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quarta-feira, 20 de setembro de 2017
domingo, 13 de agosto de 2017
domingo, 30 de novembro de 2014
O Tigre de Tipu.
Parece
um animal feroz, mas não passa de um boneco articulado. Como o Pinóquio. A primeira vez que o vi mirei-o só de relance, às pressas, quando ia atrasado para almoçar no V&A.
Mas logo então fiquei ofuscado pela fearful
symmetry das suas riscas, como diz Blake no poema famoso. Depois de almoço, regressei ao
interior do Victoria and Albert Museum, onde a fera está exposta sem particular destaque,
no meio de uma vitrina, rodeada de abundante tralha, toda muito linda.
O
Tigre era certamente das peças menos opulentas do majestoso espólio do sultão Tipu, que os pérfidos ingleses pilharam após conquistarem o reino de Mysore em
1799. Durante anos, Tipu tinha desafiado o poder britânico, infligindo-lhe
derrotas humilhantes que a imprensa inglesa iria caricaturar sem piedade alguma.
«Melhor viver um só dia como tigre do que como ovelha toda a vida» é uma frase
atribuída ao sultão Tipu, que pelos vistos conhecia o célebre dito de Luísa de
Gusmão, mãe da futura rainha Catarina, que levaria para Inglaterra o hábito de
beber chá mas também, já agora, a compota de laranja e outras duas coisas, até aí desconhecidas
nas Ilhas Britânicas: o higiénico uso de talheres e o malfazejo consumo do tabaco.
A monção e as chuvas fizeram fracassar uma primeira expedição contra o poderoso Tipu.
A imprensa londrina, sempre dada ao tablóide, vergastou os vencidos. Os alunos
de Oxford faziam apostas entre si sobre quem iria ganhar aquele choque de
civilizações. Mais tarde, um exército melhor equipado conseguiu impor a Tipu um
tratado leonino, através do qual o sultão não só cedia aos ingleses metade do seu
reino como dava como garantia os dois filhos do seu sangue, a título de caução.
Os filhos foram devolvidos, mas o reino não. E até lhe ficaram com a outra
metade. E até lhe destruíram o palácio inteiro, chegando ao ponto de vilipendiar
o seu cadáver, cortando-lhe o bigode. Por herança de seu pai, Tipu
ascendera ao trono de Mysore em 1782, dominando uma região imensa, quase tão
grande como o seu orgulho. O pai, Haydar Ali, era homem de poucas letras, talvez mesmo
analfabeto, mas o filho Tipu teve uma educação principesca, falando várias
línguas. Acontece que a maioria do povo da sua terra vastíssima era hindu,
enquanto Tipu professava no Islão. E no Islão linha dura, defendendo até a jihad contra os infiéis. Nas cartas que
escrevia a outros monarcas muçulmanos abundam as referências à jihad, que em árabe significa literalmente
«último esforço», ou seja, guerra aos descrentes. O seu trono e as armas dos
seus soldados tinham ornatos de tigres mas também a palavra «Alá» ou versículos
do Corão. O sultão tinha vários hábitos, todos péssimos, um dos quais consistia
em mandar que os seus prisioneiros, europeus incluídos, fossem circuncisados.
Uma gravura da época mostra um recluso em Mysore, de seu nome Richard Chase,
com um ar bastante abatido e tristonho. Um outro prisioneiro, o irlandês
Cromwell Massey, escreveu um diário secreto enquanto padecia as últimas nas
masmorras do sultão Tipu; o documento, que sobreviveu miraculosamente, faz
descrições terríveis do que se passava na cidadela fortificada de Seringapatam.
Não admira que, quando chegaram a Inglaterra as primeiras notícias do cerco ao
palácio de Tipu e do iminente branqueamento da capital, o empresário de
espectáculos Philip Astley, que enriquecera exibindo artes equestres ao público
londrino, organizasse de imediato uma extravaganza,
«The Storming of Seringapatam». Com mais de cem personagens e uma quadrilha de
cavalos, máquinas ululantes e fumos de cena, foi um estrondo de bilheteira, com
casas cheias até 1829.
Tipu
escolheu o tigre como emblema – e o seu trono octogonal estava adornado por
cabeças de tigres, revestidas a oiro. No centro do trono, um tigre possante,
também a oiro, que hoje, claro está, se encontra na posse dos ingleses, mais
precisamente na colecção real (quem o quiser ver, estará em exibição em
Londres, na Queen’s Gallery, até finais de Fevereiro de 2015, numa exposição de cinquenta peças expressivamente intitulada Gold).
