por milagre, um
jovem músico, trajando com orgulho a nossa farda e munido de um trompete
dourado, a oferecer-me os seus préstamos.
Antigo aluno das Oficinas de São José, a tocar na Banda da Marinha, esse músico
profissional (e providencial) nada mais teve que fazer senão passar rapidamente
os olhos pelas peças do nosso magro reportório para se habilitar a tocar
devidamente as partes de primeiro trompete. Só me pediu uma coisa: que lhe
deixasse tocar um solo numa das peças, o que implicou um pequeno sacrifício,
por parte do brioso e competente músico da minha banda, indigitado para
desempenhar essa função.
Chega o momento do solo do trompetista, engastado numa
rapsódia de canções populares portuguesas. De pé, à boca do coreto, o solista
apruma-se, respira fundo, enche-se de brio e delicia e arrebata a vastíssima
assistência – e os membros da banda e o maestro também - com a sua deslumbrante
actuação ad libitum.
O terceiro ponto alto da banda foi o concerto dado no Pavilhão de Desportos de
Lisboa, por ocasião de uma efeméride cujo nome não recordo. Sei, porém, que o
anfiteatro estava superlotado e que o concerto foi gravado pela Televisão
Portuguesa, no tempo em que havia apenas um canal, e que, passados uns dias,
foi transmitido para o país inteiro, para júbilo e estímulo dos adolescentes e
jovens músicos amadores da Banda das Oficinas de São José de Lisboa, “de boa memória”.
António Cirurgião
sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023
A morte como serviço público de interesse geral: uma proposta modesta.
A morte como serviço público de
interesse geral, ou uma proposta modesta para a resolução do impasse
legislativo relativo à despenalização da morte medicamente assistida
A inclinação algo fatídica, ou simplesmente mórbida,
deste escrito tem uma explicação que convém avançar logo de início: a
incapacidade crónica do nosso legislador em resolver o problema da eutanásia e
do suicídio assistido, tendo o correspondente diploma sido já duas vezes rejeitado
pelo Tribunal Constitucional, para além de objeto de veto político pelo Senhor
Presidente da República.
É que, convenhamos, nos encontramos perante um problema
da maior relevância para os destinos da nação, estando nas mãos do legislador contribuir
de forma decisiva e expedita para a sua resolução. Trata-se de um problema que
não se coaduna com a aparente impreparação, ou incapacidade de outra ordem, dos
nossos legisladores para disponibilizarem ao conjunto dos cidadãos e demais
residentes, especialmente os idosos, a possibilidade de contribuírem voluntariamente
de forma significativa, através da própria morte, para o grande desígnio da
inversão da tendência aparentemente inexorável para o envelhecimento da
população nacional e a consequente situação insustentável que se vive no serviço
nacional de saúde.
É certo que nem tudo se perdeu ao longo das sucessivas
propostas desenvolvidas pelo legislador. Assim, nos primeiros projetos falava-se
ainda, em termos injustificadamente restritivos, da antecipação da morte
medicamente assistida em «situações de sofrimento extremo» ou «intolerável»,
com «lesão definitiva de gravidade extrema, ou doença incurável e fatal». Agora,
de modo muito mais razoável e socialmente ajustado, com a desejável abrangência,
fala-se de «situação de sofrimento de grande intensidade – definida por
referência ao «sofrimento físico, psicológico e espiritual» –, com lesão definitiva
de gravidade extrema ou doença grave e incurável».
São passos no caminho certo, que nos leva a encarar sem
rodeios a morte como uma opção livre de qualquer utente do serviço nacional de
saúde, seja qual for a índole do problema de saúde, real ou sentido como tal,
que o afete. Todavia, mesmo a atual proposta legislativa mostra bem a
necessidade de libertar a prática da morte medicamente assistida de um sistema
de intrincada distinções concetuais e definições legais que fazem certamente as
delícias de juristas e comissões de ética, mas nada acrescentam em termos de
proteção do único valor a respeitar na matéria: a livre decisão do indivíduo,
ainda que esclarecida pelos profissionais especializados e respaldada pelo impecável
funcionamento burocrático das estruturas do serviço nacional de saúde.
