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terça-feira, 15 de março de 2022

Quando Krutchev revelou aos Soviéticos a existência dos campos de trabalhos forçados.

 






A publicação de Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch, por Aleksandr Soljenítsin (Prémio Nobel da Literatura de 1970), Livros do Brasil/Porto Editora, 2022, dado à estampa pela primeira vez em 1962, na URSS, logo constituiu um autêntico murro no estômago, afinal os campos de trabalhos forçados não era reles propaganda antissoviética, existiam, com toda a sua bestialidade, corrupção, morticínio. É primeira obra-prima deste escritor russo que combateu na Segunda Guerra Mundial e esteve preso e internado em campos de trabalho entre 1945 e 1953. Seguir-se-ão outras duas obras-primas admiráveis que só lhe arranjarão problemas na URSS e que o levarão à expulsão, em 1974. Regressará a Moscovo em 1994, teve um acolhimento triunfal. A sua nota de autor relativamente a este livro tem bastante utilidade para a compreensão da obra: foi escrito num campo especial, durante o inverno de 1950-1951; a decisão de publicação foi tomada pelo Politburo do Comité Central do PCUS, em outubro de 1962, sob pressão de Krutchev, terá edições grandiosas, que serão destruídas nas bibliotecas públicas em 1971-1972; a primeira edição não censurada surgirá em Paris em 1973. E o autor dá outra explicação: “A figura de Ivan Deníssovitch foi composta a partir do soldado Chúkhov, um companheiro de combate do autor na guerra soviético-alemã (mas que não esteve nos campos), e enriquecida pela experiência dos prisioneiros e do próprio autor quando trabalhou como pedreiro do campo especial. Todas as outras personagens são reais, recolhidas da vida no campo, e as suas biografias são autênticas”.

Não é a primeira vez que uma obra-prima da literatura decorre exclusivamente ao longo de um dia, basta lembrar o fenomenal Ulisses, da James Joyce, e Mrs Dalloway, por Virginia Woolf. Soljenítsin descreve o dia, logo ao romper da alva até ao momento em que os prisioneiros, extenuados, regressam à camarata. Daí a dureza e concisão dos dois primeiros parágrafos:

“Às cinco da manhã, como sempre, soou o toque da alvorada – golpes de martelo numa barra de carril junto à barraca do comando. O som entrecortado penetrou debilmente através das vidraças cobertas por dois dedos de gelo e depressa se calou: estava frio, e o vigilante não queria ficar a agitar o braço por muito tempo.

O tinido cessou, mas fora da janela continuava a escuridão, como a meio da noite, quando Chúkhov se levantou para ir ao balde; à janela chegava a luz amarela de três candeeiros – dois no perímetro, um no interior do campo. Por qualquer razão não tinham vindo destrancar a barraca, nem se ouvira enfiar o balde das fezes nas varas para o levar dali”.

Novo dia, as cadenciadas rotinas do costume, as tarefas pré-programadas, vamos saber quem é quem na hierarquia do campo, há vigilantes, chefes da brigada, chefe distribuidor, guarda de serviço, fascinas, subchefes, gente que tem tratamento de cidadão chefe, brigadas com número, reclusos habitualmente desdentados, avançam para o refeitório, comem com os gorros na cabeça, um caldo com espinhas e depois papas de sorgo, é a principal refeição do dia, Chúkhov está adoentado ainda pensa pedir baixa no posto médico, lembrou-se que mesmo na enfermaria ninguém ficava deitado, o número de internados é limitado, correu para a praça de formatura, os horários são para respeitar, as punições são muitas. E começa o dia de trabalho, sabemos como os reclusos andam vestidos, como praticam troca de serviços, lá vão escoltados para o trabalho. Mas quem é Chúkhov? Foi condenado por traição à pátria, foi o que ele foi obrigado a confessar, rendeu-se desejando trair a pátria, e voltou do cativeiro porque vinha cumprir uma missão da espionagem alemã. “Que missão era essa, nem Chúkhov foi capaz de imaginar, nem o oficial que conduzia o processo se lembrou de inventar. Na contraespionagem foi muito espancado. E o cálculo de Chúkhov era simples: se não assinasse, ganhava um sobretudo de madeira; se assinasse, ao menos ainda viveria um pouco. Assinou”. Stalin era implacável com os soviéticos prisioneiros alemães, tivessem ou não tentado fugir do cativeiro, etiquetados como traidores foram destinados ao trabalho forçado, tornaram-se uma das principais mão-de-obra dos Gulag.

É uma narrativa soberba, a descrição de todas estas figuras humanas, o espaço onde habitam, o delírio da vigilância, a hierarquia cruel em que vivem todos os reclusos, a arbitrariedade dos castigos, à menor falha espreita a masmorra ou a solitária. A total ausência de direitos. Chegam encomendas ao campo, há que humilhar ainda mais: “Abrem a caixa de encomenda com um machado, o vigilante retira tudo com as suas mãos, verifica. Cortam, quebram, remexem, despejam. Se há alguma coisa líquida, em boiões de vidro ou em latas, destapam, despejam, e só se pode aparar com as mãos ou uma toalha. Não entregam boiões nem latas, têm medo. Se há pastéis, ou doces, ou enchidos, ou peixe, o vigilante mete o dente. E quando acabam de revistar a encomenda, também não entregam a caixa em que veio, e é preciso enfiar tudo na bolsa, ou na aba do capote, e toca a andar, o seguinte”.

Aquele campo de trabalho forçado é também uma imagem da natureza humana, o autor deixa-nos prodigiosas águas-fortes, impossíveis de esquecer: “O chefe do refeitório é um canalha cevado, com uma cabeça que parece uma abóbora e os ombros largos. Tem um tal excesso de forças e caminha a saltitar, como se tivesse molas nas pernas e também nos braços. Usa um gorro branco de peles, sem número, como nenhum livre tem igual. E um colete de pele de coelho, com um pequeno número no peite, como um selo do correio. O chefe do refeitório não cumprimenta ninguém, e todos os reclusos o temem. Tem milhares de vidas na sua mão. Uma vez quiseram espancá-lo, mas todos os cozinheiros, uns monstros igualmente alentados, vieram em sua defesa”. As horas do dia passam, e Ivan Deníssovitch contabiliza que foi um dia de sucesso, nem a comida faltou, saboreia ao jantar a couve com o resto do líquido, parece alheado, mas deu para ver um velho alto, o U-81. “Sobre este velho, Chúkhov ouvira dizer que não tinham já conta os anos que andavam pelos campos e prisões, desde que existia o poder soviético. Não tinha sido abrangido por nenhuma amnistia, e assim que terminava dez anos de pena, logo lhe davam mais dez”. Naquela noite alguns partem para o cárcere, vão dormir em cima de tábuas nuas, chão de cimento, nenhuma janela, trezentas gramas de pão por dia, e a sopa só no terceiro, no sexto, e no nono dias.”

Chúkhov adormeceu, quase feliz: não o meteram no cárcere, não mandaram a brigada para a Cidade do Socialismo, ao almoço tinha surripiado umas papas, tinha comprado tabaco. E não adoecera, aguentara-se. “Dias como este durante o período da sua pena, entre um toque e outro toque, contaram-se três mil seiscentos e cinquenta e três.”

Obra-prima absoluta.


Mário Beja Santos