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domingo, 7 de dezembro de 2014
terça-feira, 2 de dezembro de 2014
Norma e os cafajestes
Norma Bengell
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Caiu das
estrelas, nem eu estava à espera. Maravilhoso achado nos fundos de uma livraria, O Rio no Cinema, de António Rodrigues,
tratado coffee table que nos pega na
mão e leva por cada centímetro de areia filmada ao longo de um século. Dos
alvores do preto e branco até Tropa de
Elite, cinema brasileiro e estrangeiro, do novo e do velho. Na página 97,
numa nota curta demais, paramos num apeadeiro chamado Os Cafajestes. Filme de 1962, da autoria de Ruy Guerra, inspirado
na nouvele vague, ficou na História
como a primeira aparição de um nu frontal no cinema do Brasil. Mas o que a cena
mais tem de memorável vai muito para lá da nudez da protagonista, a actriz
Norma Bengell. Um homem, moço rico do Rio, de nome Jandir, leva uma mulher para
uma praia deserta, o Recreio dos Bandeirantes. De repente, surge outro homem em
cena, saindo do porta-bagagem do automóvel onde estava escondido. A aracnídea
urdidura consistia em fotografar e, depois, chantagear a jovem. Num
plano-sequência sufocante de quatro minutos, os dois homens cercam a mulher,
desamparada. Rodopiam o automóvel em torno do seu corpo. É cena nouvelle vague, por uma pena. Alguns achá-la-ão datada e gasta, previsível,
enfadonha, até medonha. É medonha, de facto. Cena de uma violência incrível, de
martírio de uma mulher. Desesperada e nua, como na música de Chico Buarque.
Anteontem, o
prof. Marcelo leu na TV a carta de uma aluna que dizia que, em visita à
Assembleia, ficara surpreendida por ter visto os deputados no hemiciclo a
consultarem sites que mostravam
«mulheres avantajadas». Muito fino e distinto, o senhor deputado José Magalhães reagiu
assim: «Marcelo parece ter um problema com mulheres avantajadas». Pois parece
que nós temos aqui um problema é com o deputado José Magalhães, um homem
asselvajado.
Mulher avantajada, isso sim, era Norma Aparecida Almeida Pinto Guimarães d’Áurea Bengell, a actriz que protagoniza a mulher
desamparada de Os Cafajestes. Filha
de um alemão afinador de pianos e de uma senhora rica da zona Sul do Rio de
Janeiro, Norma cresceu em condições humildes. A mãe fora deserdada pela família
em virtude – ou desvirtude – de se ter junto ao alemão sem boda ou celebração.
Às tantas, Norma teve de ir viver para a Alemanha, com o pai, entretanto
separado da menina-rica da zona Sul. De regresso aos trópicos, Norma começou a
trabalhar como modelo, nos anos 50, e mais tarde como actriz de revista,
cantora e actriz de cinema. À semelhança dos seus pais, Norma escandalizaria a
sociedade carioca da época por ter ido viver com o actor italiano Gabriele
Tinti, em 1964. Separou-se de Tinti em 1969, pois o transalpino queria
proibi-la de trabalhar fora de casa. À época, dizia Jece Valadão (o protagonista de Cafajestes), Norma Bengell era «a mulher mais desejada
do Brasil». A cena da praia do Recreio dos Bandeirantes valera-lhe a censura da
Igreja e de organizações ultraconservadoras, como uma, poderosa, com o risível
nome «Tradição, Família e Propriedade».
Fez carreira no exterior, correu o
Atlântico para cá e para lá. Em 1968, foi sequestrada no Teatro de Arena, em
São Paulo, e levada para o Rio por três homens do 1º Batalhão Policial do
Exército. Interrogada durante várias horas sob acusação de «subversão na classe
teatral», esta seria a primeira das muitas detenções que sofreu durante a
ditadura militar. Participou na célebre Passeata dos Cem Mil, juntamente com
outras actrizes de renome. Aqui se vê a sua grandeza, que torna pequena,
minúscula, ínfima de infame, a tirada machista do deputado Magalhães
(recorda-se: «Marcelo parece ter um problema com mulheres avantajadas»). A
história é a seguinte: muitos anos depois, em 2010, a então candidata a
presidente Dilma Rousseff colocou, entre imagens da sua trajectória biográfica
de resistência à ditadura, a fotografia em que Norma aparecia, ao lado de
outras actrizes, na Passeata dos Cem Mil. Voluntária ou inadvertidamente, Dilma
fez-se passar por Norma. Esta, que poderia ter reagido mal a este gesto
abusivo, condescendeu, relativizou, perdoou o gesto de Dilma, que muitos
interpretaram como uma tentativa de enganar o eleitorado. Norma mostrou
grandeza, desprendimento.
Na Passeata dos Cem Mil, contra a censura
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Assumida feminista, assumiu também ter
tido uma vida amorosa preenchida. Há muito de polémico no que disse e fez. Em
1984, quando Mick Jagger teve uma pavorosa incursão pelos trópicos, filmou com
ele o videoclipe da música She’s the Boss,
desempenhando o papel de «fazendeira decadente e autoritária». Levou à letra a
função: «Cruzei as pernas sobre o dorso do Mick para roubar a cena e copulei feito
uma louca, enquanto ele cantava. Cavalguei um garanhão, ele enlouqueceu. Claro,
depois eu avisei: “Olha, estou acostumada, só fiz isso na vida”», disse Norma numa entrevista da época.
Nunca quis ter filhos, confessando ter
feito 16 abortos (novo escândalo, claro). Morreu no Rio de Janeiro, numa
madrugada de Outubro do ano passado. Com 78 anos, de cancro no pulmão. Será
recordada não como realizadora ou actriz, como cantora ou resistente à
ditadura. Lembramo-la, sobretudo, como aquela mulher nua e indefesa que, na
praia dos Bandeirantes, teve de enfrentar a maldade machista dos cafajestes.
António Araújo
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domingo, 22 de abril de 2012
Mr and Mrs Clark and Percy.
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Em 2011, com poucos meses de intervalo, morreram dois nomes grandes da arte britânica: Lucien Freud, em Julho passado, e Richard Hamilton, no mês de Setembro, também passado. Desde então, andam alguns tontos numa roda-viva, entregando-se à vã tarefa de designar o sucessor de Freud ou Hamilton como «maior artista inglês vivo». À semelhança dos jogos da bola, nesta refrega surgem apenas dois candidatos ao título: Damien Hirst, nascido em Bristol em 1965, um médio muito ofensivo no mais literal sentido do termo, e o veterano David Hockney, natural de Bradford, 1937. O derby, assaz idiota, é, como dissemos, acalentado por certos críticos, muitas vezes os mesmos que, curiosamente, escrevem sobre a «frivolidade» e a «facilidade» dos trabalhos de Hirst ou de Hockney, verberando o seu carácter «popular» e «comercial». Os ingleses sempre gostaram de jogos e corridas, com apostas de permeio. Por isso, é natural que se deleitem com esta rivalidade entre dois artistas cujos apelidos, curiosamente, começam pela letra H: Hockney vs. Hirst. Ou pela letra D, se preferirmos os nomes próprios: David vs. Damien. Noutras paragens, em terras cultoras do belicismo civil e das touradas de morte, há igualmente quem esteja a embarcar nesta esparvoada contenda. Nas páginas do El País, Ángela Molina, rapariga que geralmente até escreve com brio e salero nestas matérias das artes, lá foi resvalar neste registo Hockney vs. Hirst, em infeliz crónica publicada aos três dias do mês de Março do corrente ano de 2012.
Ao que parece, os artistas concorrentes estão a alinhar na jogada, tendo o septuagenário Hockney dado uma bicadita pérfida, e escusada, em Damien Hirst. Em alguns cartazes que anunciaram a exposição David Hockney: A Bigger Picture, patente na Royal Academy até 9 de Abril, dizia-se: «All the works here were made by the artist himself, personally». Traduzido para linguagem bíblica: «O que ides ver, caríssimos irmãos, é tudo trabalhinho saído das mãos cá do rapaz, com o suor do seu rosto e sem ajudinhas de nobody elsa». Entrevistado pela Radio Times, Hockney assumiu que estava a referir-se a Hirst, criticando o facto de este trabalhar apoiado numa equipa de assistentes. Dias depois, algo embaraçada, veio a Royal Academy, num comunicado muito formal, desmentir que Hockney estivesse a aludir a Damien Hirst ou a pôr em causa o seu processo criativo. De facto, até Leonardo Da Vinci jogava em equipa, como bem sabemos. Ficou famoso o 4+4+3 com que fez uma duplicata a papel químico da Virgem dos Rochedos, já mencionada no sempre atento blogue Malomil, aqui.
Entretanto, o The Guardian lançou uma sondagem online, em que a esmagadora maioria deu razão a Hockney e às suas alfinetadas em Damien Hirst: 84,7% dos inquiridos afirmaram, preto no branco, que artista que é artista deve trabalhar sozinho. Os tablóides, já fartinhos de serem amesquinhados por alimentarem diariamente o operariado britânico a chocolates M&M’s (Meninas com Mamas), rejubilam sempre com estas cenas, sobretudo porque elas mostram que também nas estratosferas da Alta Cultura há quezílias e ciúmes, ódios de estimação e invejas mesquinhas. O sórdido cortejo de vaidades do mundo mundano.
A aumentar o frisson, Hockney e Hirst coincidiram por breves dias em duas grandes exposições londrinas: a de Hockney, que já referimos, fechou portas a 9 de Abril na Royal Academy; dias antes, a 4, Hirst abriu uma grande exibição na Tate Modern (nada menos do que 14 salas – uma das quais convertida em loja para o merchandising –, naquela que poderá ser a exposição mais visitada de sempre na história da Tate Modern). Enquanto isso, como grand seigneur, o imortal falecido Lucien Freud paira muito acima desta querela: os seus portentosos Portraits mostram-se na National Portrait Gallery até 27 de Maio. Freud e Hockney, note-se, trocaram mimos: o neto do fundador da Psicanálise fez um retrato de Hockney e este, mais poupado nas tintas, retribuiu o óleo com uma aguarela, em que Lucien surgia ao lado do seu assistente, um jovenzito de nome David Dawson. O encontro de talentos foi fotografado. Adiante. Até Maio, portanto, Portraits de Freud na capital londrina. Depois, vamos de Olimpíadas (Julho-Agosto). Ano de Jubileu.
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Lucien Freud, David Hockney, 2002
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Hockney e Freud fotografados pelo assistente deste último, David Dawson, em 2003 |
Para percebermos até onde chega a mania britânica dos concursos populares e dos títulos sucessórios importa referir que, ainda mal o cadáver de Lucien Freud arrefecera, já o The Telegraph publicava um artigo de Mark Hudson com o interrogativo título: «Is David Hockney’s Britain’s greatest living painter?» . Para o autor da peça, Hockney era o único candidato possível a arrecadar «the unofficial title left vacant by the death of Lucian Freud». Os potenciais concorrentes eram descartados liminarmente. Sir Anthony Caro e Sir Howard Hodgkin? Too serious and too elitist. Damien Hirst e Tracey Emin? Too young and too polarising. Assim, restava apenas David Hockney. O The Telegraph concluía dizendo que, se houvesse um título oficial, nunca lhe seria atribuído, pois o artista é considerado demasiado «vulgar» pela crítica elitista. E, adiantava o Telegraph, David Hockney certamente recusaria o título oficial, como recusara o grau de Cavaleiro com que, em 1990, o quiseram distinguir. Aqui, andou mal o jornal, esquecendo-se que Hockney já antes recebera honras e prebendas: em 1991, foi eleito para a Royal Academy, uma distinção reservada a 80 pintores, escultores e arquitectos; e, desde 1997, é um dos 65 membros da Order Companions of Honour. Meses depois de ser publicado aquele artigo do Telegraph, David Hockney receberia ainda, e sem pestanejar, a prestigiada e exclusiva Order of Merit, como veremos. Garantia igualmente o Telegraph que, na corrida ao título de «maior pintor vivo», se a eleição dependesse do gosto popular, seria Hockney o escolhido, sem margem para dúvida. Para mais, o povo inglês andava agora mais reconciliado com ele, desde que trocou a solarenga Califórnia de A Bigger Splash (1967) e doutras piscinas, onde vivera 25 anos, pelas verdejantes e bucólicas florestas do East Yorkshire. O ano passado, com Marco Livingstone, publicou um livro delicioso: My Yorkshire. E, também o ano passado, mas sozinho, outro belo livro: A Yorkshire Sketchbook.
A Bigger Splash, 1967
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Picture of a Hollywood Swimming Pool, 1964
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Woldgate Lane To Burton Agnes, 2007
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Woldgate Woods, 6 & 9 November 2006, 2006
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A peça jornalística do The Telegraph, à semelhança de tantas outras, insere-se claramente na gigantesca campanha promocional da exposição de David Hockney na Royal Academy, classificada por aquele periódico como «a blockbuster show». Neste mundo das artes e leilões, das milionárias cotações e das massificadas exposições, convém andar de olhos bem abertos. E, sem fazer juízos de intenções ou levantar suspeições, a verdade é que a morte de Lucien Freud serviu na melhor das perfeições para abrir esta disputa por um título imaginário e virtual, do mesmo passo que projectava o nome de Hockney e Hirst e as respectivas retrospectivas (ou, melhor, «grandes exibições», já que, pelo menos no caso de Hockney, não se trata de uma retrospectiva).
O artista
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O merchandising
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Um Champagne Lunch com o artista
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Não é a primeira vez que Hockney é envolvido, voluntária ou involuntariamente, nestas disputas concursais em que a Fama e o Proveito caminham geralmente de mãos dadas. Já foi eleito, numa sondagem a 1.000 pintores e escultores, «o artista mais influente do Reino Unido» e, noutra ocasião, «o artista vivo mais popular do Reino Unido»… Em Janeiro deste ano, como dissemos, foi designado pela Rainha Isabel II membro da Ordem de Mérito, juntamente com o antigo Primeiro-Ministro da Austrália, John Howard. Convém esclarecer que, de acordo com os respectivos estatutos, só 24 seres humanos vivos – e da Commonwealth… – podem integrar a Ordem de Mérito. A Grã-Bretanha é, pois, como se vê, um país moderadamente meritocrático: com Mérito, só 24 de cada vez. Há mais uns quantos membros da Order, honorários de 2ª ordem, mas a raridade da comenda dá bem a ideia do que falamos quando falamos de David Hockney. Vai ter como colega Sir Tim Berners-Lee, um senhor graças ao qual está V. neste momento a ler estas patetices sem graça. Sim, foi o inventor da Internet, e ele há tanto site do bom e do barato nesta coisa da Web que nunca agradeceremos o suficiente ao benemérito Tim Berners-Lee.
Em 2005, outro concurso ridículo, lançado pela Radio 4, da BBC, em parceria com a National Gallery. Desta feita tratava-se de escolher «The Greatest Painting in Britain». O público levou Hockney à lista final dos dez quadros mais votados. Com uma particularidade: o quadro de Hockney era o único cujo autor se encontrava vivo e de boa saúde (pese ser um inflamado militante tabagista). Todos os outros artistas – Piero della Francesca, Hogarth, Van Gogh, Turner, Manet, Van Eyck, Constable – já faleceram, de acordo com a notícia trazida a esta redacção pelo Dr. Moita Flores.
O concurso foi ganho por Turner, com Hockney a averbar um honroso 5º lugar, a meio da tabela, sendo apenas ultrapassado por Constable (2º lugar), Manet (3º lugar) e Van Eyck (4º lugar). Em contrapartida, posicionou-se no final desta jornada em posição cimeira relativamente a Van Gogh (6º lugar), Raeburn (7º), Maddox Brown (8º) e Piero della Francesca (9º). Em 10º e último lugar, como sempre, William Hogarth: com duas bolas à trave e uma expulsão justíssima ao minuto 74’ (uma refrega infantil do equatoriano Quinito), deitou por terra as aspirações de disputar no play-off uma ida às competições europeias.
E qual o quadro de Hockney que, entre a sua vastíssima produção, mereceu tamanha distinção do público votante? Mr and Mrs Clark and Percy. Para o povo britânico, é o 5º melhor quadro existente no Reino Unido. No entanto, até gente fina e cultivada parece apreciar a tela. Ainda recentemente, em mais um ranking estético, Sir Roy Strong, antigo director da National Portrait Gallery, enumerava os dez melhores retratos de sempre (na sua subjectiva opinião, claro está). Nesta selecção, encontramos os nomes de Van Dyck, Rembrandt, Van Gogh, Hogarth, Jacques-Louis David, Velázquez. Contemporâneos, apenas dois: Picasso e Hockney. Mais uma vez, este último era escolhido devido a Mr and Mrs Clark and Percy. Curiosamente, nas duas listas, seja na versão popularucha do programa «Today» da Radio 4, seja na visão snobérrima de Sir Roy Strong, surgiam dois quadros: Mr and Mrs Clark and Percy, da autoria de David Hockney, de 1970-1971, e o Retrato Arnolfini, de Jan Van Eyck, um pouco mais antigo – foi pintado a óleo em 1434. Entre os dois quadros há várias afinidades, como veremos. Isto anda tudo ligado, diz o meu amigo António Ernesto. Dou-lhe razão, sempre, pois é um sábio.