Por outro lado, não nos importa, reconheçamo-lo desde
logo, a situação do suicídio assistido, isto é, daqueles que estão, apesar de
tudo, em condições de pôr fim às suas vidas, ainda que com assistência de
terceiro. Procurar resolver um problema da magnitude daquele que nos ocupa unicamente
na perspetiva do respeito da capacidade de atuação do indivíduo autónomo é,
convenhamos, uma atitude claramente desadequada em face da gravidade dos interesses
sociais em presença e até de pendor acentuadamente elitista. É por outras
palavras, colocar acima da vontade a capacidade individual de a executar. O que
nos motiva é, pelo contrário, a inegável, e premente, dimensão social e
económica da questão.
Torna-se, pois, necessário encarar e formular o problema
partindo de novas bases.
A solução que propomos é, julgamos, simples e expedita,
envolvendo apenas leves alterações a um diploma já em vigor, relativo à
proteção do utente dos serviços públicos essenciais. Do que se trata é
simplesmente de acrescentar a morte assistida aos serviços públicos essenciais
já previstos na lei, a saber: o serviço de fornecimento de água, o serviço de
fornecimento de energia elétrica, de fornecimento de gás natural e gases de
petróleo liquefeitos canalizados, o serviço de comunicações eletrónicas, os serviços
postais, o serviço de recolha e tratamento de águas residuais, os serviços de
gestão de resíduos sólidos urbanos e o serviço de transporte de passageiros.
Parece ser evidente a proximidade entre a
disponibilização generalizada da morte assistida e os demais serviços públicos
essenciais que o Estado moderno coloca ao alcance de todos os cidadãos e
residentes. Com efeito, a aglomeração das populações nos espaços reduzidos das
grandes cidades, provocada pelo desenvolvimento industrial a partir dos séculos
dezanove e vinte, deu azo a novas condições e exigências para a condução
individual da existência. Ora, a concentração espacial da população
desencadeada pela industrialização levou a que o espaço de vida controlado pelo
indivíduo tenha diminuído cada vez mais (da casa, quintal e oficina para o apartamento
e o local de trabalho), enquanto a tecnologia expandiu muito esse mesmo espaço
de vida. Deste modo, a perda da proteção que uma certa independência dava à
existência individual foi compensada pela instituição de serviços que, graças
ao extraordinário desenvolvimento tecnológico das últimas décadas, atendem às
necessidades do indivíduo e lhe tornam possível levar uma vida sem um espaço controlado
por ele: gás, água, energia elétrica, saneamento básico e, finalmente, morte.
Esta transformação vale para todos, independentemente do seu nível riqueza,
pois corresponde ao facto de que, no modo de vida dos povos altamente
industrializados, desapareceram as formas de existência autónomas e
autossuficientes.
Há, nesta conformidade, um traço em especial do regime a
que deve obedecer a prestação de serviços públicos essenciais tendo em vista a
proteção do utente que nos parece especialmente promissor na resolução do
impasse legislativo a que chegámos.
Trata-se da regra que proíbe a imposição de consumos
mínimos de serviços de interesse geral. Com as necessárias adaptações, tal como
não é possível impor consumos mínimos ao utente dos demais serviços públicos
essenciais, também não deverá ser possível impor à pessoa que almeja a própria
morte quaisquer restrições à decisão tomada com esse fim decorrentes da sua
situação de saúde. Pelo contrário, é somente o respeito da vontade, real ou
presumida, de cada utente que urge acautelar, sendo certo que as estruturas do
serviço nacional de saúde saberão filtrar esse respeito em termos socialmente
adequados.