Jóias, armas d’aparato, vestidos de seda delicadíssima, tudo foi devastado –
ou, melhor, saqueado e vendido, disperso em leilão feito pela East India Company.
Sendo das menos valiosas peças do tesouro de Tipu, o Tigre tornou-se a mais
conhecida, em parte devido à atracção que nos séculos XVIII e XIX existia por automata e máquinas articuladas, em
parte porque o Tigre de Tipu é, de facto, um objecto fascinante. Feito em
madeira por volta de 1799, mostra um tigre a devorar um ser humano, um branco,
ocidental. Não se sabe se a vítima é civil ou militar. Possivelmente, a peça
inspira-se num episódio macabro passado nas costas de Bengala. Segundo o relato distinto
do Gentleman’s Magazine, de Julho de
1793, o jovem Hugh Munro, o filho único do general Sir Hector Munro, foi esventrado
por um tigre enquanto repousava com os amigos, numa pausa da sua jornada de recreio
e caça na Ilha de Sagar (já agora: uma ilha que está prestes a desaparecer, tragando homens e tigres,
devido ao aquecimento global, aqui).
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A tragédia de Munro numa peça de porcelana Staffordshire (c. 1814)
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Sendo
a tragédia de Munro a fonte de inspiração, ou não, o certo é que Tipu mandou fazer dezenas de
imagens em que os europeus – ou, mais precisamente, os ingleses – eram esquartejados
alegremente por animais: leões, elefantes e sobretudo tigres. Tipu mantinha
tinha os franceses por aliados e diz-se ser muito provável que o Tigre e a
maquinaria existente nas suas vísceras tenham sido fabricados com o auxílio de artistas habilidosos
vindos de Paris. Além da nota descritiva do V&A, a Wikipedia conta a história do Tigre e também aqui (http://www.tigerandthistle.net/) se
pode saber alguma coisa do bicho. Mas nada substitui a leitura de um livro formidável,
profusamente adornado com imagens dos tesouros de Tipu. De Susan Stronge, Tipu’s Tiger é editado pelo próprio
V&A e, em poucas páginas, produz uma envolvente «narrativa» (para usar um
termo agora muito em voga) sobre a ascensão ao trono de Tipu, o seu acidentado
reinado, e as atribulações do tigre de madeira. O livro de Stronge reproduz
relatos da época da captura de Tipu, que asseguram que este só foi morto por ter resistido a um soldado que lhe queria tirar o cinto. Ficarmos assim, de calças na mão, é sempre
aborrecido de acontecer; para mais, tratava-se certamente de um cinto adornado com pedras
preciosas ou, no mínimo, semipreciosas. O que os relatos da época não explicam
é a razão que levou a autorizar que profanassem o cadáver de Tipu (foi, aliás,
um oficial superior que perpetrou esse crime). Certo é que autoridades
reprimiram com dureza os saqueadores oportunistas, enforcando quatro de uma vez, para servir
de exemplo. De caminho, mataram a tiro os tigres de carne e osso que o sultão tinha no seu
palácio. Quanto ao abundante guarda-roupa do sultão, os ingleses tiveram a
cortesia de convidar os filhos de Tipu a escolherem algumas peças de vestuário
do pai, como recordação. Depois, iria tudo à praça, num leilão organizado pela
East India Company. Na cidade, porém, correu o rumor que os muçulmanos se
preparavam para arrematar todos os lotes, distribuindo as vestes de Tipu pelos crentes,
como relíquias «do profetismo e da santidade do seu carácter». A
Companhia cancelou a hasta pública do guarda-roupa, guardou as 57 túnicas (ou jamas), os 84 turbantes (dois dos quais
com inscrições corânicas), os 54 casacos e diversos pijamas de Tipu, transportando-os para Londres. O interior do palácio de Seringapatam foi vilmente destruído em
1808, o mesmo acontecendo com o palácio Lal Bagh, outra residência de Tipu,
cujos destroços seriam usados em 1829 na construção de uma pequena igreja cristã,
St. Stephen, em Ootacamund. O triunfo do Império foi assinalado de uma forma
bastante simbólica, prenhe de significado: cunharam-se medalhas que mostravam
um leão, ícone britânico, a dominar um tigre, o animal predilecto do sultão
Tipu.