Vamos lá então ver agora o famoso quadro:
Mr and Mrs Clark and Percy é uma tela de 304 x 213 cm, pintada a acrílico entre 1970 e 1971.
Antes de entrar na parte chata, um pouco de animação:
Versão animada de Bradley Werner para Art Kick Ass, aqui
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Sem contar com o autor destas linhas, a maior especialista deste quadro é, provavelmente, Catherine Kinley, que em 1995 foi responsável pela brochura que a Tate lhe dedicou e, mais tarde, em co-autoria com Elizabeth Manchester, pelo texto publicado na página oficial da Tate Gallery. Já antes, havia feito outra brochura, David Hockney. Seven Paintings (Tate, 1992), onde Mr Clark era contemplado.
Em 1971, o quadro foi concluído e exibido na National Portrait Gallery. Igualmente em 1971, passou a pertencer à Tate, graças à benemérita amizade dos The Friends of Tate Gallery. Até dá gosto ver um país civilizado.
Como se refere na página oficial da Tate Gallery, a tela inscreve-se numa série de duplos retratos de grandes dimensões que Hockney iniciou em 1968 (cf. Nannette Aldred, “Figure paintings and double portraits”, in Paul Melia, ed., David Hockney, 1995, pp. 68ss; Sarah Howgate e Barbara Stern Shapiro, David Hockney. Portaits, 2006). David pintava casais imaginários desde o início dos anos sessenta, como sucedeu em The First Marriage (A Marriage of Styles), de 1962. A quem pertence The First Marriage? À Tate Gallery, naturalmente.
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The First Marriage (A Marriage of Styles), 1962
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Quando pintou The First Marriage, em 1962, David Hockney não era já um desconhecido. No ano anterior, participara na célebre exposição Young Contemporaries, que, diz-se, inaugurou a Pop Art britânica (corrente a que Hockney sempre recusou pertencer). Em 1963, ano da sua primeira exposição individual, o seu nome era frequentemente citado na imprensa e, em Outubro, a expensas do Sunday Times, vai até ao Egipto, retribuindo a viagem com 43 crayons coloridos (ainda hoje é devoto da arte egípcia e o ponto talvez seja relevante para percebermos a rigidez hierática do gato branco que surge em Mr Clark). Vindo do Egipto, em Dezembro desse ano de 1963 encontra-se em Nova Iorque com Andy Warhol, Dennis Hopper e Henry Geldzahler, o influente Curador de Arte do Século XX do Metropolitan Museum. Todavia, só obtém consagração plena e definitiva quando, em 1967, o seu quadro Peter Getting Out of Nick’s Pool ganha o John Moores Painting Prize, da Walker art Gallery, Liverpool (já tinha obtido o prémio, na sua Junior Section, em 1961). É também de 1967 um dos seus quadros mais famosos, o já citado A Bigger Splash. Onde está A Bigger Splash? Na Tate Gallery, pois claro. Monopolistas!
Na série de duplos retratos que inicia em finais da década de sessenta, os retratados são pessoas verdadeiras, amigos ou conhecidos do pintor. Hockney pintava-os nas suas casas, num estilo que era, em simultâneo, extremamente realista e extremamente simples.
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Cenários clean (aliás, como os estúdios em que labora), intencionalmente despojados de elementos acessórios. Quase tudo o que vemos tem um sentido preciso, por vezes dissimulado. Nada de coisas em excesso. Para quem duvide, veja-se a «limpeza» que, com a ajuda do Photoshop (!), Hockney fez ao quadro O Sermão da Montanha, de Claude Lorrain (c. 1656), em A Bigger Message (2010):
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American Collectors (Fred and Marcia Weisman), 1968
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Christopher Isherwood and Don Bachardy, 1968
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Henry Geldzahler and Christopher Scott, 1969
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George Lawson and Wayne Sleep, 1972-75
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My Parents, 1977
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Cenários clean (aliás, como os estúdios em que labora), intencionalmente despojados de elementos acessórios. Quase tudo o que vemos tem um sentido preciso, por vezes dissimulado. Nada de coisas em excesso. Para quem duvide, veja-se a «limpeza» que, com a ajuda do Photoshop (!), Hockney fez ao quadro O Sermão da Montanha, de Claude Lorrain (c. 1656), em A Bigger Message (2010):
Claude Lorrain, Sermão da Montanha, c. 1656
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David Hockney, A Bigger Message, 2010
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Observemos Mr and Mrs Clark and Percy. Na parede, à esquerda, um quadro. Mas não um quadro qualquer. Trata-se de uma gravura da autoria do próprio Hockney, da série A Rake’s Progress, que o artista produziu entre 1961 e 1963, inspirando-se no conjunto de águas-fortes do mesmo nome que William Hogarth fizera em 1735, mostrando a decadência de Tom Rakewell, filho perdulário de um rico mercador, que dissipara alegremente a herança paterna em actividades filantrópicas, como o jogo e a prostituição, acabando encarcerado nas masmorras da Fleet Prison e, mais tarde, num asilo de loucos. Dentro da pintura de Mr. e Mrs. Clark, David Hockney colocou outra obra sua, dispositivo que não é inédito nem particularmente original na História da Arte. Como se sabe, Velázquez meteu-se dentro de Las Meninas e, ao que parece, Van Eyck fez o mesmo no reflexo do espelho redondo do Retrato Arnolfini. E, perguntais bem, onde é que Velázquez foi beber a idea? A Van Eyck, claro (cf. AA.VV., Otras Meninas, trad. castelhana, 2ª ed., 2007, p. 188). O Arnolfini, representação máxima do pintor in abisso, já inspirou muita gente e chega para todos. Um caso-extremo, que me anda a intrigar, é o de Crucifixo com um Pintor, que Zurbarán pintou em 1660: o pintor retratou-se a si próprio, junto à Cruz, pedindo a Cristo que o ajudasse a pintá-Lo!, segundo nos diz Hans Belting num livro fabuloso, A Verdadeira Imagem, que foi publicado entre nós há pouco pela Ymago. Hockney, que já tinha ensaiado o jogo no quadro A Play Within a Play (1963), começa a interessar-se pelo conceito de picture within a picture precisamente nos alvores dos anos 70 (cf. o ácido, mas interessante, texto de Merlin Carpenter, “David Hockney, 1971”, aqui). Mais tarde, em 1995, fará Photograph of a Photograph with Photograph of a painting with motif July 10th, 1995.
William Hogarth, da série A Rake's Progress, óleos de 1732-33 |
William Hogarth, da série A Rake's Progress, águas-fortes de 1735 |
O quadro na parede de Mr Clark
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Play Within A Play, 1963
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Photograph of a Photograph with Photograph of a painting with motif July 10th, 1995, 1995 |
David Hockney regressará mais tarde a Rake’s Progress, quando concebe o cenário e o guarda-roupa da ópera com o mesmo nome, composta por Igor Stravinsky, com libretto de W. H. Auden e Chester Kallman, a qual foi apresentada primeiramente em Veneza, em 1951, no mítico La Fenice, pela voz não menos mítica de Elisabeth Schwarzkopf. A versão em que Hockney interveio foi levada à cena em 1975, no Glyndebourne Festival Opera. Segundo a Wikipedia, o pintor nasceu com sinestesia, e isso manifesta-se em particular quando concebe cenários para representações musicais, em que as cores e as luzes são aquelas que lhe acodem ao espírito enquanto ouve os acordes da peça que irá ser apresentada.
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É possível que, em Mr and Mrs Clark, ao fazer aquela alusão ao desbragado Tom Rakewell, Hockney estivesse a dar uma bicada – como outras, que adiante veremos – no casal Clark, em especial no marido, Ossie Clark, cuja vida dissoluta o levará à perdição e à morte (um brutal homicídio, não perca, já a seguir!). Mas o facto é que o quarto do casal tinha mesmo na parede uma obra de Hockney e este era íntimo do matrimónio Clark, em especial do seu membro masculino. David Hockney conhecera Ossie Clark em 1961, quando este estudava no Manchester College of Art. Depois, foram juntos estudar para o Royal College of Art, em Londres, e o que entre ambos se terá passado é algo que não interessa aos leitores (por acaso, até interessa, mas convém dizer que não interessa). Academicamente, deram-se bem: Hockney conclui os estudos averbando uma medalha de ouro e Ossie finaliza o curso em 1965 com um first-class degree, o único concedido nesse ano. A primeira vez que o pintor britânico viu o Grand Canyon foi na companhia de Ossie Clark, em 1964. Hockney é, desde há muito, assumidamente homossexual e, num quadro de 1961, We Two Boys Together Clinging, cujo título se baseia num poema de Walt Whitman, o amor socrático é mostrado e enaltecido de forma desconcertante, mas bem explícita (o mesmo sucederá, ainda com mais intensidade, em trabalhos posteriores, do início dos anos 60). Ossie, por seu turno, era bissexual. Casar-se-á com Celia Birtwell em 1969, tendo Hockney como padrinho. O facto de muitos (a maioria?) dos seus duplos retratos da época serem de casais masculinos, ou de muitos quadros mostrarem homens nus, é um dado relevante no processo de assunção/exposição da homossexualidade como realidade «natural» – e naturalisticamente observada ou pintada.
We Two Boys Together Clinging, 1961
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Domestic Scene, 1963
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Man Taking Shower in Beverly Hills, 1964
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Peter Getting Out of Nick's Pool, 1966
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Portrait of Nick Wilder, 1966
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Portrait of Peter Schlesinger, 1967
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The Room Tarzana, 1967
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Nesse mesmo ano de 69, o «maior pintor inglês vivo» começa a trabalhar no quadro Mr and Mrs Clark and Percy, considerado um dos dez melhores que existem na terra de Inglaterra. Recuemos agora, por breves instantes, a 1961, ano muito rico para David Hockney: visita pela primeira vez os Estados Unidos, onde se avista com William S. Lieberman, então Curator of Prints no Museum of Modern Arts, que lhe compra duas gravuras; inicia em 1961 a série A Rake’s Progress; é também em 1961 que conhece Raymond «Ossie» Clark e que pinta We Two Boys Together Clinging. Em Portugal, entretanto, o doutor Oliveira Salazar vivia um annus horribilis: assalto Santa Maria, «Abrilada», invasão de Goa, início da guerra colonial. Falando de guerra, refira-se que Hockney, além de vegetariano, foi objector de consciência, tendo prestado serviço cívico como auxiliar (orderly medical) em hospitais entre 1957 e 1959. Diga-se o que se disser da sua arte, ninguém pode negar a Hockney a coragem e firmeza de convicções. Assumiu a sua homossexualidade num tempo em que não era fácil fazê-lo e hoje é um ardente defensor dos direitos de outra minoria barbaramente perseguida e apedrejada, os fumadores de tabaco. Ainda há poucos dias, escreveu, a este propósito, uma carta incendiária ao Ministro da Saúde, onde dizia: «keep your mean, dreary views out of my life». Em Outubro de 2010, assinou, em conjunto com vários criadores de nomeada, uma carta aberta dirigida ao Secretário de Estado da Cultura, Jeremy Hunt, protestando contra cortes orçamentais no apoio às actividades artísticas.
Além do quadro na parede, em Mr and Mrs Clark há outros elementos interessantes, como o telefone, um objecto não muito vulgar na altura, especialmente com aquela forma tão arrojada. Ademais, o telefone está pousado no chão, o que seria impensável uns anos antes. A Londres dos Swinging Sixties no seu máximo esplendor, sobre a qual muita literatura já se produziu, permitindo-me recomendar um livro recentíssimo de Rainer Metzger, London in the Sixties.
Junto à Srª Clark, numa coffee table imaculada, uma jarra com lírios, flores que há mais de três mil anos simbolizam a pureza, em particular a pureza feminina, estando igualmente associadas às representações da Anunciação (cf. Lucia Impelluso, La nature et ses symboles, trad. francesa, 2004, pp. 96ss). Nas zonas do leste do Mediterrâneo e nos Balcãs existe mesmo uma espécie chamada «lírios da Anunciação» ou «lírios da Madonna» (lilium candidum). Na altura, Mrs. Clark estava grávida do segundo dos dois filhos do casal (Albert nascera em 1969; George nasce em 1971), o que explicará a presença dos lírios do campo. E talvez explique também a posição de Celia, de mão na anca, muito típica das mulheres que estão de esperanças. No entanto, Celia desmente, dizendo que sempre tivera o hábito de andar de mão na anca, como as peixeiras de Afife (localidade que, entre outros multisserviços, possui uma caixa ATM, uma peixaria, um talho, um dentista e um bazar, como pode ver aqui). Os lírios não estavam no quarto dos Clark, foram deliberadamente adicionados por Hockney e pintados no seu estúdio, uma prova inequívoca de que o artista quis, de forma intencional, fazer esta alusão a um símbolo milenar de pureza feminina.
John Collier, 2000, com informação aqui
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Mr and Mrs Clark and Percy é um quadro pérfido. Pérfido apesar de delicado nas cores e suave na luminosidade, o que talvez contribua para adensar essa sua perfídia. Revisita o Retrato Arnolfini, que o flamengo Jan Van Eyck pintou em 1434. Quer o Mr. Clark quer o Arnolfini foram seleccionados, como atrás se disse, para o ridículo top ten da pintura de Inglaterra. O Retrato Arnolfini, à semelhança da duquesa Cayetana de Alba, tem vários nomes próprios – O Casamento Arnolfini, Duplo Retrato Arnolfini, Retrato de Giovanni Arnolfini e sua Mulher, etc. – e, mais do que isso, apresenta um fascinante jogo visual, com o espelho ao fundo, o que, em grande parte, é a grande razão de ser da fama que conquistou junto do «grande público». Em 1934, o grande Panofsky publicou um artigo em que sustentou a interessantíssima tese segundo a qual não estamos perante um quadro com fins artísticos mas em face de um documento jurídico que formalmente atestava que os Arnolfini eram marido e mulher. A partir daí, sobre esta tela de Van Eyck construíram-se as mais variadas e desvairadas interpretações. O ano passado saiu um livro de Carola Hicks, Girl in a Green Gown: The History and Mystery of de Arnolfini Portrait, que faz uma bela síntese das múltiplas leituras do quadro de Van Eyck. Chegam alguns a dizer que não estamos perante um casamento rato e consumado mas antes diante da representação de uns meros esponsais. Para uns, o casamento era morganático, enquanto outros garantem que o quadro não representa casamento algum, mas um contrato nos termos do qual o marido, tanso, conferia à mulher plenos poderes para administrar bens e negociar em seu nome. Outros ainda, mais pessimistas, afirmam que tudo terminara entre Giovanni e Giovanna. E da pior maneira. Asseveram estes que o quadro é uma homenagem póstuma à Srª Arnolfini, morta cerca de um ano antes de Van Eyck a retratar. Até em torno do raio do canito existe controvérsia: a esmagadora maioria sustenta que é um símbolo de lealdade, mas há vozes a afirmar que o animal, da raça grifo de Bruxelas, representa o desejo e a concupiscência carnal, já que os Arnolfini sonhavam ter um filho – o que, aliás, nunca conseguiriam – e à época não era ainda muito praticada a fertilização in vitro (vá lá, pelo menos até hoje nenhum historiador de arte contestou este último ponto). Em síntese, portanto, o quadro tanto pode ser uma certidão de casamento (Erwin Panofsky, aqui) como de óbito (Margaret Koster, aqui), o que, convenhamos, não é propriamente a mesma coisa, ainda que ande lá perto.
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Jan Van Eyck, Retrato Arnolfini, 1434
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Botero
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Botero
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Irma-Gruenholz
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À boleia de Van Eyck, Hockney fez em Mr Clark várias patifarias das suas: em contraste com o óleo Arnolfini, inverteu a disposição do casal, colocando Celia à esquerda e Ossie à direita. Não era, em todo o caso, uma inovação absoluta, longe disso. Se nos retratos matrimoniais era prática situar o marido à esquerda e a mulher à direita – veja-se, por exemplo, o celebérrimo Mr and Mrs Andrews, que Gainsborough pintou em 1750 –, mesmo no registo clássico encontramos casos de inversão de papéis. Assim sucede, por exemplo, em Nordisk sommarkväll (Noite de Verão Nórdica), de Sven Bergh, tela de 1900. Mas aí, atenção, o homem retratado era o duque de Narke, príncipe Eugénio Napoleão Nicolau, da Suécia e da Noruega, o filho mais novo do rei Óscar II, também da Suécia e da Noruega. E ela, coitadita, era tão-só uma cantora, Karin Pyk. Justifica-se que a primazia protocolar tenha sido dada ao varão, num quadro onde já alguns encontraram semelhanças com o acrílico de Hockney. Este, como veremos, afirmou já que tinha consciência de que invertera a posição convencional dos retratos de casais, e que isso fazia parte da mensagem que pretendera transmitir no seu quadro.