Encontrada, pois, a solução para o impasse normativo que
o legislador não quer, ou não se encontra em condições de ultrapassar, importa
afrontar a objeção da “rampa escorregadia” que muitos suscitam, ainda presos
num modo de pensar a questão tributário de atavismos resultantes de séculos de
imposição de uma moral social castradora da liberdade individual e avessa ao
funcionamento imperturbado das estruturas administrativas que são o seu
principal garante nos tempos atuais.
Tal como as considerações anteriores evidenciam, a morte
não é, já, no momento histórico presente, um acontecimento que ocorre num
espaço controlado pelo indivíduo, à semelhança do que sucede com os demais
serviços públicos de interesse geral. O reconhecimento desta dependência dá também
a resposta à principal objeção que nos poderia ser oposta: se o serviço
nacional de saúde tem como principal missão assegurar a vida, como justificar
que o mesmo assuma a tarefa de administrar a morte? Pois é precisamente esta a
questão essencial: se ao Estado cabe assegurar a vida, reconheça-se-lhe também a
capacidade, certamente menos pesada do ponto de vista económico, de administrar
a morte! De resto se, para se assegurar a vida nem sempre se respeita a vontade
individual, não temos razões para não acreditar que, ao menos na morte, prevalecerá
um respeito escrupuloso dessa vontade.
Rejeitamos, por último, que a implementação da proposta
agora formulada possa conduzir a uma compreensão das instalações hospitalares
como manifestações daquilo que alguns designam com o novo paradigma biopolítico
da modernidade, centrado no campo de extermínio. Estas, e outras visões apocalípticas
semelhantes, devem ser afastadas convictamente com base na simples observação
de que nunca, como nos tempos atuais, se deram tantas condições à vontade
individual para prevalecer sobre quaisquer outras considerações, sejam de que
índole forem. Resta-nos, a cada um de nós, aguardar o momento em que nos caiba
exercer essa vontade, sempre sob a tutela esclarecida de profissionais bem
preparados.
Miguel Nogueira de Brito
segunda-feira, 16 de janeiro de 2023
Κωνσταντίνος e a tentação da política.
Por
estes dias, reuniram-se em Atenas sete chefes de Estado para despedir um
cidadão privado.
A
sua morte, aos 82 anos, no seu país natal, mas com passaporte estrangeiro,
motivou um comunicado seco do governo conservador de Atenas, que ficou a
milímetros de saudar a morte de Konstantínos, com uma frieza que muito
provavelmente custará votos a Kyriakos Mitsotakis nas próximas eleições.
Antigo
campeão olímpico, o último rei simultaneamente filho de rei e genro de rei – e
também o último da sua dinastia em resultado dos erros que cometeu – chegou à
sepultura como um cidadão privado e estrangeiro. A decisão de recusar a
Constantino II um funeral de Estado, decidida em reunião do Conselho de
Ministros, levantou tal polémica que Mitsotakis teve de emendar a mão e
permitir honras adicionais ao cidadão privado.
Na
manhã do funeral e durante várias horas, milhares de cidadãos passaram pela pequena
capela ao lado da Catedral Ortodoxa de Atenas, beijando devota e quase
clandestinamente a sua urna, envolta nas cores, mas não na bandeira grega. Nem
na morte Constantino II conseguiu que o seu país ultrapassasse as feridas de um
reinado curto, mas traumático para os gregos e para o rei.
Nascido
em plena Segunda Guerra Mundial, filho dos Príncipes Herdeiros Paulo e
Frederica, Constantino viveu os seus primeiros anos num exílio depauperado,
entre a Pretória e o Cairo, com a mãe e as irmãs Sofia, futura Rainha de
Espanha, e Irene. O fim da Guerra encontrou uma Grécia cada vez mais
republicana e comunista, que resistia ao regresso da Família Real. A manutenção
da Monarquia foi validada em referendo em 1946, o que permitiu o regresso do
impopular Rei Jorge II e do seu irmão, o Príncipe Herdeiro. Jorge II morreria,
sem filhos, no ano seguinte; Paulo sucedeu-lhe como Rei dos Helenos e
Constantino tornou-se herdeiro do trono, diádokhos, aos 6 anos.