As medalhas, feitas às centenas ou aos milhares, foram distribuídas pelas tropas vencedoras, sendo dadas sobretudo aos cipaios, isto é, aos soldados de origem indiana, para que estes espalhassem entre a população nativa o símbolo do novo poder. Enganaram-se. O poder de Tipu permanece – e pujante. Na Índia, devido aos seus canhões com tigres e aos «mísseis de Mysore», Tipu é considerado um visionário, o pai do lançamento de foguetes e mísseis, celebrado oficialmente. Um indiano da América, vivendo no remoto estado de Montana, lembrou-se de fazer uma bebida em sua honra (http://tipustigerchai.tripod.com/). Há filmes (The Sword of Tipu Sultan, 1990), peças de teatro (The Dreams of Tipu Sultan, 1997), desfiles, sites comemorativos, livros infantis e até, obviamente, tatuagens com o tigre anticolonialista. Para quem puder dispensar 48 minutos do seu domingo a ver uma série indiana, eis o sultão, Tipu no seu esplendor:
Se
o Tigre de Tipu tivesse pedras preciosas ou adereços de ouro, certamente teria
tido outro destino. Sobreviveu. Nas suas entranhas, um intricado sistema de
tubos emitia o som pavoroso de um homem a ser devorado por um felino
ferocíssimo. Há quem refira que a caixa de música tem uma vaga associação às
gaitas de foles tocadas pelos exércitos escoceses – o que, a ser verdade, não
deixa de constituir uma refinada ironia. Quando a peça foi trazida para
Inglaterra, instalaram-na na biblioteca da East India House (também para lá foi
a cabeça gigantesca do tigre que estava no trono de Tipu, e que mais tarde, em
1831, seria oferecida ao rei William IV). Os estudantes e os investigadores que
frequentavam a biblioteca – e que estavam ali para fazer o que faz um verdadeiro estudante, que é estudar à séria,
sossegada e discretamente – ficavam
incomodados com o corrupio de pessoas que só iam à livraria para ouvir o
Tigre e os seus rugidos, agora inofensivos mas ainda assim bastante
incomodativos. Os visitantes podiam até dar à manivela para ouvir o som que emitia. Parece que tanto
o tocaram que o animal se avariou, e a caixa de música nunca mais deu sinal de
si, fazendo dó. Mas no V&A, para onde o animal foi transferido em 1880, existe uma
gravação do tenebroso rugido, que pode ser escutada. Há
também uns vídeos no YouTube, pouco esclarecedores. Em todo o caso, aconselha-se o visionamento do segundo, sobre o restauro da peça.
Com
1,72m de comprido, o bicho é enorme, quase em tamanho natural. O sultão gostava
de ouvir o som terrível que produzia, entre outras malvadezas que fazia aos
ingleses encarcerados nas masmorras do seu palácio, em Seringapatam a capital
do reino de Mysore. A pintura é tipicamente indiana no cromatismo e nos
acabamentos, tendo sido restaurada várias vezes ainda em vida de Tipu. Durante
a 2ª Guerra Mundial, a peça foi seriamente danificada, ficando desfeita em
centenas de pedaços, que cuidadosamente restauraram, ficando como nova logo em 1947.
Repousa hoje numa cela de vidro do Victoria and Albert Museum, no meio de muita
tralha de artes decorativas.
Quando
descobriram a peça no palácio de Tipu, os ingleses ficaram impressionados pelo ódio
que exalava. Chegaram ao ponto de querer levar o Tigre de Tipu para a Torre de Londres,
como castigo: «this memorial of the arrogance and barbarous cruelty of Tippoo
Sultan may be thought deserving of a place in the Tower of London», escreveu-se
na altura. Prevaleceu o bom senso e o Tigre de Tipu é hoje uma peça de museu, a
mais conhecida de todas do espólio do sultão de Mysore. Ao contrário do que
sucedeu com as jóias e os adornos faustosos, o que o salvou da perdição foi
justamente o seu escasso valor comercial, despojado que era de jóias rutilantes
e materiais exóticos. Em contraste, o seu valor simbólico e histórico é
enorme, muito superior ao dos muitos tigres de oiro e prata que deambulavam
pelos salões do palácio de Tipu. De visita a Londres, para ver a Grande
Exposição de 1851, Gustave Flaubert entediou-se de morte com o exibicionismo do
Crystal Palace (sobre a construção deste edifício, Bill Bryson tem um relato
apaixonante no seu livro Em Casa).