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Prosseguindo a comparação dos trabalhos de Van Eyck e David Hockney, há outra diferença de vulto: os animais de companhia. O matrimónio Arnolfini apresenta-se com um cão, símbolo de fidelidade (canina). Já o casal Clark surge com um gato, bichano geralmente pouco fiável. Do gato, Percy, já se falará adiante, pois Percy, na verdade, não é Percy, um mistério que só há pouco se desvendou (por isso, insistimos, não saia do seu lugar!).
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O cão dos Arnolfini
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O gato dos Clark
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Celia
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Finalmente, Celia surge de pé, em posição de fêmea dominante, enquanto Ossie se senta de forma displicente numa cadeira tubular, toda modernaça. Descalço, informal, com um braço postado à vontade nas costas da cadeira, os pés descalços enterrados num felpudo tapete. Sentado sobre o seu joelho, o gato branco, de costas para os espectadores, numa pose insolente mas não indolente ou pachorrenta. Pelo contrário, o felino, grande, com um volume algo desproporcionado, aparece hirto como uma estatueta egípcia, numa rigidez altiva que contrasta com a informalidade do ambiente. Sobretudo, que contrasta com a forma relaxada e lânguida, mas desafiadora, com que Mr. Clark, de cigarro na mão (já agora: onde está o cinzeiro?), contempla os turistas japoneses na galeria Tate. Já Mrs. Clark nos aparece mais próxima do gato, pelo menos na postura e nas maneiras: de pé, a verticalidade da sua figura é acentuada pelo longo vestido (na altura, fashion; hoje, vintage) que lhe assenta e cai na perfeição. Celia não se lembra de nada, perdida nas brumas da memória: «I don't remember the dress either. I know I was wearing a kaftan when we first posed for the picture, but it's a very good dress, isn't it. I can remember little details of the sitting, probably the problems of it – Ossie's feet were very difficult to draw and that's why they're partially buried in the carpet». No entanto, ao que parece o vestido existiu. Ainda em 2006, Celia voltou a envergar uma indumentária parecida, na companhia do seu amigo de sempre, David Hockney, posando ambos frente a Mr and Mrs Clark and Percy.
Mr David Hockney and Mrs Celia Birtwell, 2006
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A analogia com os Arnolfini é assumida, mas o mais surpreendente não são as semelhanças, mas as diferenças. Hockney conhece bem a pintura antiga e já concebeu teorias bastante sui generis sobre ela, num programa televisivo que deu um livro, Secret Knowledge, que ostenta o pomposo subtítulo Rediscovering the Lost Techniques of the Old Masters ([2001], 2ª ed., aumentada, 2006). Teceu considerações tidas por originais sobre a camera obscura, como se não soubéssemos nós que os antigos a usavam. A ele, e ao físico Charles M. Falco, se deve a controversa Tese Hockney-Falco, sobre a qual não me vou alongar em excesso, até porque não percebi nada daquilo; retenha-se, tão-só, que um dos exemplos mais usados para ilustrar aquela tese consiste – claro está! – no jogo entre o candelabro e o espelho convexo do Retrato Arnolfini. Muito gosta David Hockney do quadro de Van Eyck, como podemos ver neste filmezito:
No famoso acrílico de 1971, Mr and Mrs Clark, Hockney quis deliberadamente deixar um conjunto de «recados», desconhecendo-se se o destinatário dos mesmos era Ossie, Celia ou ambos – ou até todos nós, que os olhamos a olharem-nos. Numa obra monumental (que é, provavelmente, a melhor história cultural dos anos 60 que conheço), Arthur Marwick refere que os retratos de Hockney «à primeira vista podem parecer desinteressantes; mas neles há sempre uma ironia, um humor e uma densidade psicológica que os torna imediatamente reconhecíveis como sendo Hockneys» (The Sixties. Cultural Revolution in Britain, France, Italy, and the United States, c.1958-c. 1974, 1998, p. 325).
Essa ironia está ausente de Van Eyck e do matrimónio Arnolfini. A diferença entre os retratos Arnolfini e Mr Clark é também ilustrativa da evolução da conjugalidade no Ocidente. Os Arnolfini estão muito compenetrados no seu papel de esposos. Ricamente vestidos, ambos de pé, as mãos sobrepostas, num compromisso solene de fidelidade (fides manualis), formando um par sério e sólido. Ela, com a cabeça ligeiramente inclinada, talvez em sinal de respeito e obediência, senão mesmo de devoção conjugal. Os Arnolfini não sorriem, talvez porque o seu casamento não fosse feliz. Nem era esse, de resto, o propósito dos casamentos da alta burguesia italiana do século XV. Em contrapartida, os Clark apresentam-se perante nós de modo muito mais descontraído: um afastado do outro (não por acaso…), ela de pé e ele sentado, de pernas abertas (o que, convenhamos, não é muito próprio de um cavalheiro, mesmo tendo este nascido em Warrington, Lancashire, e estudado em Manchester). Aliás, a forma como Hockney o retratava é demonstrativa do desleixo e falta de modos deste alpinista social. Vejamos:
Mais do que o retrato de duas pessoas, Mr Clark é o retrato de um casamento contemporâneo – e das tensões que em seu torno se desenvolvem. Segundo o pintor, «my main aim was to paint the relationship of these two people» (cit. in Catherine Kinley, David Hockney: Seven Paintings, 1992, p. 6). Não se tratava tanto de representar Celia e Ossie quanto o seu casamento recente e a relação que o suportava – ou que, a breve trecho, o tornaria insuportável.
À semelhança dos Arnolfini, também os Clark não esboçam o mínimo sorriso para a câmara. É muito provável que o casamento Clark, séculos passados sobre o dos Arnolfini, também não fosse feliz. Mas por razões diametralmente opostas. Provavelmente, o matrimónio Arnolfini foi negociado e liberdade conjugal era coisa que não entrava naquela casa rica e opulenta. Igualmente confortável para os padrões médios da Inglaterra de então, na casa dos Clark, sita a Notting Hill, haveria, por certo, bastante liberdade conjugal. Celia era uma mulher independente e famosa na sua profissão de designer de têxteis. E Ossie, como veremos, era rapaz muito dado a grandes liberdades conjugais, o que levaria o casal a separar-se em 1971, três anos depois de Hockney lhes ter tirado o retrato. Os Arnolfini são retratados na sala de aparato usada para receber e impressionar os visitantes. Os Clark mostram-se sem pudor na intimacy do quarto de dormir, o lugar escolhido por Hockney por causa da sua luminosidade. Em ambos os casos, distantes de cinco séculos, parece existir uma ausência: o amor. Em contrapartida, estamos bem servidos no décor: os Arnolfini mostram um tapete oriental, um objecto raro e caro para a época; os Clark apresentam um tapete em tons creme mas peludo, objecto igualmente raro numa época em que 98.7% dos lares britânicos tinham os soalhos preenchidos na íntegra por alcatifas gastas pelos anos e pelos ácaros. Os Arnolfini, uns nouveaux riches vindos de Lucca que se estabeleceram em Bruges em 1419, exibem no tecto um candelabro de grandes dimensões, que na altura deve ter custado uma fortuna; os Clark, que também haviam subido na vida, vindos do norte de Inglaterra até à buliçosa Londres, têm um candeeiro rétro ao lado de um telefone branco. Em ambos os casos, o do mercador italiano opulento e o do estilista da moda e das celebridades, há evidente bem-estar material, até mesmo sinais exteriores de riqueza merecedores da atenção do Fisco. Mas, num matrimónio como no outro, haverá mais do que mobiliário da moda e bem-estar material?
Ossie Seated, 1966
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Ossie in Powis Terrace, 1968
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Ossie Wearing a Fairisle Sweater, 1970
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Ossie, Junho de 1972
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Mais do que o retrato de duas pessoas, Mr Clark é o retrato de um casamento contemporâneo – e das tensões que em seu torno se desenvolvem. Segundo o pintor, «my main aim was to paint the relationship of these two people» (cit. in Catherine Kinley, David Hockney: Seven Paintings, 1992, p. 6). Não se tratava tanto de representar Celia e Ossie quanto o seu casamento recente e a relação que o suportava – ou que, a breve trecho, o tornaria insuportável.
À semelhança dos Arnolfini, também os Clark não esboçam o mínimo sorriso para a câmara. É muito provável que o casamento Clark, séculos passados sobre o dos Arnolfini, também não fosse feliz. Mas por razões diametralmente opostas. Provavelmente, o matrimónio Arnolfini foi negociado e liberdade conjugal era coisa que não entrava naquela casa rica e opulenta. Igualmente confortável para os padrões médios da Inglaterra de então, na casa dos Clark, sita a Notting Hill, haveria, por certo, bastante liberdade conjugal. Celia era uma mulher independente e famosa na sua profissão de designer de têxteis. E Ossie, como veremos, era rapaz muito dado a grandes liberdades conjugais, o que levaria o casal a separar-se em 1971, três anos depois de Hockney lhes ter tirado o retrato. Os Arnolfini são retratados na sala de aparato usada para receber e impressionar os visitantes. Os Clark mostram-se sem pudor na intimacy do quarto de dormir, o lugar escolhido por Hockney por causa da sua luminosidade. Em ambos os casos, distantes de cinco séculos, parece existir uma ausência: o amor. Em contrapartida, estamos bem servidos no décor: os Arnolfini mostram um tapete oriental, um objecto raro e caro para a época; os Clark apresentam um tapete em tons creme mas peludo, objecto igualmente raro numa época em que 98.7% dos lares britânicos tinham os soalhos preenchidos na íntegra por alcatifas gastas pelos anos e pelos ácaros. Os Arnolfini, uns nouveaux riches vindos de Lucca que se estabeleceram em Bruges em 1419, exibem no tecto um candelabro de grandes dimensões, que na altura deve ter custado uma fortuna; os Clark, que também haviam subido na vida, vindos do norte de Inglaterra até à buliçosa Londres, têm um candeeiro rétro ao lado de um telefone branco. Em ambos os casos, o do mercador italiano opulento e o do estilista da moda e das celebridades, há evidente bem-estar material, até mesmo sinais exteriores de riqueza merecedores da atenção do Fisco. Mas, num matrimónio como no outro, haverá mais do que mobiliário da moda e bem-estar material?
Fotografia do quarto dos Clark
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Para os que julgam que há outras semelhanças – o facto de as duas mulheres estarem grávidas – deve esclarecer-se que, ao contrário do que parece, a Srª Arnolfini não se encontra de esperanças. Esta é, pelo menos, a teoria mais consensual nos dias de hoje. Mas, como é óbvio, amanhã pode aparecer alguém letrado a sustentar que, afinal, a Srª Arnolfini, falhados os métodos naturais, se preparava para a maternidade. Nesta vida, é tudo provisório. Basta referir que até a identidade dos retratados, Giovanni di Nicolao Arnolfini e sua senhora, fixada durante séculos, foi recentemente posta em causa. Uma descoberta ocorrida em 1997 revelou que Giovanni Arnolfini, afinal, casou seis anos depois de Van Eyck ter morrido... O Retrato Arnolfini, se calhar, terá de mudar o nome para Retrato Arrigo, já que é possível que o retratado não seja Giovanni Arnolfini mas o seu primo, Giovanni di Arrigo. Sobre a identidade das mulheres, há também várias candidatas: durante anos, disse-se que era Jeanne (ou Giovanna) Cenami, mulher de Giovanni; uma tese muito recente sustenta que, afinal, se trata da sua primeira esposa, entretanto falecida, de seu nome Costanza Teresa. Existe, pois, grande confusão no seio de um casal que, em direitas contas, já morreu há mais de 500 anos mas ainda tem vida conjugal muito movimentada e, sobretudo, sempre aberta a novas experiências e constantes releituras da sua privacidade. Mas, atenção ao lema, the private is political.
De facto, como na política, nos dois quadros o ponto de fuga está no lugar devido: o centrão. «A perspectiva é o pecado original da pintura ocidental», dizia André Bazin. Para Hockney, o ponto de fuga é um «dos grandes erros do Ocidente», a par do motor de combustão… Por isso se delicia com a arte egípcia e, mais recentemente, com a pintura chinesa.
Inebriado pelas potencialidades da perspectiva (por acaso, não era muito dado a brincar com a perspectiva, dizem os entendidos), Jan Van Eyck colocou ao centro um espelho convexo, de uma dimensão tal que, segundo parece, não era sequer possível fabricar na época. Trata-se, pois, de um exercício de puro ilusionismo, ou mania das grandezas. Hockney escolheu uma janela aberta, vendo-se a varanda do apartamento, a copa das árvores e as janelas do edifício em frente. A balaustrada é o único elemento que permite uma datação e uma caracterização aproximadas do edifício onde ficava a residência dos Clark.
O espelho dos Arnolfini
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A janela dos Clark
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A (verdadeira) janela do quarto dos Clark
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A janela aberta ocupa o lugar central da tela, separando o casal. Open marriage. As portadas acentuam a verticalidade do elemento central, destacando-o de todos os demais, que, à excepção de Celia, parecem ser dominantemente horizontais (aqui, há quem sustente, pelo contrário, que o quadro é construído na vertical, como há quem sustente, aqui, num texto universitário de origem dinamarquesa muito fraquinho e até apalermado, que o facto de Celia estar de pé representa a liberdade e a independência conquistadas pelas mulheres na década de sessenta). Sejam os elementos dominantes do quadro horizontais ou verticais, há algo que parece inquestionável: o equilíbrio é perturbado por Ossie (sempre ele!). A sua perna longa, esticada na diagonal para além dos limites do razoável, secciona as linhas dominantes, sejam elas horizontais ou verticais.
A forma de composição da tela, com o uso de linhas verticais para enquadrar o elemento em destaque, surge noutros trabalhos de Hockney, ainda que não se trate de um dispositivo muito típico na sua obra (aliás, nada é «típico» na sua obra, à excepção, porventura, das cores fortes e alegres que são a razão primeira da imensa popularidade do pintor britânico). Mas, de facto, a escolha do enquadramento feita em Mr Clark aparece-nos noutras obras de Hockney, algumas da época, como o desenho Window, Grand Hotel Vittel, de 1970, ou seja, quando aquele estava a pintar o casal amigo. Window seria usado, sob a forma de litografia, para servir de poster de promoção do 19º Festival de Cinema de Nova Iorque, e também aí deparamos com os elementos verticais, a balaustrada identificadora do tipo de local e, sobretudo, a janela aberta como ponto de fuga à clausura do interior. Noutra pintura, The Room. Manchester Street, de 1967, encontramos igualmente as janelas a servirem de enquadramento vertical ao interior de um espaço fechado e da figura humana que nele se desloca. Em 1976, em Home, temos janelas e cortinas, mas não pessoas. Ao invés de janelas, mas elementos verticais, servem de enquadramento a outra figura solitária, Henry Geldzahler, em Looking at Pictures on a Screen (1977). Mas temos as janelas, e o que delas se avista, num auto-retrato do pintor com um dos seus ídolos, Picasso (1973). O mesmo dispositivo parece surgir num outro trabalho mais tardio, uma litografia homemade reproduzida numa fotocopiadora doméstica em 1986, com o título Stillife with Curtains. Também aqui as cortinas verticais enquadram o elemento central que se pretende realçar. Antes disso, num desenho a carvão de 1974, Study for Portrait of Nick Wilder & Gregory Evans, são flagrantes as similitudes com Mr and Mrs Clark and Percy, sobretudo quanto ao posicionamento das figuras. O contraluz emerge também noutro duplo retrato, já mostrado, George Lawson and Wayne Sleep (1972-75).
The Room. Manchester Street, 1967
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Window, Grand Hotel Vittel, 1970
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Artist and Model, 1973
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Home, 1986
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Mas tudo isto, admito, são leituras minhas, pessoais, subjectivíssimas, muito provavelmente fruto de vasta ignorância e produto de grande atrevimento. Mais consensual, e por outros partilhada, é a ideia de que existe uma continuidade entre Mr Clark e uma das suas últimas obras realistas, Contre-jour in the French Style – Against the Day dans le Style Français, de 1974. Aí, naquela que já foi considerada uma revisitação de Mr Clark, mas num registo mais formal, encontramos, além dos elementos referidos, um outro, muito patente no quadro de 1970-71: o efeito contraluz (ou, para os mais snobes, contre-jour).
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Contre-jour in the French Style – Against the Day dans le Style Français, 1974 |
Os Clark são pintados em contraluz, opção que obrigou Hockney a encontrar o equilíbrio certo entre a luminosidade vinda da rua e a penumbra do interior do quarto. Trabalhando afanosamente no seu estúdio, o pintor atingiu a harmonia perfeita: o exterior encontra-se esbatido e o interior do quarto está mergulhado numa penumbra delicada, não excessivamente sombria. As balaustradas brancas são o elemento que auxilia, de forma decisiva, a acentuar o efeito contraluz. Lá dentro, as sombras não são carregadas em demasia, nem há espaços de obscuridade total. A colocação dos Clark junto à janela permite que sobre eles a luz se projecte de forma mais intensa. Devido à sua posição, uma parte do corpo de Ossie Clark é banhada de luz, com bastante intensidade, enquanto a outra permanece na penumbra. Como seria de esperar, a duplicidade entre luz/sombra é particularmente notória na figura de Ossie. Em contrapartida, mais do que sobre Ossie, a luz projecta-se, aberta e inteira, sobre Celia, apresentada a três quartos. O mesmo acontece aos elementos que se situam na órbita feminina: o vaso com lírios e a mesa branca, simples e minimalista, colocada obliquamente na linha de onde a provém a luz. A figura de Ossie projecta sombra no interior do quarto do casal. A de Celia, não.