A
Grécia era uma peça importante no xadrez internacional e a guerra civil que se
seguiu e terminou em 1949 foi um dos primeiros episódios da Guerra Fria, com insurgentes
comunistas apoiados pela União Soviética e o governo apoiado pelo Reino Unido e
pelos Estados Unidos. A vitória militar das forças governamentais deixou
latentes tensões que iriam perdurar por muitos anos e explicam em parte a
instabilidade que sempre marcou o país, com evidências recentes no consulado de
Tsipras-Varoufakis.
Paralelamente
a estas tensões, Paulo e Frederica criaram uma corte faustosa, onde se sucediam
bailes, cruzeiros e muito raffinement. A Rainha da Grécia encontrava
sempre uma nova ocasião para celebrar e fazia-o com esplendor que trazia para o
Mediterrâneo pompas dignas das cortes no Norte, de onde, aliás, eram
originários os reis gregos. O custo desta pompa haveria de começar a ser visto
como incomportável para um país onde tanta gente passava dificuldades, ao que
Frederica de Hannover sem hesitação poderia ter respondido com a célebre frase atribuída
a D. Maria Pia de Sabóia, Rainha de Portugal: “quem quer rainhas, paga-as”.
A factura foi pesada para ambas.
A
vida pública da Família Real era acompanhada de constante apoio político dos
Estados Unidos da América. Frederica era uma fervorosa anti-comunista e, como
tal, encontrava sempre abertas as portas da Casa Branca. Os comunistas gregos
pagavam na mesma moeda e chamavam-lhe prussiana e nazi. Se dessa acusação a
Rainha se poderia livrar, já da sua tentação de interferir na política grega
será mais difícil defendê-la.
Em
2003 a revista “Socialist Worker”, tentando angariar manifestantes para
a possível visita de George W. Bush a Londres, publicava um artigo (“How
we wrecked tyrants’ visits in the past”) em que recordava com orgulho
os protestos que marcaram a visita
de Estado de Paulo e Frederica a Londres, 40 anos antes. Foi, de facto, uma
visita de raro tumulto em Inglaterra, com o peso que tal acarretava para a
Rainha Isabel II, visto ter o seu marido nascido Príncipe da Grécia e ter uma
relação próxima com os tios, que se iria estender às gerações seguintes. Os
manifestantes reclamavam a libertação de prisioneiros comunistas e insultavam
especialmente Frederica, impassível no seu desfile das melhores jóias, com os
vitupérios habituais.
Três
anos antes, em 1960, o herdeiro do trono, Constantino, conquistara a primeira
medalha olímpica de ouro para a Grécia em quase 50 anos. Este feito colocava-o
numa posição de quase herói nacional, visto que o seu mérito desportivo era
merecedor de especial reconhecimento e de orgulho dos seus compatriotas. Mais
dado ao desporto do que aos estudos, Constantino daria mais uma alegria à mãe
ao abandonar os romances menos ortodoxos e anunciar o noivado com a filha mais
nova do Rei da Dinamarca, Ana Maria.
O
golpe mais duro para Frederica chegou com o diagnóstico de um cancro ao Rei
Paulo. Importaram-se médicos e especialistas para Atenas mas ao fim de uns
meses, a 6 de Março de 1964, o Rei morria com apenas 62 anos, deixando viúva
uma rainha que adorava sê-lo.
Constantino tornou-se Rei dos Helenos aos 23 anos, jurando diante do governo socialista de Georgios Papandreou “em nome da Santíssima Trindade consubstancial e indivisível, proteger a religião dominante dos Helenos, de respeitar a Constituição e as leis da nação helena”.