Mas, ao ver o Tigre de Tipu, que na altura estava exposto na East India House,
ficou maravilhado. Também John Keats se deixou encantar pela peça, fazendo-lhe
alusão num longo poema que deixou por concluir (a play-thing of the Emperor’s choice / From a Man-Tiger-Organ, prettiest
of his toys). Como Flaubert e Keats, muitos não conseguem resistir à
atracção voraz do Tigre de Tipu, que serviu de inspiração a poetas e outros artistas,
sendo alvo de vários pastiches recriações,
quase todos de mau gosto. O pior exemplo, sem dúvida, é o texto cópia/cola
que acabastes de ler.
António Araújo
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Bill Reid, Rabbit eating astroinaut, 2004
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M. F. Husain, Tipu Sultan's Tiger, 1986
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segunda-feira, 7 de abril de 2014
Gadawan Kura.
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Abdullahi Mohammed com Mainasara
2007
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Mummy Ahmadu e Mallam Mantari Lamal com Mainasara
Abril de 2005
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Mallam Galadima Ahmadu com Jamis
2007
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Dayaba Usman com o macaco Clear
Abuja, 2005
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Mallam Mantari Lamal com Mainasara
Abuja, 2005
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Abdullah Mohammed com Mainasara
Lagos, 2007
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The Hyena Men of Abuja
Abuja, 2005
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No
dia – que está próximo – em que um cataclismo levar à destruição do mundo, os
visitantes doutros planetas, quando cá chegarem, não terão dificuldades em
perceber como é que estes povos terráqueos arrasaram uma civilização que, não
desfazendo, até era muito jeitosa. Basta verem o vídeo de Heathen Child, de Nick Cave, e perceberão nesse instante que batemos
no fundo. Não dá mais, acabou. Fim de linha e ponto.
Vem
isto a propósito do facto daquele artista australiano, para a feitura do seu clip, se ter baseado à larga e à farta
na obra de Pieter Hugo, fotógrafo sul-africano nascido em 1976 em Joanesburgo,
que vive actualmente na Cidade do Cabo e do qual está patente uma fabulosa retrospectiva na Fundação Calouste Gulbenkian, com o título This Must be the Place (ver a entrevista ao autor, por Sérgio B. Gomes, aqui).
Hugo,
interpelado, já disse que não se importava de ter sido abusado à bruta no vídeo
de Nick Cave, em que a sua série de fotografias Nollywood (2008-9) foi bastamente inspiradora daquela produção videográfica.
No jornal Sol, na crítica que faz à exposição de Pieter Hugo na Gulbenkian, a Alexandra Ho diz que Nick Cave se
baseou no trabalho de Hugo sobre as hienas. Custa-me muito apontar esta
pequeníssima correcção, pois a Alexandra é pessoa amiga e por quem tenho grande
afeição (já agora, um abraço ao Luís). Mas o facto é que Nick Cave não se
baseou no trabalho de Pieter Hugo sobre as hienas. Quem se inspirou, e sem
pudor nenhum, na série The Hyena &
Other Men (2005-7) foi outra artista, Beyoncé de seu nome, como esta imagem,
vestida de Givenchy e retirada do clip de Run the World (Girls), o documenta:
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Run the World (Girls), de Beyoncé
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Depois,
até já houve quem tivesse feito uns desenhos esquálidos a partir das imagens do
clip da Beyoncé, realizado por
Francis Lawrence, sem citar, claro, a fonte original inspiradora, ou seja, a
obra de Pieter Hugo.
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Pieter
Hugo não apreciou muito que Beyoncé tivesse metido as moças girl power com as hienas lá no seu clip (coisa a que os povos antigos da chamavam
«teledisco»). Quanto a Nick Cave, Hugo referiu que gostava da música dele e,
portanto, nada de quezílias. Já no que toca a Beyoncé, largou a farpazita,
dizendo que os «homens das hienas» da Nigéria ficariam certamente deliciados
com se recebessem algum dinheiro por causa disto… Pois é: no fundo, no fundo, anda
tudo ao mesmo – o Cave e a Beyoncé, o
Piet Hugo e os homens das hienas. Só estas, coitadas, é que não vêem nada, ficando
apenas com a fama vil de serem hienas até ao fim dos seus dias, que está
próximo. A questão começou num artigo na New Yorker e alastrou pelo mundo fora, metendo-se o Guardian ao barulho,
páginas e páginas a discutir se era legítimo, ou não, a Beyoncé ter usufruído à
borla das hienas do Pieter Hugo (aqui, por ex.). Razão suplementar para pensarmos: se anda tanta gente, incluindo eu, a perder
tempo e a polemizar por coisas destas, é mais do que certo que a civilização
prestes a desabar no abismo.