É possível que nem tudo tenha sido pensado deste modo tão elaborado quanto maniqueísta, com a integralidade dos elementos negativos – o gato, as sombras, o desleixo, o olhar de esguelha – a recair sobre os ombros de Ossie Clark. De igual modo, seria precipitado afirmar que Hockney, com este quadro, estava a emitir um juízo condenatório da conduta do marido e das suas inúmeras infidelidades conjugais. Era amigo de ambos e, não por acaso, a gravura na parede tem o título Meeting the Good People. O quadro era o seu presente de casamento para os Clark, note-se. Vivia em Notting Hill, à semelhança deste casal e de outros amigos, e, mesmo após a separação dos Clark, continuaria a dar-se com ambos.
A Bigger Splash: a répérage em Rabo de Peixe, concelho da Ribeira Grande (Açores) |
David Hockney e Peter Schlesinger em A Bigger Splash
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Em 1974, no ano em que separam, Ossie e Celia aparecem no filme A Bigger Splash, de Jack Hazan, que tem Hockney como personagem central. Sendo datado ora de 1973 ora de 1974 (na realidade, o filme foi exibido em finais de 1973), a película, misto de ficção e documentário, descreve a incapacidade de Hockney concluir um quadro após a ruptura da relação amorosa com Peter Schlesinger, que conhecera na Califórnia. Schlesinger era então um rapaz do Valley, de 19 anos, que na UCCLA se torna aluno de Hockney e, depois, seu amante e modelo em muitas obras, com destaque para o premiado Peter Getting Out of Nick's Pool, de 1966. Neste ano, vão para Londres, Notting Hill, e Schlesinger larga a pintura, abraçando a escultura e a fotografia. Publicou em 2003 um belo livro de fotografias dos ícones da moda e das grandes figuras do universo bohemian chic das décadas de 60 e, sobretudo, 70: A Checkered Past. A Visual Diary of the 60’s and the 70’s. Acompanhando as críticas favoráveis, Hockney elogiou: «An intimate world within a larger world, recorded by a very sympathetic intimate». Peter Schlesinger aparece, como dissemos, em vários trabalhos de Hockney, mesmo após a sua ruptura sentimental. Num desses trabalhos, surge ao lado de Ossie Clark, ambos de costas voltadas para o pintor e para o público em geral. Trata-se de Le Parc des Sources, Vichy, 1970, marcado pelo fascínio de Hockney pelo efeito de profundidade da alameda de árvores (agora presente na série The Tunnel, feita nos campos do Yorkshire).
Noutro trabalho, após a quebra do namoro, Schlesinger aparece só, numa fotocolagem feita em Londres, em 1972, ano em que, com base nessa colagem, Hockney pinta o muito simbólico Portrait on an Artist (Pool with Two Figures).
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Ossie Clark e Peter Schlesinger, 1969 |
Le Parc des Sources, Vichy, 1970
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Noutro trabalho, após a quebra do namoro, Schlesinger aparece só, numa fotocolagem feita em Londres, em 1972, ano em que, com base nessa colagem, Hockney pinta o muito simbólico Portrait on an Artist (Pool with Two Figures).
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Peter Schlesinger, 1972
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Portrait on an Artist (Pool with Two Figures), 1972
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Sendo um (relativo) desastre cinematográfico, A Bigger Splash teve bom acolhimento junto do público, mais uma prova de que, naquela época, o pessoal papava tudo o que lhe metessem à frente. Quando foi exibido, o The New York Times referiu-se a Celia como «a beautiful young woman who looks a lot like Andy Warhol's Viva».
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No filme, Celia e Ossie apareciam como marido e mulher, no papel de criadores de moda, o que tinha correspondência com a chamada «vida real». Outra correspondência com a realidade da vida: na altura em que pintava o quadro, Hockney, que dizem as más-línguas esporadicamente se envolvera algumas vezes com Ossie Clark, enfrentava também os dramas de um doloroso fracasso sentimental. O fim da relação com Peter Schlesinger, que põe termo ao namoro, deixa Hockney, 11 anos mais velho, bastante abalado. É mais ou menos por essa altura que decide mudar-se para Paris, por onde anda entre 1973 e 1976, data em que regressa a Los Angeles.
Mr and Mrs Clark é pérfido não tanto pela condenação moral de Raymond «Ossie» Clark quanto pela reflexão ácida que suscita sobre a conjugalidade e, mais genericamente, sobre as relações afectivas entre dois seres humanos. De facto, Ossie não é apresentado simplisticamente como o mau da fita, calma aí. Nem Celia aparece como a grávida desprotegida, que, por obediência às convenções sociais, tinha de suportar as constantes traições de Ossie com homens e com mulheres, além do vício das drogas. David Hockney quis, tão-só, retratar a tensão latente num casamento. É sintomático que comece a preparar a elaboração da tela no próprio ano em que serve de best man no casamento de Ossie e de Celia. Como é sintomático que o olhar de Celia seja puro e doce. Catherine Kinley vê desejo ou ansiedade no rosto de Celia («a rather wistful expression», escreve). Eu, não. Qual a sua opinião?
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Em contrapartida, Ossie mira-nos de forma oblíqua e pouco fiável, algo acossado e comprometido. Desconfia do que sobre ele estamos a pensar. A candura de Celia contrasta, de modo flagrante, com a insegurança do marido, a insegurança masculina que, como sempre, surge dissimulada sob as vestes da autoconfiança, da rebeldia e até da insolência. Neste caso de Ossie em particular, a insegurança da masculinidade, a ambígua incerteza quanto à própria orientação sexual, mas também a insegurança de status social, a ambição desmesurada de ter o mesmo estilo de vida daqueles que vestiam as suas criações. Arrogante, o rosto afilado de Ossie Clark, de cabelos revoltos, assemelha-se aos de um cavaleiro da Renascença. Também Celia, de longo vestido e anelados cabelos louros, evoca uma dama antiga, representando, para alguns observadores, uma homenagem a Botticelli. De permeio, o gato – e a ausência de Peter Schlesinger. Em comparação com esta complexa teia de sentimentos e de emoções, os Arnolfini, convenhamos, são uns completos tótós, de olhar vazio e inexpressivo, num beatério total. O Sr. Giovanni, então, é um perfeito nerd (um perfeito arnolfini, se quisermos), sobretudo quando o cotejamos com o arrojado Raymond «Ossie» Clark. Mas, atenção!, por detrás das cortinas a realidade pode ser mais interessante... É que, à semelhança de Hockney, e a crer na versão em língua portuguesa da Wikipedia, Jan Van Eyck era «muito inovador e até atrevido». O duque da Borgonha, Filipe, o Bom, mandou-o visitar o nosso país. Diz um livrito idoso que tenho entre mãos: «Van Eyck não poude negar-se aos desejos do seu senhor, e dispoz-se para a sua viagem a Portugal, excursão que sem duvida devia afagar a sua imaginação d'artista, ante a expectativa de ver horizontes novos, onde brilha o sol com mais intensidade que em Flandres e em vez d'um ceu cinzento e nebuloso existe uma aboboda azul e transparente que arranca das plantas e das flores deliciosas notas coloridas» (Os Grandes Pintores. Estudo Historico dos Grandes Mestres e Analyse das suas Principaes Obras. H. e J. Van Eyck, Paris, s.d., pp. 32-33). Diz ainda o livrito, com atrevimento, que «os trajes [dos Arnolfini] são ridiculos, especialmente os do homem» e que os «rostos não são bellos, mas denotam claramente o sentimento que os anima: séria ternura no homem, affecto agradecido no da esposa». E remata: «Todo este quadro respira placidez. Pena é que os modelos não fossem formosos nem os trajes artisticos!» (ob. cit., pp. 67ss). Afirma-se que a mulher estava «gravida e n'um periodo avançado», o que não é verdade, como não é verdade que a vinda do pintor a terras portuguesas haja sido plena de «notas coloridas». É que, assevera a Wikipedia a propósito da vinda de Van Eyck, Portugal era «um país sempre conservador e que "franzia o olho" às novas tendências». Não é verdade. É mesmo mentira. E até vil calúnia. Portugal não franzia olho, de espécie alguma, às novas tendências. Mas porque é que não vão perguntar às pessoas que percebem destas coisas? O que diz, e cito, Fernando Dacosta, fala quem sabe: «Portugal foi um dos países europeus que mais cedo conheceu o turismo sexual. Ponto de passagem de viajantes, cavaleiros, peregrinos, mercadores, navegadores, o seu clima e a sua gente depressa o fizeram referência de sensualidades, de deleites. Lisboa na altura das Cruzadas e dos Descobrimentos, a Madeira no tempo das navegações e dos ingleses, o Estoril e a Figueira nos anos 40, a Caparica e o Algarve nos 60, impuseram-se ângulos nos roteiros dos delírios íntimos. Este património funcionou sempre como um recurso de sobrevivência para nós. Não foram só o sol, a praia, o mar que projectaram o turismo português; foram também, foram sobretudo, o encanto, a disponibilidade convivencial dos nossos jovens que o conseguiram. A indústria das viagens internacionais depressa percebeu essas características e as desfrutou com discrição, com ambiguidade - como os portugueses gostam de ser desfrutados» (Máscaras de Salazar, 4ª ed., Lisboa, 1997, p. 114). Isto está dito e escrito por uma das grandes plumas da escrita portuguesa, em obra que já vendeu aos milhares e vai, pelo menos, na 25ª edição. Logo, quem serei eu, quem somos nós para duvidar? Portanto, é de crer que Portugal e os nossos jovens não franziram o olho a Jan Van Eyck. A Wikipedia prossegue, informando que o pintor, segundo «especulações», era homossexual, hipótese sustentada na «relação bastante afectiva com Giovanni di Nicolao Arnolfini». A única referência que encontrei foi ao Arnolfini Café Bar, em Bristol, apontado nos roteiros turísticos da especialidade como gay friendly. Parece pouco para alicerçar a tese da homossexualidade de Giovanni Arnolfini, pelo que franzo o olho a esta proposta interpretativa e mantenho, para todos os efeitos, que Giovanni Arnolfini era um nerd completo, até mesmo um Hipster. Sobretudo no confronto com Ossie Clark.
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Giovanni Arnolfini, por Jan Van Eyck, c. 1435
Staatliche Museen, Gemaeldegalerie-Dahlem, Berlim |
Raymond «Ossie» Clark
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Graças à luz (e, talvez, ao conforto do espaço), o quadro irradia serenidade e uma suavidade silenciosa. As cores são pálidas, esbatidas, bem distintas da coloração vibrante e brilhante que caracteriza a explosiva e versátil criatividade de David Hockney, um mestre do ecletismo. Mr and Mrs Clark é um quadro singular até a esse nível, não sendo uma obra típica do pintor de piscinas da Califórnia ou do autor de colagens de fotos Polaroid. A tensão emocional pressente-se, anuncia-se, mas não está visível. Mais uma das mensagens à clef que Hockney pintou em Mr and Mrs Clark. Provavelmente, a grande mensagem do quadro, aquela para a qual convergem todos os outros elementos, tornados adereços, meros acessórios do objectivo nuclear do acrílico.
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Ficamos incomodados com a presença moralista de Percy, o gato imaculado, personagem tão importante que figura no próprio título da tela. Esta poderia chamar-se apenas Mr and Mrs Clark, mas Hockney acrescentou: …and Percy. Mais uma das suas brincadeiras, de que o povo tanto gosta. Mais uma subversão, inocente e cândida, dos cânones clássicos da «Arte» com maiúscula. O certo é que o gato tem um papel próprio, muito diferente e mais complexo do que, por exemplo, o cão dos Arnolfini. Numa postura muito típica dos felinos, Percy fixa o olhar num ponto situado no exterior, recusando-se a entrar no jogo. No jogo do casal e no jogo que confere dinâmica a todo o retrato dos Clark. Essa dinâmica é alcançada pelo facto de a tela constituir um ménage à trois, entre Ossie, Celia e o pintor, a que se junta a legião imensa e anónima de espectadores do acrílico, esmagadoramente integrada por turistas nipónicos. Colocado de frente à tela de grandes proporções, o observador intromete-se numa relação que se orgulhava da sua «abertura». Quem olha é obrigado a olhar Ossie, depois a mirar Celia, ou vice-versa. Depois, contempla o exterior do quarto do casal Clark, que se constitui em ponto de fuga em todas as acepções deste termo. Pela janela, fugimos daquele interior confortável e fashion, mas claustrofóbico e inautêntico. O espectador observa o homem, observa a mulher, observa ambos e é esse jogo ocular – não esqueçamos nunca as dimensões da tela! – que confere dinamismo e movimento a um acrílico de 304 x 213 cm, estratégia que Hockney irá levar ainda mais longe nas fotocolagens, a que chamou joiners. Num livro de que Hockney gosta muito, Gombrich explica o sentido dos joiners: «quando olhamos para uma pessoa, os nossos olhos nunca permanecem parados, e a imagem que formamos na mente, se pensamos em alguém, é sempre compósita» (A História da Arte, trad. portuguesa, 2005, p. 625). Aliás, ao dialogar com Martin Gayford, num livro saído no ano passado (A Bigger Message. Conversations with David Hockney, 2011), David Hockney revela plena consciência dessa dinâmica do olhar: «When I’m looking at your face now, it’s rather big in my vision because I’m concentrating on you and not on other things. But if I just move for a moment to look over there, you face becomes small. Isn’t that what is happening? Isn’t the eye part of the mind?» (ob. cit., p. 53). É exactamente isso que também ocorre na arquitectura interna de Mr and Mrs Clark.
O gato Percy, ao recusar espectadores, ao refutar este jogo, confere alguma naturalidade ao quadro. No fundo, comporta-se como se não estivesse a posar para um dos maiores pintores da arte britânica contemporânea (pelo menos, um dos mais populares). Moralista, mas libertino, faz o que bem lhe apetece, como todos os gatos. O dono, Ossie, comportava-se como Percy, um felino de luxo. Mas, convenhamos, também Hockney sempre fez o que queria e daí a multiplicidade dos seus registos, que vão do desenho às gravuras, aos joiners e, mais recentemente, ao iPod e ao iPad (Hockney até já um BMW pintou!). Ainda muito novo, não hesitou em dizer, com a arrogância do verdor dos anos: «I paint what I like, when I like and where I like». O gato não está ali ao acaso: se a sua presença confere naturalidade e um tom familiar à cena, o modo esquivo como Percy nos surge faz com que nele se condense toda a tensão que pairava no interior do quarto dos Clark.
As dimensões do quadro (304 x 213 cm) são fundamentais para o compreender. Há quem refira que as figuras são pintadas quase em tamanho natural, o que é manifesto exagero. Mas que as dimensões do quadro também são um manifesto exagero, isso ninguém o poderá negar. «The figures are nearly life-sized; it's difficult painting figures like that, and it was quite a struggle. They posed for a long time, both Ossie and Celia. Ossie was painted many, many times; I took it out and put it in, out and in. I probably painted the head alone twelve times; drawn and painted and then completely removed, and then put again, and again. You can see that the paint gets thicker there», disse Hockney (cit. in Catherine Kinley, David Hockney. Mr and Mrs Clark and Percy, Londres, 1995, s./p.). Aliás, aquela mania destas grandezas é muito típica de Hockney, sobretudo nos seus trabalhos mais recentes. O nome diz tudo: A Bigger Picture. Mas já não havia um A Bigger Splash? Hockney tem em levado ao limite a mania dos quadros grandes, até porque a grandeza «cénica» das telas constitui, ela própria, um dispositivo de sedução do olhar, sobretudo dos olhares mais vulgares. No caso dos Clark, a dimensão era relativamente invulgar nos retratos convencionais contemporâneos e, do mesmo passo, evocava as grandes telas doutras épocas. Nesse sentido, emerge aqui um outro jogo: o seu quadro é, em simultâneo, «moderno» e «antigo», incluindo quanto às suas dimensões. Lembra retratos monumentais de outros tempos, agora rememorados com personagens absolutamente contemporâneas colocadas num cenário absolutamente contemporâneo: um quarto de dormir, uma mulher vestida à última moda dos Swinging Sixtites, um homem de cabelos compridos, descalço, com um gato ao colo e um cigarro na mão. Mais radicais, quanto à invulgaridade das dimensões, são, por exemplo, A Bigger Grand Canyon e A Closer Grand Canyon, óleos de 1998, com as bonitas proporções de 200,0 x 744.2 cm. A primeira vez que David Hockney viu o avassalador Grand Canyon foi, como dissemos, na companhia de Ossie Clark, o homem retratado na companhia da sua esposa, num apartamento de Notting Hill. Um trabalho mais recente, Bigger Trees Neat Warter, tem a módica dimensão de 4 metros de altura por 12 de comprimento… A seguir mostramos as telas e, para se perceber a escala, o artista perto dos seus trabalhos mais recentes:
As dimensões da tela Mr Clark criaram ao artista vários problemas. Desde logo, não permitiram que pintasse in situ ou, se quisermos ainda ser mais pedantes, sur le motif. Hockney teve o cuidado, porém, de recriar no seu estúdio condições de luz em tudo idênticas às que tanto apreciava no quarto de dormir dos Clark. Por diversas vezes, estes tiveram que posar para Hockney, o qual só ao fim de, pelo menos, uma dúzia de tentativas conseguiu captar, como queria, o esquivo rosto de Ossie.