Premonitoriamente,
a capa da Paris Match que noticiava a morte de Paulo mostrava
Constantino II fazendo continência com o bastão de marechal. A um canto da
capa, mas em primeiro plano, estava Frederica. A influência da Rainha-Mãe, mas
sobretudo o seu exemplo, foram porventura o que de pior podia ter acontecido a
um rei impreparado e ingénuo, num reino que não era para novos.
Seis
meses depois da subida ao trono, o casamento de Constantino
II da Grécia e Ana Maria da Dinamarca tornou Atenas no foco da atenção
mediática do mundo. Foi a última grande união dinástica entre duas casas reais
reinantes, o princípio do fim de um mundo em que o amor podia coincidir com o
dever, mas em que este se sobrepunha. Durante dias sucederam-se bailes,
cortejos, paradas militares, o cintilar ofuscante de diamantes e o desfile de condecorações
de cores garridas, de reis, rainhas, príncipes e princesas rodeados de genuíno
entusiasmo popular, como não mais se veria.
O
grande casamento de Atenas foi a glória final da Rainha Frederica, a última matchmaker
da Europa do século XX. O fim da cerimónia, onde os cânticos e o incenso faziam
recordar o fausto oriental de Constantinopla, viu chegar um momento teatral,
quase patético, em que Frederica fez uma vénia à nora, a nova Rainha, que lhe
devolveu a vénia. Era uma metáfora do que estava para vir. Se apenas Frederica
se tivesse retirado, como a vénia implicava, em vez de interferir…
Os
três anos que se seguiram foram um turbilhão político. E a tentação da
interferência na política, talvez a mais perigosa tentação para os reis
constitucionais, foi a perdição de Constantino. Recusou nomeações de ministros
e forçou a demissão Georgios Papandreou, o socialista que ancorava a
estabilidade. Sucederam-se meses de manifestações contra o rei, com Constantino
a nomear governos que sucessivamente caíam no Parlamento por falta de apoio. Ora,
na Grécia a única dinastia que foi acabou destituída foi mesmo a da Família Real,
sucedendo-se no cargo de primeiro-ministro filhos, netos e sobrinhos de antigos
primeiros-ministros: Constantino haveria de se cruzar com os Papandreou várias
vezes ao longo do resto sua vida.
Para
resolver a crise, Constantino marcou eleições para o fim de Maio de 1967. Não
se chegaram a realizar. Um golpe de Estado, a 21 de Abril, orquestrado pelo
exército com o argumento de que estavam a prevenir o regresso do comunismo,
seria o golpe de misericórdia ao reinado de Constantino. A incapacidade do Rei para
rejeitar de imediato o golpe e se distanciar foram vistas como conivência,
assim como a fotografia em que o Rei surge à frente dos coronéis da Junta
Militar na escadaria do Palácio Real. O habitualmente sorridente Constantino II
acreditou ingenuamente que a sua expressão facial na fotografia, fechada e
dura, seria sinal suficiente do seu desagrado e da rejeição do governo dos
militares. A percepção generalizada foi a contrária.
Este
episódio haveria de inspirar o cunhado de Constantino, Juan Carlos I de
Espanha, a lidar com a tentativa de golpe de 23 de Fevereiro de 1981. A
condenação internacional perante o golpe de Estado caiu também sobre o Rei, de
todos os quadrantes, incluindo a sua família dinamarquesa que deixou claro que
não seria bem-vindo em Copenhaga enquanto a situação perdurasse. Constantino
tentou, sem sucesso, que os Estados Unidos interviessem em seu favor e acabou
por ensaiar um contragolpe em Dezembro, que falhou. Constantino, Ana Maria e os
seus dois filhos, incluindo o recém-nascido herdeiro, partiram para Roma.