É
curiosa a forma como Pieter Hugo travou conhecimento com os «homens das hienas»,
mais conhecidos por Gadawan Kura. Um dia, recebeu por e-mail uma fotografia, tirada por telemóvel, que dizia «As Ruas de
Lagos». mostrava um domador de hienas a passear o bicho pelas ruas de Lagos (na
Nigéria). Um jornal sul-africano publicou uma fotografia parecida, dizendo que
se tratava de um gangue de cobradores de dívidas, ladrões e traficantes de
droga que, à falta de roweilers, se
socorriam de hienas para ajudar as suas actividades, todas muito maldosas. Com
a ajuda de um amigo, o repórter nigeriano Adetokunbo Abiola, Pieter Hugo lá
descobriu a trupe nuns arrabaldes infectos de Abuja, que, desde 1991, é a capital
da Nigéria, tendo destronado Lagos nessa qualidade. Concluiu que não se tratava
de um bando de malfeitores marginais mas antes de um grupo carnavalesco de
menestréis que andavam de terra em terra: um punhado de homens, uma miudita,
três hienas, quatro babuínos e duas cobras píton, por esta ordem de entrada.
Faziam espectáculos de rua, praticavam umas curas de feitiçaria, ministravam
umas mezinhas e nada mais. Hugo acompanhou-os algumas semanas e, não contente
com isso, regressou dois anos depois, para com mais calma e detença os fotografar
fazendo pose com os animais à sua guarda. Publicado em 2008, o livro de Pieter
Hugo, The Hyena & Other Men, ainda
está à venda, mas é caríssimo, objecto para uns 350 US dólares. Logo que foi
publicado, escreveram-se no hemisfério Norte, e provavelmente ao teclado de um
Mac faiscante, doutos ensaios falando de «pós-colonialismo» e das «periferias
africanas», e até usando expressões como «trans-species relationship». É um
facto que Hugo, nas legendas das fotos, coloca o nome de cada um dos Gadawan Kura
e, ao lado, o nome da hiena respectiva, como se se tratasse de um duplo
retrato, em que tanto vale a hiena como vale o homem (e, de facto, só falamos
destes homens por causa das hienas que trazem à trela). O nome do projecto é,
aliás, bastante elucidativo: The Hyena
& Other Men. Para isto concorre uma razão, mais do foro da superstição:
os Gadawan Kura crêem, ou fazem crer, que os seres humanos são capazes de se
transformar em hienas, e vice-versa. Daí a necessidade das poções mágicas e dos
encantamentos; caso contrário, os homens viram hienas – o que, pelo que tenho
visto na vida, é fenómeno frequente. Uma das fotografias «Mallam Galadima
Ahmadu com Jamis» foi galardoada em 2006 com o World Press Photo, na categoria
de «Retrato», que o é. Está aqui na Christie's à venda pela bela maquia de 5,115 dólares.
Acabamos
de ser informados que, ao contrário do que é corrente dizer-se, as hienas não
são hermafroditas. As fêmeas são mais possantes e agressivas do que os machos,
sendo muito difícil distinguir umas dos outros, o que constitui uma curiosa
metáfora da nossa contemporaneidade e reforça a sabedoria implícita na
aproximação que Hugo faz entre o mundo das hienas e o universo d@s human@s. Não
sendo hermafroditas, as hienas-fêmeas, além de um belo útero, têm, isso sim, um clítoris desmesuradamente
alongado, que se assemelha a um pénis no tamanho, na forma e na sua capacidade
eréctil. Como não possuem uma vagina exterior, urinam, copulam e dão à luz
através deste pseudo-pénis, uma bizarria anatómica que criou a lenda do seu
hermafroditismo, em que até caiu gente experimentada nas verdes colinas de África, como Ernest Hemingway. Nos bestiários
medievais, eram mostradas hienas a copular como forma de aviso contra a
homossexualidade, justamente devido à ideia feita em torno da sua ambivalência
sexual, motivada por aquela disfunção anatómica que as singulariza entre o
reinado animal. Desenganem-se os que julgam que as hienas, ali onde as vemos, podem
ser domesticadas. Quando menos se espera, atacam – e têm umas mandíbulas poderosíssimas,
capazes de esmagar os ossos de animais duros de roer, a que se junta uma
invulgar capacidade digestiva, resistente ao mais gordurento pitéu. São capazes
de digerir qualquer parte de um animal e, não por acaso, as suas fezes têm uma
cor esbranquiçada devido à quantidade inusitada de ossos que ingerem. Não estou
a inventar nada, está tudo explicado aqui.