A Bigger Grand Canyon, 1998
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A Closer Grand Canyon, 1998
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Bigger Trees Near Warter, 2007
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Para quem julgue que isto da arte contemporânea é meia-bola e força, umas saplicadelas nas telas à Pollock e já está, convém sublinhar, para todos os efeitos, que David Hockney andou a preparar o acrílico desde 1969, tirando fotografias, fazendo desenhos. Pese esta preparação de anos, o inesperado também aconteceu. Ao que parece, o fulcro da tela nasceu de um instantâneo fotográfico. Na primeira grande biografia de Hockney (A Portrait of David Hockney, 1988), agora suplantada pela de Christopher Simon Sykes (Hockney: The Biography, 2011), Peter Webb descreve o que se passou: «Ossie lembra-se do dia em que Hockney apareceu para tirar fotografias para a composição original. Tinha acabado de se levantar e não tinha calçado os sapatos. Afundou-se numa cadeira com um cigarro e Blanche, um dos seus dois gatos brancos, saltou-lhe para o colo. Celia estava de pé do outro lado da janela, com a mão na anca, e Hockney disse: “Perfeito”». Webb cita o pintor, que apresenta uma versão mais elaborada: «Julgo que [o quadro] funciona porque se sente a presença deles, a presença de duas pessoas numa relação estranha. Ossie está sentado e Célia de pé, quando deveria ser o inverso». Não por acaso, em trabalhos mais recentes, como a aguarela George and Mary Christie (2002), já surge o casal sentado…
George and Mary Christie, 2002
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Possuímos uma imagem que tudo sugere ser precisamente esse snapshot. Ou, melhor dizendo: David Hockney estava descontente com as imagens que possuía do interior do quarto dos Clark e juntou-as, numa composição que viria o seu primeiro joiner. Chamou-lhe Mr and Mrs Ossie Clark, Linden Gardens, London (1970). A cópia que apresentamos é manhosa na definição, mas bem tentámos obter melhor contactando, vezes sem conta, o site oficial de David Hockney. Vemos várias coisas: o quarto tinha diversos elementos que Hockney suprimiu na tela; os Clark possuíam, de facto, uma gravura de Rake’s Progress na parede; o gato adoptou a posição alheada que Hockney retratou; os lírios não estavam lá, mas havia uma mesa branca posicionada na direcção da janela. O telefone e o candeeiro vanguardista não estavam no chão, mas numa mesa de apoio. Há ainda imagens de Hockney a trabalhar no quadro, no documentário David Hockney’s Diairies (1971), de Michael e Christian Blackwood, 28 minutinhos de fita que podem adquirir aqui, pela módica quantia de 100 dólares, mais portes de envio.
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Mr and Mrs Ossie Clark, Linden Gardens, London (1970)
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Ao contrário do que poderão pensar os mais incautos, não há contradição naqueles testemunhos de Ossie Clark e de David Hockney: o primeiro transmite uma noção de «repentismo» e «imediatismo» na composição da tela, apresentando razões prosaicas para elementos a que atribuímos significados profundos, como o facto de estar descalço; o segundo, fornece uma visão mais elaborada, dizendo que na tela se sente a presença do casal e a tensão emocional que envolvia Mr and Mrs Clark. Por outras palavras, mais directas: a ideia de que tudo foi feito a partir de um instantâneo fotográfico, pintando-se realisticamente o que lá estava, deita por terra todas as retorcidas elucubrações feitas em torno do significado dos vários elementos. No fundo, tudo não passaria de uma transposição para a tela de uma fotografia captada num momento fugaz. Puro engano. Então, como explicaríamos o tempo que o quadro levou a pintar? E a introdução de elementos novos – os lírios – em contraste com a «limpeza» do «ruído» criado pelo que vemos na imagem fotográfica? Não confundamos o método de trabalho de Hockney com o produto final que actualmente podemos observar na Tate Gallery. Para quem duvide, é interessante ler o livro do próprio Hockney (com Nikos Stangos), That’s the Way I See It, de 1999. Ou também o que afirmou em Secret Knowledge sobre o uso da camera obscura pelos mestres antigos: a máquina ajudava, mas a arte estava nos artistas.
À conversa com Martin Gayford, David Hockney menospreza a fotografia: «Most people feel that the world looks like the photograph. I’ve always assumed that the photograph is nearly right, but that little bit by which it misses makes it miss by a mile. This is what I grope at» (ob. cit., p. 47, ou aqui).
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Celia observa a feitura do quadro
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Hockney reconhece que usou a fotografia como base do seu trabalho, em finais dos anos 60 e princípios dos anos 70 – o período em que pintou Mr Clark –, mas não tem boas recordações desses anos. Muito provavelmente, devido à ruptura com Peter Schlesinger. Mas também porque, nessa altura, chegara a um impasse criativo: «I felt very dead-ended». Foram os anos de Paris, em que Hockney não conseguia concluir os seus quadros, abandonava-os a meio, dedicando-se apenas a fazer desenhos, numa vereda artística muito down, de «naturalismo obsessivo», cujas culpas atribui ao uso da fotografia: «There was something wrong with what I was doing – I’ve called it “obsessive naturalism” – but then I didn’t know what it was. Photography was causing it; I’d started to take photographs at that point. I wanted to get out. I found that was a trap, and said so. I wanted to stop it» (ob. cit., p. 50)
Para David Hockney, há limites na fotografia: «We think that the photograph is the ultimate reality, but it isn’t because the camera sees geometrically. We don’t. We see partly geometrically but also psychologically. If I glance at the picture of Brahms on the wall over there, the moment I do he becomes larger that the door. So measuring the world in a geometrical way is not that true» (ob. cit., p. 53). E, de facto, o retrato Clark, por exemplo, tem uma componente psicológica que supera em muito a sua dimensão estritamente visual. «Pictures make us see things that we might not otherwise see», refere o artista (ob. cit., p. 85).
A questão desenho vs. fotografia é antiga e, recentemente, foi recuperada pelo artista belga Ben Heine (n. 1983), numa série que tem a sua piada e pode ser vista aqui. O certo, porém, é que, apesar das mordidelas que lhe dá, foi a fotografia que salvou Hockney do vazio criativo a que chegara nos alvores dos anos 70. Graças aos joiners (e aos cenários de ópera), David Hockney conseguiu sair do impasse em que estava, abrindo uma nova etapa na sua carreira, a qual pode ser vista como uma sucessão relativamente nítida de «fases», marcadas em larga medida pelas técnicas e materiais de suporte que utiliza. Mais recentemente, o iPhone e o iPad deram-lhe uma nova vida. Mas, nos anos 80, foram as colagens com fotos Polaroid que o salvaram. Na altura, Hockney-fotógrafo foi exibido entre nós, numa exposição da Gulbenkian, nos idos de 1985, e, pouco depois, o artista discorria amplamente sobre a matéria em Hockney on Photography: Conversations with Paul Joyce (1988).
Esta é uma das múltiplas contradições e ambiguidades de Hockney. Como vimos, criticou Damien Hirst por este trabalhar em equipa. Sucede, porém, que Hockney também não dispensa o seu assistente pessoal, de seu nome Jean-Pierre Gonçalves de Lima, um acordeonista de raiz parisiense, que, pelo que vemos no livro de Gayford, acompanha o pintor para todo o lado. Traz-lhe flores todos os dias, para que o pintor as pinte. Rosas, mas também lírios – os lírios que são signos da feminina pureza e que lá aparecem em Mr Clark, como vimos. Aliás, Gayford louva Hockney por trabalhar com assistentes, como um mestre do Barroco ou da Renascença, falando em «we» or «us» sempre que alude ao seu trabalho (ob. cit., p. 62). Pouco depois, Hockney veio dar uma dispensável bicadita em Damien Hirst por trabalhar com assistentes… Logo ele, que em 2010, andou a desenhar árvores com apoio de um estranho brinquedo com nove câmaras fotográficas, o que exigiu a ajuda de uma numerosa equipa. Fotografia, apoio de terceiros, coisas que Hockney depois questiona. Enfim, mais uma das suas deliciosas ambiguidades.
Jean-Pierre Gonçalves de Lima, o actual assistente de Hockney, por este retratado |
Também em Mr Clark há múltiplas ambiguidades. O retrato, ao contrário do que é regra, não glorifica os retratados. Mas também não os maltrata em excesso – ou, pelo menos, de uma forma que seja evidente para o observador. Fica-se, nesse particular, pelos domínios das alusões, da insinuação, do recado, das mensagens em código. Vidas cifradas. E um quadro em equilíbrio instável entre representação, própria dos retratos, e abstracção, exigida pela contemporaneidade. Um equilíbrio instável que é também, curiosamente, o do casal retratado. A tela oscila, de facto, entre o realismo sólido e a abstracção pura. Numa afirmação corroborada pela crítica (cf. Martin Gayford, ob. cit., p. 47), o pintor referiu que esta seria uma das suas obras mais próximas do naturalismo (cf. David Hockney by David Hockney: My Early Years, 1976). Hockney, de resto, sempre recusou o influxo do conceptualismo: «The whole idea of conceptualismo in art ahsn’t interested me much at all; there’s been very little influence from it in my own work» (ult. ob. cit., p. 123).
Um desenho de 1969 mostra que talvez tivesse pensado colocar Celia em posição sentada. É improvável que o desenho fosse para o quadro. Mas, se o fosse, teria sido uma desgraça, ora vejam:
Uma coisa que gosto de fazer é ensaiar alternativas, pois isso ajuda-me, muitas vezes, a compreender as opções do autor. Na maior parte dos casos, talvez pela força do hábito de tanto olhar um quadro na sua versão verdadeira e original, concluo que ela é sempre melhor do que quaisquer alternativas saídas desta cabeça apoucada. É por isso que Hockney está na Order of Merit e eu aqui noites dentro, a escrevinhar no Malomil, até ver.
Neste caso em concreto, o ensaio óbvio consiste em inverter a tela na horizontal, retomando o posicionamento das figuras do Retrato Arnolfini. Virado às avessas, continua a ser Mr and Mrs Clark and Percy? Continuar, continua. Mas não é a mesma coisa… O leitor que veja e que opine:
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Também gosto de olhar para as recriações das obras famosas, pois certificam o seu estatuto icónico mas, sobretudo, dizem-nos muito sobre os tempos que vivemos. Fiz esse exercício à exaustão a propósito de O Grito, de Munch, aqui. Agora não vou levar aos limites a paciência dos leitores, por certo já extenuados de Giovanni Arnolfini, David Hockney, Ossie Clark e outros artistas.
Em todo o caso, não poderia deixar de referir que, segundo parece, Mr and Mrs Clark teve uma influência decisiva na fotografia (sobretudo, na escolha da paleta de cores) do datadíssimo filme Kramer vs. Kramer (1979), de Robert Benton, adaptado do livro de Avery Corman. Pelo menos, o responsável pela cinematografia, Nestor Almendros (1930-1992), referiu que, ao princípio, Benton pretendeu aproximar-se da estética de Piero Della Francesca (o que teria sido um pouco complicado, uma vez que o enredo se passa no Upper East Side, New York City). Almendros acabou por inflectir, como fonte de inspiração, para a obra de Hockney (cf. Dennis Schaefer e Larry Salvato, Masters of Light: Conversations with Contemporary Cinematographers, 1984, p. 19). O filme, que fez sucesso, tinha como protagonistas principais Dustin Hoffman e Meryl Streep. Sinopse – ao colapso do casamento, juntava-se um dado relativamente inédito para os padrões da época: era a personagem feminina, Joanna, que abandonava o lar, deixando o marido, Ted, a cuidar do único filho do casal, Billy. Depois, regressa – e exige a custódia da criança. Dustin Hoffman, que na «vida real» saíra de um doloroso processo de divórcio, contribuiu de tal forma para a redacção do script que Benton lhe quis atribuir a co-autoria do mesmo, oferta que o actor recusou.
Outro caso curioso é o de John Myatt. Ao que parece, até Hollywood já se interessou pela história deste recatado professor de Artes Visuais em Straffordshire que, pelas contingências da vida, virou falsário. À semelhança do personagem masculina de Kramer vs. Kramer, John foi abandonado pela mulher, que lhe deixou à guarda dois filhos menores (não há referência a cães ou gatos). A sua carreira começou em 1983, quando colocou um anúncio a oferecer «falsificações genuínas» ao preço de 150 libras. Em rigor, não se tratavam de réplicas ou cópias, mas de quadros que Chagall, Monet ou Picasso poderiam ter pintado «se tivessem tido tempo para isso» (como Wyatt, honesto, dizia no anúncio). Em 1986, um cliente ligou-lhe, dizendo que um dos seus trabalhos, imitando o estilo do pintor cubista Albert Gleizes, tinha sido avaliado em 25.000 libras pela Sotheby’s. Perguntou-lhe se queria ficar com metade do dinheiro. Com filhos para criar, John Myatt não resistiu. A partir daí, the sky was the limit: a dupla vendeu mais de 200 «falsificações genuínas», cometendo, ao longo de sete anos, aquele que é considerado por alguns a maior fraude artística do século XX. Foi bom enquanto durou, à semelhança dos casamentos. Myatt e o seu cúmplice foram apanhados, julgados e condenados à cadeia. Tendo saído da prisão, Myatt está hoje reabilitado – ou quase… Continua a pintar quadros fraudulentos, que na parte da frente ostentam a assinatura de nomes célebres. É possível, assim, comprar uma tela assinada «Monet» e exibi-la na parede da sala das visitas, impressionando-as com o impressionista, à semelhança do que faziam os Arnolfini com o seu candelabro de braços e o espelho descomunal. Os Arnolfini dos nossos dias são oligarcas russos e celebridades, que não hesitam em pagar 30.000 libras por um quadro de Monet/Myatt (para evitar mais problemas com a Justiça, nas costas dos quadros, o antigo professor, agora artista-imitador, escreve, com graça: «John Myatt: Genuine Fake»). Ao que parece, está a ser ou já foi realizada uma série de televisão sobre John Myatt – não sei, só sei que se estivesse a ver televisão provavelmente nem sabia quem era John Myatt… Bem, o ponto que interessa: numa bela golpaça de marketing, John Myatt decidiu recriar quadros célebres com figuras não menos célebres. Fame to Frame, assim se chama a coisa. O actor Stephen Fry surge como Papa Inocêncio X, via Diego Velázquez; a cantora Mylene Klass é uma rapariga com brinco de pérola, graças a Vermeer/Wyatt; Ron Wood, dos Rolling Stones, aparece sentado a déjeuner sur l’herbe. E por aí fora. Também o Mr Clark não resistiu a esta lógica re-criativa em que o que interessa, evidentemente, é capturar umas libras, que o euro anda em baixa. Para a recriação do quadro de Hockney, John Wyatt escolheu o actor Jim Carter, agora conhecido como mordomo da série televisiva Downtown Abbey, e sua mulher, a actriz Imelda Staunton, que apareceu no quinto e sétimo filmes da saga Harry Potter (2007 e 2010) e, sobretudo, esmagou por completo em Vera Drake (2004). Casados desde 1983 (têm uma filha, Bessie, e um cão, Molly), celebraram as bodas de prata na maior das harmonias. Staunton já confessou que, nestes anos todos, não estiveram afastados um do outro mais do que umas três semanas, devido a compromissos profissionais. E, mais do que isso, Imelda Staunton refere-se ao marido dizendo, com orgulho: «He has always done just what he wants to do». É talvez a única afinidade entre, por um lado, o actor Jim Carter e, por outro, o gato Percy, o estilista Ossie Clark e o pintor David Hockney. Todos sempre fizeram o que quiseram.