A
Grécia é o país que mais vezes referendou a forma de Estado no século XX,
tornando-se numa monarquia sucessivamente validada pelo povo. Constantino II
alimentou por isso e durante muitos anos a ideia de que o seu exílio não era
definitivo, como não havia sido para o seu avô Constantino I, e para o seu tio,
Jorge II, que tinham recuperado o trono depois de o perderem. Formalmente,
aliás, Constantino manteve-se como rei até 1973, quando o seu alegado
envolvimento numa nova tentativa de golpe contra a Junta Militar levou a que
fosse proclamada a república e feito um plebiscito para a legitimar.
Quando
a democracia foi restaurada, em 1974, o inesperado aconteceu novamente. O líder
da direita tradicionalmente monárquica e antigo primeiro-ministro, Konstantinos
Karamanlis, marcou um novo referendo, mas não só não fez campanha pela monarquia,
como se recusou a autorizar que o Rei regressasse para fazer campanha,
permitindo-lhe apenas uma mensagem ao país, a partir de Londres. Constantino
admitiu os seus erros, fez a profissão de fé na democracia e prometeu que a mãe
não se intrometeria na política – os cartazes da propaganda republicana tinham apenas
a fotografia de Frederica e anunciavam: “Vem aí!”. A república teve uma
vitória retumbante com quase 70% dos votos.
Constantino
viveu as suas décadas de exílio expectante, cada vez menos convencido de que
regressaria do exílio para uma pátria que o receberia como o herói olímpico a
quem os pecados seriam perdoados. Permitiram-lhe regressar por um par de horas,
em 1981, para enterrar a mãe, a Rainha Frederica, no cemitério de Tatoi. O
complexo de Tatoi seria, aliás, o pretexto da grande batalha de Constantino contra
o Estado grego.
Em
1992, o Primeiro-Ministro Konstantinos Mitsotakis, sobrinho-neto, primo e pai
de primeiros-ministros, chegou a acordo com Constantino para lhe devolver a
propriedade de Tatoi, que o antigo rei considerava privadas, a troco das terras
no resto da Grécia. Constantino regressou a Atenas no ano seguinte, mas a
pressão política sobre o governo de Mitsotakis foi tal que lhe pediram para
voltar a sair. No ano seguinte, as eleições ditaram o regresso ao poder de Andreas
Papandreou, antigo primeiro-ministro, filho e pai de primeiros-ministros e um
velho conhecido de Constantino – fora afinal à volta do alegado envolvimento de
Andreas Papandreou em conluios durante o governo do pai que começara a crise em
1965. Papandreou fez aprovar legislação a reverter o acordo com Mitsotakis e a
retirar a nacionalidade grega a Constantino. O Rei não se conformou. Pôs uma
acção no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que viria a ganhar em forma de
indemnização, mas sem recuperar Tatoi.
Só
muito mais tarde e muito discretamente pôde Constantino regressar para viver os
seus últimos dias, tranquilos, na terra que o rejeitou por ampla maioria. Ironicamente
e novamente em vésperas de eleições, foi a um novo Mitsotakis, Kyriakos, filho
e sobrinho-bisneto de primeiros-ministros, que coube tomar as decisões sobre o
funeral do antigo monarca, arriscando desta vez ir em sentido contrário das
decisões do pai e mantendo-se longe dos monárquicos e do funeral.
A
gentileza e bonomia de Constantino II fizeram com que à sua volta se
continuassem sempre a reunir os reis europeus, que o tratavam como um dos seus.
Em Atenas, embalado pela polifonia ortodoxa, incensado pelo Arcebispo de
Atenas, Constantino foi rodeado por esses reis por uma última vez. Ao lado das
mais importantes condecorações gregas, dinamarquesas e espanholas, estava a sua
maior glória, a medalha de ouro olímpica. Georges Menant, que assinava a peça
de Atenas para o Paris Match quando Constantino subiu ao trono, terminava o
texto dirigido ao novo rei com “Régnez en paix, Sire. Les dieux feront le
reste.” Os deuses gregos não foram generosos para Constantino.
Ademar
Vala Marques
Janeiro
2023