Um dos objectivos que tinha colocado na vida, nesta passagem efémera pela terra
bruta, era escrever um dia sobre a cor esbranquiçada das fezes das hienas – e,
pronto, tendo-o feito já posso morrer em paz.
Diz-se, e com razão, que as hienas, nas
imagens de Pieter Hugo, estão deslocadas do seu ambiente natural. Como os saltimbancos
que as guardam, deambulam de cidade em cidade, numa existência miserável que lhes
garante uns restos de comida. Fala-se num «spectacle of displacement», de
homens e de hienas, que as imagens de Hugo mostram em toda a sua crueza (aqui). A isto juntaria eu a aparência estranha
dos bichos com os focinhos açaimados, o que lhes confere a imagem de animais
pós-apocalípticos, feras danadas vindas de uma sequela de Mad Max. Além do mais, um açaime num bicho evoca sempre qualquer
coisa de castração do instinto natural. Neste caso, há razões para isso: todos os
membros dos Gwanda Kura apresentam feridas e escoriações nos seus corpos, o
resultado de quem faz a vida na companha de animais que, de vez em quando, se
viram contra o patronato explorador e nele ferram os seus dentes potentes.
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W. A. Trumper, Nigerian Strolling Players, c. 1914
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Quando foram publicadas as imagens de
Pieter Hugo, logo se alevantaram activistas de defesa dos direitos dos animais.
O rapaz defendeu-se, colocando-se ao lado dos homens, dizendo que os críticos
se deveriam interrogar, isso sim, por que é que aquelas pessoas têm de fazer
aquilo para sobreviver ou por que é que a Nigéria, sendo o sexto maior
exportador de petróleo do mundo, sobrevive naquela indigência completa. Pode
ver-se a entrevista de Pieter Hugo aqui.
Sem querer entrar em apreciações de
carácter, o facto é que Pieter Hugo e as suas hienas ganharam fama, são
plagiados pela Beyoncé, arrecadam prémios e as imagens da miséria nigeriana são
– pasme-se – objectos de decoração em casas fashion
em NY e outros lugares decadentes. Num blogue brasileiro de decoração de
interiores,
uma tontita discorre sobre «Pieter Hugo e o Africanismo», numa charla arrivista
e deslumbrada sobre quão bem fica, em qualquer parede de um apartamentão ou bar
da moda, uma foto de Pieter Hugo mostrando a miséria nigeriana. Não arranjou
melhor do que a mais cruel e desoladora série de Hugo, Permanent Error (2009-10), que mostra o quotidiano daqueles que têm de
aspirar os venenosos fumos das queimadas de material informático, de onde
extraem componentes e matérias-primas vendáveis na ocasião.
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Uma fotografia de Pieter Hugo num belo interior déco |
Mas também é certo que o propósito de
Hugo, não sendo de denúncia inflamada e militante, exibe e, explícita ou implicitamente,
questiona o estado de coisas que viu na Nigéria, no Ruanda, no Gana. E é
igualmente certo que, ao contrário do que as imagens dos Gadawan Kura podem
sugerir, não se trata de um bando de indigentes, atendendo aos padrões
africanos, pois claro. O negócio parece ter uma componente familiar. Assim, por
exemplo, quando começou a trabalhar com o seu pai, aos quinze anos de idade, Abdullahi
Ahmadu já sabia que tinha de arranjar a sua hiena e pô-la a render. Não é
fácil, pois o bicho é arisco e, evidentemente, não gosta de ser açaimado. O
avô, Nalado Ahmadu, ensinou-o a apanhar a sua hiena. Os Gadawan Kura fazem crer
que têm um método infalível e muito mágico de capturar as hienas e que só os
membros da família sabem capturá-las e lidar com elas (muita magia, muita
magia, mas todos têm marcas de mordidelas no corpo e não dispensam uma vara ou
um pau para dar no lombo das hienas quando estas se começam a eriçar todas de
raiva atávica). Bem, prosseguindo: para capturar uma hiena ao natural, os
Gadawan Kura tomam uma poção de ervas naturais, banham-se com ela (a poção), e
viajam até às florestas do Norte da Nigéria. No caminho, usam lanternas
potentes, acreditando que a magia da poção os tornou invisíveis para o animal
acossado. Descoberta a toca, cantam encantamentos e sopram nuvens de pó branco,
um tranquilizante natural africano: o animal fica atordoado e já está.