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Falando de gatos, não nos podíamos ir embora sem referir um caso pungente de amor pelos felinos domésticos. Num blogue dedicado a gatos, que chega a proclamar-se cultor da «zoolatria» (consulte o blogue e facilmente perceberá), uma senhorita de Devon conta que a sua mãe, admiradora de Hockney, lhe pediu para, numa fotografia que recriava o quadro Mr Clark, inserir «Henry» (1985-2004), um gato siamês que era a alegria da casa e, coitadito, morrera três anos antes. Graças às artes manipulatórias da técnica digital, a filha produziu uma recriação da tela da Tate Gallery em que lá aparece a mãe, o pai e o eternamente amado «Henry». A fotografia chama-se Mr and Mrs Marshall and Milo. O que impressiona não é as pessoas fazerem coisas destas. Compreende-se: em Devon, com longos fins-de-semana, sempre chuvosos, há que matar o tempo. Os domingos são cinzentos e compridos, tenham compaixão, ó gentes do Mediterrâneo. Surpreendente é publicitar estas coisas na Internet, urbi et orbi, como as bênçãos do Papa. Eis a ternurinha, com o pai-Marshall descalço e tudo. Um mimo:
Com o patrocínio dos inultrapassáveis Móveis KOL, prossigamos este périplo kitsch por algumas recriações fotográficas:
Kate and David
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Mr and Mrs Robbie Without Percy
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Entremos agora em domínios mais sérios. Aqui há um par de anos, por bandas de 2007, a Srª Coleen McLoughlin decidiu dar-se à estampa num slideshow em que, numa das fotografias, fazia, entre o mais, um remake do acrílico sobre tela de David Hockney. Trata-se de um daqueles casos, raros no mundo selvagem da Natureza, em que a cópia supera em muito o original. Coleen McLoughlin não é uma vulgar wag (Wifes and Girlfriends), o termo depreciativo, geralmente bilioso, com que a imprensa britânica designa as companheiras dos jogadores de futebol. Não, Coleen McLoughlin não é uma wag, oca e vazia. Apresenta-se Coleen como «colunista» e «escritora». Pois bem: se Baptista-Bastos tivesse nascido em Liverpool, em 4 de Abril de 1986, fosse mulher, culta, gira, casada com um jogador de futebol e talentosa na prosa, Baptista-Bastos seria, inquestionavelmente, Coleen McLoughlin. A rapariga, insistimos, não é uma wag. Isto apesar de se ter casado com o jogador Wayne Rooney. E isto apesar de o ter feito aos 16 anitos de idade. E isto apesar de o ter feito em Portofino, um sítio fino da costa italiana. E isto de o casal ter vendido as fotografias da boda por 2,5 milhões de libras à revista OK!, publicação do Departamento de Linguística Aplicada do Instituto Politécnico da Arrifana (Pólo C1 – Sócios Inatel Acamados). Vejamos então o momento do slideshow em que Coleen McLoughlin posa como Celia Clark, tendo ao seu lado um pató de olhar mortiço e enfastiado:
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Diferentes são as tentativas de recriação artística de Mr Clark. Numa delas, Michael McLellan foi muito pouco subtil na alusão aos Arnolfini e à sua influência sobre Hockney: em Mr and Mrs Clark meet the Arnolfinis, pura e simplesmente meteu o quadro de Van Eyck numa revisitação pueril da tela de Hockney.
Doutro calibre, indubitavelmente, é a obra de Simon Mckinstrey, de 1976, intitulada David Hockney With Mr and Mrs Clark. Ei-la:
Engraçada, a seu modo, para quem gosta de ler Susana Tamaro e acredita que Deus fala com Alexandra Solnado, é a tela de Roger Shapley, um artista de Oxfordshire. Pintada em 2008, com o título Mr and Mrs Taylor. Roger estragou a pintura foi quando avançou uma explicação muito elaborada para aquilo que, doutro modo, não passaria de um pastiche sem consequências: «I not only strive to capture the likeness of my subject but more importantly the elusive qualities of spirit, mood and emotion». Assim, sem mais nem menos. A obra foi adquirida pelos próprios retratados, à faute de mieux.
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Roger Shapley, Mr and Mrs Taylor, 2008
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Uma vez que entrámos em territórios de choque e pavor, daqui para a frente só há dragões. Nas artes plásticas, Mr and Mrs Cox and Vincent, um quadro-escultura de Philip Cox e sua mulher, Laraine, acompanhados pelo gato Vincent.
Como se não bastasse, Phil Nash, um fotógrafo e pintor amador, assassinou soezmente David Hockney, tendo ainda o desplante de solicitar 325 libras a quem lhe queira comprar a reproduction e, pior ainda, de afirmar que a tela que o inspirou não é conhecida propriamente pelo seu mérito artístico… Na versão de Nash, Celia Birtwell apresenta gritantes parecenças com a infortunada cançonetista Cândida Branca Flor, facto que deveria merecer a melhor atenção do senhor inspector Gonçalo Amaral.
Mr and Mrs Cox and Vincent
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Como se não bastasse, Phil Nash, um fotógrafo e pintor amador, assassinou soezmente David Hockney, tendo ainda o desplante de solicitar 325 libras a quem lhe queira comprar a reproduction e, pior ainda, de afirmar que a tela que o inspirou não é conhecida propriamente pelo seu mérito artístico… Na versão de Nash, Celia Birtwell apresenta gritantes parecenças com a infortunada cançonetista Cândida Branca Flor, facto que deveria merecer a melhor atenção do senhor inspector Gonçalo Amaral.
Phil Nash
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É ainda de salientar, agora pela positiva, o trabalho do desenhador e caricaturista Molly Lawless, que nos ofereceu, em separado, um «Mr Clark» e uma «Mrs Clark», ambos com o acrescento «Sorry, Mr Hockney»… Sorry, porquê? Os desenhos estão soberbos, captam a essência do quadro e Hockney certamente teria gostado de ver esta brincadeira inocente:
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Nas letras blogoesféricas, Harald Cavalli-Björkman filosofou poeticamente sobre o tempo, a memória e Jorge Luis Borges num texto denso e compacto publicado aqui. Em Maio de 2005, a menina Momina entregou-se a um devaneio literário mais ambicioso, em que descreve o momento em que o pintor entra portas adentro do apartamento dos Clark para os retratar. Estes, todavia, em momento algum se retractam, pelo que, no final, fica tudo em águas de bacalhau (codfish waters, no jargão pitoresco de Notting Hill). A dado passo, bebem um chá descrito como «infecto», cujo sabor David ultrapassa auxiliado pela deglutição de um muffin. Eis um momento da Literatura Universal que, se tiveres tempo e fores reformado ou funcionário des-subsidiado, podereis encontrar aqui, com a garantia de que alcançareis por esta via uma tarde tranquilamente passada, longe da nefanda pornografia, do confronto televisivo com Júlia Pinheiro ou ainda de inúteis passatempos, tais como a cartilha do Sudoku, os Nibelungos de Wagner ou o visionamento de Douro, Faina Fluvial, conhecido pastelão bíblico filmado nas margens do Cávado, em 3-D.
No que concerne a vídeos, temos uma película, com relativa graça, em que um jovem casal decidiu recriar a cena do quadro:
Há também uma explicação de Mr and Mrs Clark, no qual uma atilada rapariguita debita os vários lugares-comuns que sobre a tela se têm dito:
.Há também uma explicação de Mr and Mrs Clark, no qual uma atilada rapariguita debita os vários lugares-comuns que sobre a tela se têm dito:
Mas nada do que se diga sobre este quadro supera a «vida real» que lhe estava subjacente. Num ensaio de Merlin Carpenter, já citado, publicado originalmente em Texte Zur Kunst (seja lá isso o que for), sustenta-se, numa tese muitíssimo discutível, que Mr Clark é «o retrato de um casamento gay traduzido para uma audiência heterossexual». Diz-se ainda que Hockney passou do conceito de picture within picture para picture behind the picture. A escala do quadro e as figuras em simetria conferem-lhe o formalismo e o grandeur próprio dos grandes retratos clássicos, com tudo a desenrolar-se diante de nós numa forma que já foi descrita como «highly traditional» (cf. Simon Wilson, Tate Gallery. An Illustrated Companion, 1991, p. 253). À superfície, portanto, uma aparência convencional. O problema é o que se passava por detrás. Vamos lá então espreitar o que se passava por detrás, behind the the picture. Isto:
Raymond «Ossie» Clark (1942-1996)
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Raymond «Ossie» Clark (1942-1996) era na altura um dos mais famosos estilistas da frenética Londres dos Swinging Sixties. A seu lado, só poderemos colocar Mary Quant, que sempre evocaremos como inventora da mini-saia, e Barbara Hulanicki, fundadora da célebre loja Biba, que teve como balconista uma jovenzita de seu nome Anna Wintour, que viria a ser a temidíssima e poderosíssima editora-chefe da Vogue americana, parodiada por Robert Altman em Prêt-a-Porter (1994) e encarnada por Meryl Streep em O Diabo Veste Prada (2006).
Para percebermos a importância de Clark, basta referir que ainda há pouco o requintadíssimo Victoria & Albert realizou em 2003 uma retrospectiva da sua obra, à qual foi dedicado um livro, da autoria de Judith Watt. Raymond Clark influenciou nomes como Yves Saint Laurent, Anna Sui, John Galliano, Christian Lacroix, Tom Ford, Gucci, Prada, etc., etc. e vestiu nomes como Ali MacGraw, Elizabeth Taylor, Liza Minelli, Jane Birkin, Mick e Bianca Jagger, Keith Richards e Anita Pallenberg, a infortunada Sharon Tate, Eric Clapton, Yoko Ono, Jimi Hendrix, Britt Ekland, Bette Davis, Goldie Hawn. Era íntimo do mundo do rock: conheceu Epstein, esteve com Brian Jones no dia em que este morreu, esteve no backstage do famoso concerto dos Stones no Hyde Park e por aí fora. Uma empregada da Quorum foi namorada por algum tempo de Syd Barrett, na Quorum trabalhou o sucessor de Syd Barrett nos Pink Floyd, David Gilmour. Por cima da loja Quorum, pernoitava com frequência Brian Jones. Vidaças.
As modelos Twiggy, Amanda Lear, Pattie Boyd, Kari-Ann Jagger, Jean Shrimpton ou Penelope Tree posaram com vestidos seus para fotógrafos como David Bailey, Norman Parkinson ou Helmut Newton. Hoje, a sua roupa é do mais vintage que existe, sendo avidamente disputada. Entre as suas clientes post-mortem, Ossie Clark conta com Kate Moss, Naomi Campbell ou Emma Watson. Apreciemos o vestido vintage desta última, numa première de Harry Potter:
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Chrissie Shrimpton e Ossie, 1965
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Jane Birkin vestindo Ossie Clark
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Idem
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Amanda Lear com Ossie Clark (a chinoiserie do vestido é de Celia)
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Ali McGraw, com Ossie Clark
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Idem
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Mick e Bianca Jagger (esta, com vestido Ossie Clark), 1971 |
Keith Richards e Anita Pallenberg. Ela, com Ossie Clark
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Pattie Boyd (vestida Ossie Clark), com George Harrison, no Festival de Cannes, 1968 |
Twiggy, calças Ossie Clark
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Ossie Clark, 1967
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Nicky Samuel. Um devaneio pré-rafaelita de Ossie Clark
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1966 |
1971 |
1972 |
1971 |
1971 |
1971 |
1970 |
1969 |
1969 |
1970 |
As modelos Twiggy, Amanda Lear, Pattie Boyd, Kari-Ann Jagger, Jean Shrimpton ou Penelope Tree posaram com vestidos seus para fotógrafos como David Bailey, Norman Parkinson ou Helmut Newton. Hoje, a sua roupa é do mais vintage que existe, sendo avidamente disputada. Entre as suas clientes post-mortem, Ossie Clark conta com Kate Moss, Naomi Campbell ou Emma Watson. Apreciemos o vestido vintage desta última, numa première de Harry Potter:
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Emma Watson, numa premiére de Harry Potter. Com original Ossie Clark . |
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Amigo de Brigitte Bardot, quando ia até Nova Iorque andava em festas e convívios com Andy Warhol, Diana Vreeland ou Truman Capote. Folheando o seu diário, atentemos, por exemplo na entrada relativa ao dia 10 de Janeiro de 1974: «January 10. Moved into Powis Terrace. Dinner with Mick and Bianca [Jagger]. Took Mo to cherr him up. After, Paul Getty Jr with Nikki Weymouth, Chrissy, Robert Fraser». Vidaças.
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Amigo de Brigitte Bardot, quando ia até Nova Iorque andava em festas e convívios com Andy Warhol, Diana Vreeland ou Truman Capote. Folheando o seu diário, atentemos, por exemplo na entrada relativa ao dia 10 de Janeiro de 1974: «January 10. Moved into Powis Terrace. Dinner with Mick and Bianca [Jagger]. Took Mo to cherr him up. After, Paul Getty Jr with Nikki Weymouth, Chrissy, Robert Fraser». Vidaças.
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The King of King's Road |
Ossie Clark e Alice Pollock, da Quorum, uma parceria nas modas e nas drogas
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Na altura, a imprensa britânica chamava-lhe «The King of King’s Road». Não desdenhando o título, Ossie qualificava-se a si próprio como «brilliant butterfly» ou «master cutter» («It’s all in my brain and fingers, I am a master cutter») e é nessa postura de soberba e de altivez que Hockney o retrata em Mr and Mrs Clark. A sua biografia é uma clássica histórica de decline and fall. De origens relativamente modestas, irá estudar para Manchester quando tinha 16 anos. Para percorrer o caminho até à escola, levantando-se cedo, a mãe dava-lhe comprimidos para acordar e se manter desperto ao longo do dia. Aí começou o vício das drogas, que manteria até à morte, numa demonstração cabal de que, por um lado, o que é bom nunca se larga e, por outro lado, que, às vezes, mães e escolas são más influências neste nosso caminho terreno de servos de Cristo. Em 1959, no histórico café-bar Cona, em Manchester, conhece Celia Birtwell e, um pouco depois, David Hockney, tornando-se amigo íntimo de ambos. Indo todos para Londres, os três firmaram créditos: Hockney nas artes plásticas, Celia como desenhadora têxtil e Ossie como estilista. Havia algo que os aproximava e que seria uma das marcas mais fundas do espírito dos anos 60: à semelhança dos Beatles, dos Rolling Stones e de outros, eram jovens, mas dotados de uma extraordinária capacidade de ter sucesso e ganhar dinheiro. Ora, isto subvertia os padrões convencionais, que exigiam sisudez e «maturidade» para alcançar o êxito e fazer fortuna (cfr. Arthur Marwick, ob. cit., p. 324).
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Ascendendo durante os anos 60 (já designados como «great age of social mobility»), Ossie Clark era um novo-rico nas duas acepções do termo: rico e novo. Em 1966, já a exclusiva loja Quorum, de Alice Pollock, vendia roupas da marca «Ossie Clark» (curiosidade já referida: David Gilmore, futuro vocalista dos Pink Floyd, era motorista da Quorum e forneceria a Clark muita da música que este usou nos seus desfiles). Os tecidos eram, em grande maioria, desenhados por Celia e Ossie modelava-os com uma mestria inigualável, ao mesmo tempo que, na companhia de Alice Pollock, começava a malhar forte e feio nas substâncias ilícitas. Uma amiga da altura, Lady Henrietta Rous, confessa que foi então que a sua personalidade começou a mudar. E, tratando-se Lady Henrietta de uma senhora da grande aristocracia (ver aqui), quem somos nós para a desmentir?
Ossie comprava discos às carradas, tinha Nijinsky como ídolo e fonte inspiradora, criava roupas que eram, literalmente, o último grito da moda dos anos 60: justas ao corpo e, ao mesmo tempo, dotadas de uma extraordinária capacidade para permitir a mais ampla e permissiva liberdade de movimentos. Não admira, pois, que haja desenhado roupa que Mick Jagger, os Beatles, Marianne Faithfull e Liza Minnelli usaram em palco. Na altura com 18 anitos, Marianne Faithfull – moça aristocrática aparentada aos Habsburgo, sobre a qual circula ainda hoje um lúbrico rumor, falso, em torno de uma barra de chocolate Mars – contou-me a primeira sessão de prova de um vestido das mãos de Clark: «Ossie wanted everything to be on bare skin, so he said “Take it all off” – and I did – the display was heart-tugging».
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.Na altura, a imprensa britânica chamava-lhe «The King of King’s Road». Não desdenhando o título, Ossie qualificava-se a si próprio como «brilliant butterfly» ou «master cutter» («It’s all in my brain and fingers, I am a master cutter») e é nessa postura de soberba e de altivez que Hockney o retrata em Mr and Mrs Clark. A sua biografia é uma clássica histórica de decline and fall. De origens relativamente modestas, irá estudar para Manchester quando tinha 16 anos. Para percorrer o caminho até à escola, levantando-se cedo, a mãe dava-lhe comprimidos para acordar e se manter desperto ao longo do dia. Aí começou o vício das drogas, que manteria até à morte, numa demonstração cabal de que, por um lado, o que é bom nunca se larga e, por outro lado, que, às vezes, mães e escolas são más influências neste nosso caminho terreno de servos de Cristo. Em 1959, no histórico café-bar Cona, em Manchester, conhece Celia Birtwell e, um pouco depois, David Hockney, tornando-se amigo íntimo de ambos. Indo todos para Londres, os três firmaram créditos: Hockney nas artes plásticas, Celia como desenhadora têxtil e Ossie como estilista. Havia algo que os aproximava e que seria uma das marcas mais fundas do espírito dos anos 60: à semelhança dos Beatles, dos Rolling Stones e de outros, eram jovens, mas dotados de uma extraordinária capacidade de ter sucesso e ganhar dinheiro. Ora, isto subvertia os padrões convencionais, que exigiam sisudez e «maturidade» para alcançar o êxito e fazer fortuna (cfr. Arthur Marwick, ob. cit., p. 324).