A menina que os acompanha nestas
andanças chama-se «Mummy», é filha de Abdullahi e, na altura das imagens, tinha
seis anos de idade. Deitava-se sem medo algum em cima das imprevisíveis
criaturas, pois, segundo o progenitor, tomara uma poção protectora, que a
defendia das mordeduras das hienas, dos
babuínos e das cobras. O negócio corre bem. À conta deste lenocínio das hienas,
Abdullahi Mohammed, outro membro do grupo, responsável por um dos babuínos, já
comprou uma fazenda em Danja, no Estado de Katsina, e o grupo tem planos para
comprar uma fazenda de mandioca em Ogene-Ofada, no Estado de Kogi. Trata-se de
um caso bem-sucedido de empreendedorismo, na novilíngua do vazio. Quando chegam
a uma localidade, fazem grande alarido com rufar de tambores tradicionais Hausa
e vozearias (a trupe tem um trio de bateristas: Nura Garuba, Abdulkarim Lawal e
Sanusi Ahmed). Depois, avançam os babuínos com cambalhotas e outras macacadas,
a quem as pessoas dão algum dinheiro, que os símios entregam honestamente aos
seus donos. A propósito da analogia entre homens e animais, atrás citada, note-se
que os babuínos envergam camisolas humanas, o que adensa a sua comicidade e
encanto. Só no final entram as hienas em cena, a peça de resistência do espectáculo.
Há magia no ar, acreditam os Gadawan Kura e quem neles acredita, mas também
música e dança: nos tornozelos, trazem akayau,
anéis de metal que melhoram a performance
bailarina. Os comerciantes locais, porque aquilo lhes traz gente e freguesia,
dão a sua contribuição, em dinheiro ou em espécie. Biola Adekumi, dono de uma
loja, diz, encantado: «quando eles estão cá, vendemos mais. Além disso,
trazem-nos divertimento, especialmente os mais jovens. Os animais fazem-nos rir
e sentimo-nos mais animados».
Ademais,
o treino de uma hiena não é muito dispendioso: nos primeiros meses, comem carcaças de cabra, compradas nos matadouros nigerianos, que são um mimo de
asseio e limpeza. Uma cabra dá para alimentar a hiena durante uns três dias ou
mais. Os condutores de autocarros que transportam a trupe também saem a
ganhar, pois cobram mais se levarem consigo hienas, babuínos e cobras picantes
do que se carregarem os veículos com nigerianos racionais. Lekan Fabuyi, que
faz a carreira Ogere-Remo-Lagos, aprecia muito os Gadawan Kura e até os defendeu
quando a polícia e os jornais, as hienas dos nossos dias, os acusaram de terem
usado uma hiena e um macaco para roubar uma pessoa. Segundo um jornal de Lagos,
houve até tiroteio, com dois membros da trupe mortos e quatro feridos. A hiena
e o macaco foram baleados e, à hora do fecho desta edição, devem provavelmente
estar mortos, tanto mais que, como bons repórteres, estamos a copiar à farta de
um blogue brasileiro uma notícia que tem quase um ano.
Pelo
meio, os Gadawan Kura ainda vendem de vez em quando um ou outro animal aos
comerciantes de bichos ou aos jardins zoológicos da Nigéria, dos Camarões, do
Burkina Faso e do Benin. Existe um blogue inteiramente dedicado aos «Hyena
Men», que alcançaram o estrelato quando foram imortalizados no YouTube, neste
vídeo:
VVVVO
blogue «Hyena Men», salvo o devido respeito, é um bocado apalermado. O seu autor, Blake
Porter, descobriu que, além dos Gadawan Kura, existe um senhor na Etiópia,
chamado Yusuf, que gosta de passar as noites com as hienas. Dão-se bem, como de
resto a maioria dos etíopes. Os etíopes acreditam que as hienas têm o poder de
libertar uma região da influência maligna dos espíritos demoníacos, os temidos djinn. Daí que na cidade de Harar as
muralhas tenham umas fendas para deixar entrar as hienas de noite. Quando um
habitante de Harar vê, por acaso, uma hiena na rua, cumprimenta-a e saúda-a
dizendo «darmasheik», o que significa «jovem homem sábio». Yusuf é um caso à
parte. São as hienas que vão ter com ele, dormindo juntos e o resto que por lá acontece
pertence à intimidade dinâmica do casal. Espanta-se Blake Porter que Yusuf, ao
contrário dos Gadawan Kura, não aproveite essa sua habilidade para fazer
negócio. O pateta vai ao ponto de, no seu blogue, formular um conjunto de
perguntas para, caso encontremos o Sr. Yusuf, lhe colocarmos. Por exemplo, como
é a sua situação financeira e porque é que não tira partido das hienas. Estou
muito tentado a apanhar já um avião para a Etiópia, uns quinze ou vinte
autocarros até Harar, perguntar por um senhor de nome Ysuuf e interrogá-lo:
«desculpe lá, amigo, mas porque é que você não me põe estas hienas todas a
render, como os seus colegas ali da Nigéria?». Apetecia responder, baseado aqui, que, em Harar, há mais de
500 anos que as hienas são bem-vindas e vivem na companhia dos homens. Yusuf
não é um caso especial. Sempre as quiseram na cidade como agentes sanitários,
que comem o lixo e os detritos causadores de pestilências. É essa a razão pela
qual as muralhas da velha urbe permitem a entrada das hienas, muito mais
prosaica – mas real – do que as estórias dos djinn, os espíritos maléficos. Há várias lendas sobre os «homens
das hienas» de Harar. O folclore local diz que, durante umas grandes fomes do
século XIX, as hienas começaram a atacar os humanos e, para aplacar as feras,
lhes deram uma papa salvífica. Outros atribuem a pacificação dos bichos à acção
de uns muçulmanos santos. Em qualquer caso, no Dia de Ashura a tradição
mantém-se: os habitantes de Harar dão papa às hienas; se estas comem, é um bom
presságio e o ano terá boas colheitas; se recusam a oferta, o povo reúne-se em
preces para afastar o mau-agouro. Hoje, poucos são já os «homens das hienas» de
Harar. Fala-se em Yusuf, já referido, e num tal de Mulugeta Wolde Mariam, que
só à sua conta alimentava uma matilha de uns 40 exemplares, todos mamíferos e carnívoros. Mas há outros artistas das hienas, mesmo em Harar.
Pieter Hugo conta aqui as suas peripécias com os Gadawan Kura. Particularmente saborosa é a reacção dos ocidentais, entre a reprovação moral
pela exploração animal e a curiosidade fascinada por esta trupe tão estranha.
Uma empresa de segurança norte-americana chegou a contactar o fotógrafo,
pedindo que estabelecesse diálogo com os Gadawan Kura. Acreditavam os
americanos que, se os Gadawan Kura eram capazes de lidar com animais tão
ferozes, deveriam ter alguma protecção – um unguento mágico, uma poção
misteriosa – que talvez interessasse comercializar em larga escala. Mais outros,
enfim, a quererem ganhar à conta das hienas.
No
livro que acompanha a retrospectiva de Pieter Hugo, This Must Be the Place (ed. Prestel, 2012), um ensaio de TJ Demos refere a «iconografia
carnavalesca» do seu projecto sobre as hienas, evocativa do pós-colonialismo (pág. 213).
Noutro ensaio, Aaron Schuman assinala que, nas notas de trabalho que escreveu
enquanto fazia The Hyena & Other Men,
Hugo usou com frequência palavras como «dominação», «co-dependência», «submissão» (pág. 219).
Palavras, palavras, palavras. Pouco interessam quando confrontados com a
realidade nua e, já agora, crua: andam muitos a comer à custa das hienas. Até
nós, e o nosso voyeurismo. Comprazemo-nos a olhar estas imagens porque elas
suscitam um realidade estranha, que queremos distante, mas gostamos de saber
que existe, lá longe. Porque ela confirma e reitera a bondade da opção que
tomámos, ao criar uma «civilização» (a propósito, os ursos amestrados da
Roménia, não se fala?). Criámos algo que nos afasta das hienas que viram homens
e dos homens que se tornam hienas. Será mesmo assim? Será que os mercantis Gadawan
Kura da Nigéria, em confronto com os seus colegas etíopes de Harar, não são um
produto da nossa «civilização»? Questões que ficam no ar – e que jamais terão
resposta até ao dia em que a civilização, tal como a conhecemos, entre em
derrocada irreversível. Para quem duvide, veja o clip de Heathen Child, de
Nick Cave. É o fim da picada. A mordedura letal.
António Araújo
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