O casamento, no Kensington Registry Office, 1969.
Os únicos convidados foram a sua irmã, Kay, e Hockney.
Celia e Kay usavam vestidos Ossie Clark
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Repare-se nas árvores, à direita
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As mesmas árvores, curiosamente.
Em 1974. Ossie, Pierre Laroche, Marianne Faithfull, Michael Roberts
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Os Clark, em casa, com gato
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Hockney e Ossie, ao fundo. Com Celia |
Um convívio, crê-se que informal
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Férias em Espanha, finais dos anos 60: imagens de Málaga e Granada |
A decadência anunciada: Ossie em 1983
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A sua última (e má) obra, os Diaries, publicados postumamente |
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Ascendendo durante os anos 60 (já designados como «great age of social mobility»), Ossie Clark era um novo-rico nas duas acepções do termo: rico e novo. Em 1966, já a exclusiva loja Quorum, de Alice Pollock, vendia roupas da marca «Ossie Clark» (curiosidade já referida: David Gilmore, futuro vocalista dos Pink Floyd, era motorista da Quorum e forneceria a Clark muita da música que este usou nos seus desfiles). Os tecidos eram, em grande maioria, desenhados por Celia e Ossie modelava-os com uma mestria inigualável, ao mesmo tempo que, na companhia de Alice Pollock, começava a malhar forte e feio nas substâncias ilícitas. Uma amiga da altura, Lady Henrietta Rous, confessa que foi então que a sua personalidade começou a mudar. E, tratando-se Lady Henrietta de uma senhora da grande aristocracia (ver aqui), quem somos nós para a desmentir?
Sapatos Ossie Clark
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Ossie comprava discos às carradas, tinha Nijinsky como ídolo e fonte inspiradora, criava roupas que eram, literalmente, o último grito da moda dos anos 60: justas ao corpo e, ao mesmo tempo, dotadas de uma extraordinária capacidade para permitir a mais ampla e permissiva liberdade de movimentos. Não admira, pois, que haja desenhado roupa que Mick Jagger, os Beatles, Marianne Faithfull e Liza Minnelli usaram em palco. Na altura com 18 anitos, Marianne Faithfull – moça aristocrática aparentada aos Habsburgo, sobre a qual circula ainda hoje um lúbrico rumor, falso, em torno de uma barra de chocolate Mars – contou-me a primeira sessão de prova de um vestido das mãos de Clark: «Ossie wanted everything to be on bare skin, so he said “Take it all off” – and I did – the display was heart-tugging».
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Com Gala Mitchell, a sua modelo favorita
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A crítica de moda Linda Watson, numa obra sobre Celia Birtwell saída o ano passado, afirma que o raro talento de Ossie para apreender o corpo feminino se devia à sua bissexualidade: conseguia modelar as mulheres como deusas, à semelhança de muitos estilistas gay, mas sem perder o desejo que assegurava a extrema sensualidade das peças que produzia. Levada às últimas consequências, esta tese de Linda Watson, autora de créditos firmados, com um livro sobre a Vogue, conduz-nos à conclusão singular de que os bissexuais são melhores estilistas do que os homossexuais e que estes não conseguem introduzir suficiente sensualismo nos seus trabalhos. Tendo em conta o número assaz elevado de estilistas gay, de acordo com os dados do Instituto Nacional de Estatística, isso implica que o mundo da moda está condenado à ausência de sensualidade. Tu tem cuidado, ó Linda, com teorias destas ainda vais para o desemprego de longa duração. Não irei, contudo, discutir o tema em profundidade, por manifesta falta de competência. Direi, tão-só, que a ambivalência sexual deu a Ossie Clark talento bastante para compreender também os corpos masculinos, na plenitude das suas mais íntimas subtilezas. Para Mick Jagger – a personagem masculina da lenda do chocolate Mars –, Ossie desenhou os fatos, ainda hoje recordados, que Jagger usaria cantor usaria em 1972 no American Tour que se destinava a promover Exile On Main Street. O disco, como o nome indica, foi produzido fora de Inglaterra, em França, onde a banda se refugiara para fugir aos impostos. Vergastado pela crítica da época, acabaria por ser colocado, pela Rolling Stone, na 7ª posição dos 500 melhores álbuns de todos os tempos. O American Tour 72 meteu muita confusão: música a partir, pancadarias e zaragata grossa nos fãs excitados, uma detenção de Mick Jagger e Keith Richards, entrada de cena de Truman Capote e da princesa Lee Radziwill e até uma merecida pausa de lazer numa orgia de quatro dias em Chicago, na mansão de Hugh Hefner. «As minhas lembranças são muito nebulosas», diz sobre o episódio, cândido e puro, Keith Richards. Recorda-se, no entanto, de terem incendiado uma casa-de-banho da mansão do dono da Playboy, ao prepararem uma substância de elevada toxicidade (Life, trad. portuguesa, p. 334). Os jumpsuits de Jagger foram concebidos por Ossie Clark e este tinha de fazer várias peças de cada modelo, pois a malha esgaçava muito durante os concertos. As imagens atestam-no:
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A crítica de moda Linda Watson, numa obra sobre Celia Birtwell saída o ano passado, afirma que o raro talento de Ossie para apreender o corpo feminino se devia à sua bissexualidade: conseguia modelar as mulheres como deusas, à semelhança de muitos estilistas gay, mas sem perder o desejo que assegurava a extrema sensualidade das peças que produzia. Levada às últimas consequências, esta tese de Linda Watson, autora de créditos firmados, com um livro sobre a Vogue, conduz-nos à conclusão singular de que os bissexuais são melhores estilistas do que os homossexuais e que estes não conseguem introduzir suficiente sensualismo nos seus trabalhos. Tendo em conta o número assaz elevado de estilistas gay, de acordo com os dados do Instituto Nacional de Estatística, isso implica que o mundo da moda está condenado à ausência de sensualidade. Tu tem cuidado, ó Linda, com teorias destas ainda vais para o desemprego de longa duração. Não irei, contudo, discutir o tema em profundidade, por manifesta falta de competência. Direi, tão-só, que a ambivalência sexual deu a Ossie Clark talento bastante para compreender também os corpos masculinos, na plenitude das suas mais íntimas subtilezas. Para Mick Jagger – a personagem masculina da lenda do chocolate Mars –, Ossie desenhou os fatos, ainda hoje recordados, que Jagger usaria cantor usaria em 1972 no American Tour que se destinava a promover Exile On Main Street. O disco, como o nome indica, foi produzido fora de Inglaterra, em França, onde a banda se refugiara para fugir aos impostos. Vergastado pela crítica da época, acabaria por ser colocado, pela Rolling Stone, na 7ª posição dos 500 melhores álbuns de todos os tempos. O American Tour 72 meteu muita confusão: música a partir, pancadarias e zaragata grossa nos fãs excitados, uma detenção de Mick Jagger e Keith Richards, entrada de cena de Truman Capote e da princesa Lee Radziwill e até uma merecida pausa de lazer numa orgia de quatro dias em Chicago, na mansão de Hugh Hefner. «As minhas lembranças são muito nebulosas», diz sobre o episódio, cândido e puro, Keith Richards. Recorda-se, no entanto, de terem incendiado uma casa-de-banho da mansão do dono da Playboy, ao prepararem uma substância de elevada toxicidade (Life, trad. portuguesa, p. 334). Os jumpsuits de Jagger foram concebidos por Ossie Clark e este tinha de fazer várias peças de cada modelo, pois a malha esgaçava muito durante os concertos. As imagens atestam-no:
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O vestido era tão justo que, ao ser exibido no Victoria & Albert, o colocaram em manequins de tamanho infantil |
Uma celebérrima e extraordinária imagem da autoria de Annie Leibovitz
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Clark celebrizou-se ainda pelos casacos de pele de cobra, como se explica no excelente The Look. Não apenas casacos, como veremos, pois concebeu também hotpants e coletes com as peles das serpentes. Usaram os casacos de pele (e temos prova documental) o próprio Ossie, todo estiloso, Keith Richards, Peter Schlesinger e Marianne Faithful.
Ossie Clark revolucionou igualmente os desfiles de moda, retirando-lhes a gravitas e a tranquilidade pedante e introduzindo movimento, teatralidade, sentido do espectáculo, como um happening. Pela primeira vez, os modelos dançavam na passerelle, ao som de música rock, em lugar de desfilarem como soldados norte-coreanos. No filme A Bigger Splash, um desfile da Quorum, a colecção de Ossie Clark (na versão Ossie Clark for Radley) apresentada no Royal Court Theatre em 1971, perante o olhar de David Hockney, sentado na primeira fila crê-se que ao lado de Peter Schlesinger (vestido de marujinho). Reparem como passerela Gayla, uma das musas de Ossie:
Em 1971, o ano em que termina o Mr Clark, David Hockney desenha igualmente o programa para o citado desfile de Ossie no Royal Court Theatre. O seu primeiro desfile, em Berkeley Square, foi também o primeiro em que, no Reino Unido, surgiram modelos de raça negra. Ossie Clark foi também precursor ao apresentar uma colecção de pronto-a-vestir na elitista Semana da Moda em Londres. Muito mais vanguardista do que Celia, a delicodoce pés-na-terra, dada a estampagens florais e pouco mais.
Em 1969, como já dissemos vezes sem conta, casou com Celia Birtwell, a velha amiga e namorada, tendo David Hockney como padrinho. Do casamento nasceram dois filhos, Albert e George. Às tantas, a dupla Mr and Mrs Clark estilhaçou-se: Celia não suportou mais as constantes traições de Ossie e a sua dependência das drogas. Trocou-o pelo artista Adrian George, com quem já mantinha uma relação afectiva, o que enfurecia Clark e o levava a ser violento, diz-se nas más-línguas da blogosfera. Open marriage, open marriage, mas só para um dos lados, que a mulher queria-se fiel e casta – caso contrário, apanhava no lombo e pela cara abaixo. Desconhecemos que opinião teriam disto tudo o Sr. e a Srª Arnolfini. Certo é que em 1976 Adrian George (um artista um bocado fatela, impõe-se dizê-lo) desenhava Hockney, como podemos ver aqui:
O abandono da mulher e a perda dos filhos deram um golpe fatal na carreira criativa de Ossie Clark, uma carreira que começava a acusar as marcas do estilo de vida do criador. Ainda em 1967, a parceria entre Ossie Clark e Alice Pollock chegava ao fim: apesar dos êxitos na moda, a insensatez no management obrigava-os a venderem a firma Quorum. Uma tentativa de regresso em 1977 revelou-se pouco frutífera e a década de 80, com o punk e o esplendor de Vivienne Westwood, acelerou a sua queda. No impiedoso mundo da moda, Malcolm McLaren, outra estrela em ascensão, produziam uma célebre série de t-shirts com a palavra «Scum», que faziam furor (mais uma prova de que, em qualquer época da História, o pessoal papa tudo o que lhe metam à frente, até quadros do Hockney). Numa dessas t-shirts, sob a palavra «Scum» surgia o rosto de Richard «Ossie» Clark, o destronado «King of King’s Road».
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Este pode ser o casaco do próprio Ossie, como se diz aqui |
Ossie Clark, 1970
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Keith Richards
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Peter Schlesinger
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Marianne Faithful
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Pele de pitão (ou píton), autoria: Ossie Clark
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Isto é que é uma ruça com bom aspecto!
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Autoria: Ossie Clark, 1966-67. Colecção particular de Celia Birtwell |
Ossie Clark revolucionou igualmente os desfiles de moda, retirando-lhes a gravitas e a tranquilidade pedante e introduzindo movimento, teatralidade, sentido do espectáculo, como um happening. Pela primeira vez, os modelos dançavam na passerelle, ao som de música rock, em lugar de desfilarem como soldados norte-coreanos. No filme A Bigger Splash, um desfile da Quorum, a colecção de Ossie Clark (na versão Ossie Clark for Radley) apresentada no Royal Court Theatre em 1971, perante o olhar de David Hockney, sentado na primeira fila crê-se que ao lado de Peter Schlesinger (vestido de marujinho). Reparem como passerela Gayla, uma das musas de Ossie:
Em 1971, o ano em que termina o Mr Clark, David Hockney desenha igualmente o programa para o citado desfile de Ossie no Royal Court Theatre. O seu primeiro desfile, em Berkeley Square, foi também o primeiro em que, no Reino Unido, surgiram modelos de raça negra. Ossie Clark foi também precursor ao apresentar uma colecção de pronto-a-vestir na elitista Semana da Moda em Londres. Muito mais vanguardista do que Celia, a delicodoce pés-na-terra, dada a estampagens florais e pouco mais.
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Em 1969, como já dissemos vezes sem conta, casou com Celia Birtwell, a velha amiga e namorada, tendo David Hockney como padrinho. Do casamento nasceram dois filhos, Albert e George. Às tantas, a dupla Mr and Mrs Clark estilhaçou-se: Celia não suportou mais as constantes traições de Ossie e a sua dependência das drogas. Trocou-o pelo artista Adrian George, com quem já mantinha uma relação afectiva, o que enfurecia Clark e o levava a ser violento, diz-se nas más-línguas da blogosfera. Open marriage, open marriage, mas só para um dos lados, que a mulher queria-se fiel e casta – caso contrário, apanhava no lombo e pela cara abaixo. Desconhecemos que opinião teriam disto tudo o Sr. e a Srª Arnolfini. Certo é que em 1976 Adrian George (um artista um bocado fatela, impõe-se dizê-lo) desenhava Hockney, como podemos ver aqui:
Adrian George, David Hockney, 1976
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O abandono da mulher e a perda dos filhos deram um golpe fatal na carreira criativa de Ossie Clark, uma carreira que começava a acusar as marcas do estilo de vida do criador. Ainda em 1967, a parceria entre Ossie Clark e Alice Pollock chegava ao fim: apesar dos êxitos na moda, a insensatez no management obrigava-os a venderem a firma Quorum. Uma tentativa de regresso em 1977 revelou-se pouco frutífera e a década de 80, com o punk e o esplendor de Vivienne Westwood, acelerou a sua queda. No impiedoso mundo da moda, Malcolm McLaren, outra estrela em ascensão, produziam uma célebre série de t-shirts com a palavra «Scum», que faziam furor (mais uma prova de que, em qualquer época da História, o pessoal papa tudo o que lhe metam à frente, até quadros do Hockney). Numa dessas t-shirts, sob a palavra «Scum» surgia o rosto de Richard «Ossie» Clark, o destronado «King of King’s Road».
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Os abutres dos bancos e as hienas do Fisco começaram a rondar o velho leão moribundo. Este chegou à suprema humilhação de desenhar vestidos a troco de favores, como o empréstimo de uma casa nas Caraíbas ou a reparação da sua ferramenta de ofício, a máquina de costura. Entretanto, do ponto de vista afectivo a vida de Clark também não corria pelo melhor. Tendo sempre sido bissexual, agora a homossexualidade era predominante: em 1978, conhece aquela que foi a segunda, e última, relação mais duradora da sua existência. Tratava-se de Nicholas Balaban, um barman do Sombrero Club em Kensington que, com o passar do tempo, Clark encoraja a estudar e a tornar-se criador de moda. Como na ficção de Orwell, 1984 é um annus horribilis: tendo ido à falência em 1983 (o Fisco reclamou 14 anos de impostos em atraso…), em 1984 Clark será literalmente despedido por Alfred Radley, para quem trabalhava, e a relação com Balaban termina. Com a falência, perde a sua casa e, após um período em que anda pendurado a dormir em casa de amigos, acaba alojado pelo Department of Health and Social Security num minúsculo apartamento em Penzance Street. Em 1984, Ossie entrara em depressão profunda, procurando em desespero reatar o namoro com o ex-barman Balaban, praticamente até à morte deste, causada pela SIDA, em 1994. Ossie Clark vira-se então para o budismo.
Ossie Clark em 1985: já falido, mas ainda numa festa no Claridge's. No entanto, já então era visível o seu desatino, como se conta aqui |
Às seis da madrugada do dia 7 de Agosto de 1996, cena descrita no excepcional (mas com uns errozitos…) blogue Another Nickel in the Machine, a polícia capta uma chamada de alguém que ligara para o 999. Do outro lado da linha, uma voz dizia: «I think I’ve killed someone…». Não era um exagero nem uma brincadeira de mau-gosto: quando a polícia entrou na exígua morada do outrora monarca de King’s Road, encontra-o jazendo no chão, com 37 facadas no corpo e a cabeça esmagada por um pote de terracota. Portanto, estava morto. O autor do crime era um italiano de 27 anos, de seu nome Diego Cogolato. Dezoito meses antes, acompanhara Clark até à sua residência, o já citado quarto de Penzance Street, pertencente ao Holland Park Council. No decurso do julgamento, a defesa de Cogolato alegou que este se encontrava sob o efeito de uma pesada quantidade de anfetaminas e Prozac, a qual tinha um singular efeito secundário, possivelmente não descrito na bula farmacológica: Cogolato via-se a si próprio como o Novo Messias. E a Clark como o Demónio. Assim se explicariam as 37 facadas. Diego Cogolato foi condenado a seis anos de prisão, tendo o tribunal considerado que, no momento do crime, a sua imputabilidade se encontrava diminuída.
Ainda muito antes de morrer às mãos de Cogolato, Ossie Clark era já uma triste figura, avistada a deambular aos caídos por Holland Park. No ano fatídico, fora preso durante dois meses, por ter agredido três polícias. Budista, rezava diariamente frente a um altar feito de maços vazios de cigarros Sobranie, isto quando não andava à cata de beatas no chão ou de moedas na fonte de Holland Park. Assim terminava uma fulgurante carreira no mundo da moda, iniciada quando um professor do ensino secundário, tendo reconhecido o talento precoce de Raymond «Ossie» Clark, lhe oferecera uma vasta colecção das revistas Vogue e Haper’s Bazaar. Tinha Ossie 23 anos e já a edição inglesa da Vogue andava de olho em cima dele. Por ironia, David Hockney foi convidado a dirigir o número de Dezembro de 1985 da revista Vogue, edição francesa. E quem ele escolheu para figurar na capa? Celia Birtwell. Isto anda mesmo tudo ligado, bem o diz António Ernesto.
Vogue, ed. francesa, Dezembro de 1985
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Com a morte de Ossie Clark, o quadro de Hockney perdia um dos seus personagens. Uma prova de que Ossie não era dotado para os negócios é fornecida pelo próprio quadro: Hockney ofereceu-o ao casal em 1971 e, nesse mesmo ano, o casal Clark, em apertos financeiros, vende-o à Tate por sete mil libras. Hoje, valeria milhões, bastando referir que um quadro de Hockney, The Splash, foi leiloado em Junho de 2006 por 2,5 milhões de libras (Junho de 2006 foi um mês louco no mercado artístico).
Com a morte de Ossie Clark, o quadro de Hockney perdia um dos seus personagens. Uma prova de que Ossie não era dotado para os negócios é fornecida pelo próprio quadro: Hockney ofereceu-o ao casal em 1971 e, nesse mesmo ano, o casal Clark, em apertos financeiros, vende-o à Tate por sete mil libras. Hoje, valeria milhões, bastando referir que um quadro de Hockney, The Splash, foi leiloado em Junho de 2006 por 2,5 milhões de libras (Junho de 2006 foi um mês louco no mercado artístico).
The Splash, 1966
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Já em 1973, The Splash (não confundir com A Bigger Splash, da Tate, nem com A Little Splash, nas mãos de privados) havia sido leiloado na Sotheby’s por 25.000 libras, um valor bastante superior às sete mil libras que, dois anos antes, os Clark pediram à Tate por um quadro que é actualmente considerado uma das melhores pinturas existentes no Reino Unido. O que teria levado os Clark a despachar o presente de casamento de Hockney é algo que não sabemos. Nem, de resto, o assunto é referido nos diários de Ossie Clark, postumamente publicados em 1998, e que, apesar de iniciados em 1971, se centram sobretudo no período posterior a 1974. Mas é surpreendente que, no auge da fama, os Clark hajam decidido trespassar uma oferta do velho amigo e padrinho David Hockney. São estranhas estas vidaças, no léxico de António Ernesto. Ou, ao decidirem alienar o quadro, terão os Clark percebido os recados pérfidos que Hockney deixara inscritos a acrílico, para mais numa tela daquelas dimensões?
David Hockney, ao que tudo indicia, não terá ficado zangado com a venda do quadro que, nesse próprio ano, oferecera aos seus amigos. A obra levara tempo a estar pronta, dera muito trabalho, mas Hockney terá porventura pensado que sempre ficaria melhor nas paredes da Tate Gallery do que na residência dos Clark. O pintor continuará a ser amigo de Celia, como veremos. Aliás, nesse ano de 1971, David Hockney, Peter Schlesinger e Celia Clark viajam os três até Marrocos. Ossie terá ficado em Londres. Mas, no final do Verão de 1971, Hockney vai para Carennac com um vasto grupo: Peter Schlesinger, Ossie Clark e Celia Birtwell, Mo McDermott, Maurice Payne, George Lawson e Wayne Sleep. Aí, desenha Celia Smoking e Carennac and Celia. Nada sugere, portanto, qualquer desavença entre Hockney e os Clark. Desentendimento havia, isso sim, entre Hockney e Schlesinger e é por essas alturas que a relação entre ambos termina. Com o passar dos anos, a proximidade com Celia manteve-se, mas é provável que os ínvios caminhos da vida de Ossie o tenham afastado de David, e vice-versa. Em todo o caso, Ossie apareceria, algo desleixado e gasto, numa exposição de desenhos de Hockney, em 1981, prova de que, passados dez anos sobre a conclusão de Mr Clark, ainda se frequentavam mutuamente, pelo menos nestas ocasiões (ou terá Ossie aparecido sem convite, como bom e atrevido «penetra»?).
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Em Paris, fotografados por Peter Schlesinger, 1970 |
Celia fotografada em São Francisco, 1973, por David Hockney |
Celia e David, fotografados por Peter Schlesinger |
Sobre o fim do matrimónio Clark, Hockney comentou, uma vez: «Mr and Mrs Clark and Percy probably caused it». Não sabemos se estava a ironizar ou se, de facto, a pintura precipitou o fim de uma relação instável. O certo é que o casal livrou-se dela no próprio ano em que a recebeu. Mas também é certo que entre a data do quadro e a ruptura conjugal definitiva ainda passaram três anos.
Existe um sinal muito curioso, que encontrei num joiner de Hockney, datado de 1982. O autor de Mr Clark, o maior pintor vivo de Inglaterra, fotografou os dois filhos do casal. Colocou, em título, Celia’s Children. Albert & George’s Clark. Ou seja, não escreveu, por exemplo, Celia and Ossie…, escreveu Celia’s Children. Os filhos dela. O mesmo acontece com outra fotocolagem de 1983, George, Blanche, Celia, Albert and Percy, em que aparece a mãe e os filhos e os dois gatos. Só falta... Ossie.
Celia’s Children. Albert & George’s Clark, 1982 |
George, Blanche, Celia, Albert and Percy, 1983
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Ossie Clark era, ao que tudo indicia, uma personalidade complexa, to say the least. Quando soube da sua morte, Mick Jagger declarou à imprensa: «He was a great friend and a wonderful talent. He's someone I'll always remember with great affection». Britt Ekland, em lágrimas, disse o mesmo: «I cannot believe it. He was a great friend and one of the all-time greats». Britt estivera com ele no dia em que acabaria por ser morto, e retém uma impressão sombria do estado em que se encontrava o amigo: «He hated being so down-and-out. He really wanted to make a big comeback. It was a travesty that someone whose star shone so brightly could fade away like he did».
Em contrapartida, Anita Pallenberg, outro ícone da Swinging London, namorada de Brian Jones e Keith Richards, tem dele uma péssima lembrança: «He was a nasty piece of work, a troublemaker. If he came to Cheyne Walk, h’de be so unbearable we had to throw him out. And he was like that till the end. He was backstage at a Stones concert a couple of years before he died and he was so loud, unpleasant and arrogant we had to throw him out again!»
A ex-mulher, Celia Birtwell, é mais comedida na sua apreciação. Ao saber da morte de Ossie, lamentou, amargurada, o desfecho desta vida trepidante: «I have two wonderful sons from Ossie and we are in shock. We had great times together. He was a unique designer. It's a tragedy it didn't go on». Mais recentemente, numa entrevista, foi mais crítica. Para ela, a ambição desmesurada de Ossie acabaria por levá-lo à desgraça. Ossie Clark era uma pop star e, à semelhança de tantas outras, não conseguiu lidar com o estrelato, sobretudo porque se deixou embriagar pela fama e, às tantas, julgava que tinha direito ao mesmo estatuto – e ao mesmo estilo de vida – daqueles que vestia. «He got lost. It was a heavy time for acid and things – I was always scared of that. He was deeply ambitious at first but then he got kind of… ridiculous. He saw the money pop stars were making, the Beatles and the Stones, doing a gig and having glamorous holidays, and he thought he [deserved] that too». Celia compara mesmo o Ossie a Hockney, viciado no trabalho: «[…] he became too difficult. You look at Hockney and Hockney works all bloody day, he likes doing it, it's what he's here to do, nothing gets in the way. Once Ossie knew he was top of the tree, something went wrong in his head. To throw that brilliance away and end up like he did was a tragedy. But some stars are like that, aren't they? They have a short life, burn themselves out and that's what you have to tell yourself, really».
Celia e Ossie, trabalho de grupo
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Apesar de, em momentos cruciais, Celia e Clark trabalharem em conjunto, as trajectórias de ambos são perfeitamente distintas. Nascida em 1941 em Prestwich, um subúrbio de Manchester, Celia Birtwell conquistou discretamente o seu lugar no mundo da moda e dos tecidos, teve um período de alguma recessão mas acabou por recuperar, sobretudo a partir de 2006. Em 2011, foi condecorada com uma CBE, que por extenso quer dizer Commander of the Most Excellent Order of the British Empire. Vive tranquilamente, recebendo todos os dias, ou quase, desenhos e pinturas que o seu amigo de sempre, David Hockney, lhe envia através do iPhone. Celia reclama que foi ela quem o levou a desfazer-se do velho Nokia e a comprar um iPhone e, mais tarde, um iPad, onde faz grande parte dos seus trabalhos. Aguardou o tempo devido para que fosse publicado um livro sobre a sua obra, fortemente autobiográfico, da autoria de Dominic Luytens. Não quis, de modo algum, que se penasse que pretendia ajustar contas com a memória do ex-marido, cujo diário, publicado postumamente, é bastante cruel relativamente a ela. Quando Celia decidiu ir viver com Clark, nos idos de 60, os amigos avisaram-na para ter cuidado. Mas, segundo Celia, «Ossie was very persistent». Juntaram os trapos – haverá melhor expressão? – e, mais tarde, Celia Birtwell engravidou. Casaram, tiveram mais um filho e separaram-se, tudo por esta ordem. Celia levou tudo consigo, como na célebre canção de Ágata, incluindo os filhos, e para os sustentar deu aulas. Em 1984, já longe de Ossie e da fama de outrora, contou com o apoio de Hockney para abrir uma oficina-loja em Westbourne Grove, actualmente gerida pelo seu filho mais novo, George, e pela nora, Bella. O seu regresso à ribalta ocorreu em 2006, quando desenhou quatro colecções para a Topshop que se venderam num ápice (10 minutos!). Celia, a sensata Celia, abriu uma página comercial na Internet. Aí, entre o mais, vende, através de leilão, roupa vintage desenhada pelo defunto ex-marido. Uma blusa desenhada Ossie Clark foi arrematada pela quantia de 1.100 libras. Por £ 19.95, acrescido de portes de correio, é possível adquirir Wuthering Heights, de Emily Brontë, ilustrado e assinado por Celia Birtwell.
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Blusa desenhada por Ossie Clark, leiloada por £ 1.100 |
Livro de Brontë, ilustrado por Celia: £ 19,95 |
Neste como noutros aspectos, Hockney e Celia têm muitas afinidades electivas: alinharam na Weltanschauung festiva e lúdica dos anos 60, divertiram-se a valer pelo mundo fora, entre almoços na Closerie des Lilas a dias em Marraquexe, mas fizeram-no sempre com os pés na terra, fugindo ao dark side of the moon em que Ossie e tantos outros mergulharam, quase sempre um poço sem retorno.
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A pintura de Hockney é apolínea, refrescante e luminosa, cândida e optimista, inteligentemente soft e até «ligeira», razão pela qual o público a aprecia e certa crítica a desdenha. Hockney é incomodamente antidepressivo. Por isso lhe chamam até «conservador» no que às artes respeita (não aos costumes, bem-entendido). Conversador? Talvez. Mas há uma história para meditar. No Vietname, os soldados americanos tinham uma expressão sobre o modo de olhar que Hockney adora: eye-fuck. «I loved the term “eye-fuck”: it’s a way of saying that the eye is having an extreme enjoyment» (Martin Gayford, ob. cit., p. 86). Por muito que pretenda transmitir emoções ou retratar estados d’alma – e o quadro Mr Clark é um bom exemplo disso –, Hockney quer, acima de tudo, agradar ao olho. E assume-o sem complexos.
Celia em casa de Cecil Beaton, Reddish House, 1971.
Com um vestido Ossie Clark
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Na Closerie des Lilas, Paris, c. 1972
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Celia em Saint-Tropez, 1969, fotografada por Hockney |
Celia Birtwell, 2011
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Commander of the Most Excellent Order of the British Empire |
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A pintura de Hockney é apolínea, refrescante e luminosa, cândida e optimista, inteligentemente soft e até «ligeira», razão pela qual o público a aprecia e certa crítica a desdenha. Hockney é incomodamente antidepressivo. Por isso lhe chamam até «conservador» no que às artes respeita (não aos costumes, bem-entendido). Conversador? Talvez. Mas há uma história para meditar. No Vietname, os soldados americanos tinham uma expressão sobre o modo de olhar que Hockney adora: eye-fuck. «I loved the term “eye-fuck”: it’s a way of saying that the eye is having an extreme enjoyment» (Martin Gayford, ob. cit., p. 86). Por muito que pretenda transmitir emoções ou retratar estados d’alma – e o quadro Mr Clark é um bom exemplo disso –, Hockney quer, acima de tudo, agradar ao olho. E assume-o sem complexos.
Numa entrevista concedida há uns tempos, Celia referiu-se ao facto de se ver dependurada numa parede da Tate Gallery, na companhia do ex-marido, drogado e infiel, morto com 37 facadas: «At the time of the painting none of us thought it would ever be a great success – it was just another wonderful double portrait in the series David was painting at the time. It was only as the years went by that its popularity gained momentum and although I am really honoured to be in the painting I do find it all rather perplexing (and a little flattering).»
Antes e depois de Mr Clark, Celia Birtwell será uma das maiores amigas e principais musas de David Hockney. É, talvez, a mulher que mais vezes retratou. Diz o Mestre: «Celia has a beautiful face, a very rare face with lots of things in it which appeal to me. It shows aspects of her, like her intuitive knowledge and her kindness, which I think is the greatest virtue. To me she's such a special person … Portraits aren't just made up of drawing, they are made up of other insights as well. Celia is one of the few girls I know really well. I've drawn her so many times and knowing her makes it always slightly different. I don't bother getting the likeness in her face because I know it so well. She has many faces and I think if you looked through all the drawings I've done of her, you'd see that they don't look alike».
Por último, vamos dissecar o gato. Percy, de seu nome. Até já aventaram, aqui, a hipótese de o nome ser mais uma alusão sexual de Hockney, com base no facto de «percy», em calão, equivaler a «pénis». Haverá, por certo, quem subscreva de imediato esta teoria. Simplesmente, o gato na tela não é Percy. Numa entrevista que concedeu em 2005, ao saber que Mr Clark integrava a selecção final dos 10 melhores quadros do Reino Unido, David Hockney desvendou um importantíssimo segredo. Décadas passaram, mas só agora se revelava a verdadeira identidade do gato. Quando David finalizava o quadro, Celia disse-lhe que, dos dois gatos do casal, o que posara para a tela não era Percy, mas Blanche, pelo que a pintura deveria antes chamar-se Mr and Mrs Clark and Blanche. «When she told me that, I told her, well, shut up, because Mr and Mrs Clark and Blanche doesn't sound as good as Mr and Mrs Clark and Percy», disse Hockney numa entrevista à BBC. E, sempre maroto, alfinetou: «And it was my title, not hers, anyway». O pessoal das artes & modas, sabemo-lo bem, muito gosta de alfinetar uns nos outros.
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Celia com Blanche, no atelier em casa, Linden Gardens, Notting Hill |
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Celia com Percy.
Atrás, um quadro de Hockney, Celia Musing
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David Hockney, Celia Musing, 1979
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Percy pode ser um nome com mais estilo e charme, mas, de acordo com a dona, a gata Blanche era uma fofura: «Blanche was a dear little girl cat and Percy was rather overweight and not as interesting», referiu Celia na mesma entrevista à BBC. Tendo à mão uma gata dedicada e mais interessante, Hockney optou pelo gato anafado. Ele há mesmo gostos para tudo. Mas, em não fazendo mal a terceiros, nós não temos nada a ver com isso.
No mesmo programa da BBC, Celia queixou-se ainda de um derradeiro pormenor: na sua opinião, Hockney pintara-a com uma cabeça demasiado grande. Desconhece-se a reacção do imortal artista, o mestre do hedonismo visual, a este reparo da sua musa. Em todo o caso, aqui fica registada a reclamação suave da retratada, para que daqui a uns séculos não se construam elaboradas teorias sobre o(s) significado(s) oculto(s) da fronte desmesurada de Mrs. Clark. Ou Celia Birtwell, ex-mulher de um estilista bissexual que morreu de 37 golpes de faca dados por um italiano de 27 anos nas imediações de Holland Park cidade de Londres capital do Reino Unido.
E pronto, acabou.
Para a Teresa Abreu e para o António Duarte Silva, com a amizade do
António Araújo
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