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sexta-feira, 25 de agosto de 2017

It's a wonderful world.

 
 
 


 
Já há uns dias, o El País trazia aqui uma notícia que, se fosse vivo, teria feito a cabeça em água a Erich Honecker. O antigo edifício do Conselho de Estado, a sede do poder da República Democrática Alemã, o lugar onde Fidel Castro e Leónidas Brejnev foram recebidos, o centro onde se tomavam as grandes decisões em nome dos amanhãs que cantam, é hoje, imagine-se, pasme-se, uma business school. Nem mais, nem menos. A ESMT, a escola internacional de gestão de Berlim, ministra cursos em inglês e mandarim (https://www.esmt.org/). Start-ups, empreendedorismo, inovação, todo o jargão estereotipado do capitalismo global substitui agora os clichés do velho comunismo, luta de classes, materialismo dialéctico, meios de produção, infraestruturas e superestruturas e por aí fora.
 
 




 
 
 
Os estudantes circulam frente a um vitral monumental, lindíssimo, da autoria de um dos grandes nomes do realismo socialista, Walter Womacka. No cristal, as figuras de Karl Liebknecht ou Rosa Luxemburgo contemplam, aterradas, os alunos a discutir técnicas de opressão das massas, a fim de ganharem mais massas – para eles e para as suas empresas.
 

 
 
Como se não bastasse, cúmulo da hegemonia do kapital, uma outra notícia que encontrei aqui. Essa, ainda mais espantosa. Em Miami, USA, num mercador de arte, esteve em exposição para venda outro monumental vitral. Desta feita, uma peça que adornava um edifício da Stasi, a sinistra polícia política da Alemanha comunista. Quem visitar a sede da Stasi ou as prisões de Berlim pode ver o nível de sofisticação e requinte a que chegou a barbárie e a desumanidade naquele pedaço da Europa. Quem quiser e tiver paciência pode ler um guia de Berlim-Leste, ou da sua memória, que em tempos publiquei aqui. Um roteiro da Ostalgie. É a nostalgia de Leste – ou da sua arte – que levou à praça, em 2016, por um preço fabuloso, este vitral «A Paz no Mundo», de 1982-83, da autoria de Richard Otfried Wilhelm (entrevista do artista ao NY Times, aqui). Pertencia ao edifício da Stasi e, vá-se lá saber por que voltas, acabou nas mãos de um negociante alemão de arte, Thilo Holzman, que prontamente o despachou para os States, onde terá sido comprador por um coleccionador saudoso do comunismo ou meramente apreciador da vida & obra da figura central da peça, Vladimir Lenine. O mundo é um lugar estranho.
 
António Araújo
 

segunda-feira, 27 de março de 2017

Memórias Perdidas - 14

 
 
 
 
 
Regresso às memórias perdidas. Desta feita, as de Maria José Gama ou, de seu nome completo, como assina no introito, de Maria José Gomes Coelho Carvalho dos Santos de Calheiros da Gama.
Prefácio de Adriano Moreira, e não por acaso. Adriano Moreira, juntamente com outras figuras do antigo regime e da actual democracia, é evocado no livro como uma das personalidades que – quem sabe? – poderiam ter dado um novo rumo às colónias ultramarinas, evitando o desastre humanitário dos «retornados», de que a autora se ocupou de perto, num admirável trabalho de organização e apoio. Desengane-se, porém, quem julgar que Maria José Gama é uma saudosista do Estado Novo. Pelo contrário. Até devido às suas origens familiares, sempre esteve do lado republicano-socialista de oposição a Salazar, bastando recordar ter sido seu pai – José, irmão de Teófilo Carvalho dos Santos – chefe de gabinete de Cunha Leal, governador civil de Viseu, deputado em 1922 e sempre, mas sempre, advogado. Era José Carvalho dos Santos amigo de Manuel Rodrigues, que o tentou dissuadir de se fixar em Angola após o 28 de Maio, desiludido com os ventos ditatoriais que sopravam sobre o seu país. Viajou José para África, no ano de 1932. A mulher ficou cá, negando-se a viver nos trópicos. E foi já em Angola que, tendo conhecido a sua segunda mulher, Isabel Gomes Coelho, nasceu Maria José, natural de Moçâmedes, «uma terra muito rica quer pela sua fauna, quer pela sua flora existente em virtude da sua privilegiada situação geográfica». Hoje, a terra chama-se Namibe – e lá existe, esplendorosa, a célebre Welwitschia, planta miraculosa. Existia em Lisboa, no Jardim Botânico, um exemplar desta planta que deve o nome ao cientista e explorador austríaco Frederic Welwitschia, mas, creio eu, a incúria dos homens levou a que lamentavelmente morresse.
Regressemos a Maria José. Em 1939, veio com sua mãe até à metrópole, de barco. Nova viagem até Lisboa, também por via marítima, em 1942. No auge da guerra, portanto. Nesta segunda deslocação, um submarino germânico obrigou o paquete a desviar a rota, indo até Casablanca, sob domínio alemão. «apesar de ter só 5 anos, jamais esqueci a imagem de homens armados junto de nós e do nosso camarote ter sido inteiramente revolvido», recorda-se Maria José, acrescentando, num pormenor delicioso, que com elas vinha um comerciante, de seu nome Adérito Sanches, que consigo trazia dezenas de cartas que depois iria, sem cobrar portes nem tarifas, distribuir pelos destinatários metropolitanos. Os malvados alemães nazis apreenderam toda aquela correspondência, que era muita e íntima.
Finda a guerra, ou por essa altura, José recebeu em Angola uma carta cifrada de seu irmão Teófilo, dizendo-lhe que se preparava um golpe para depor Salazar. Logo veio José de África em 1943, pronto a participar na conjura anti-salazarista que, como se sabe, não vingou. Como não vingou outra tentativa de golpe, em 1947, no mesmo ano em que Teófilo Carvalho dos Santos foi preso na sua casa de Alenquer. O irmão José seria seu advogado de defesa. Enquanto tudo isso se passava, Maria José lia os livros da condessa de Ségur, e o pai defendia os interesses dos Industriais de Moçâmedes, sendo, no plano político, apoiante da candidatura de Norton de Matos. Desiludido, foi de novo para Angola, fixando-se agora em Benguela, onde foi Presidente do Rádio Clube, 1º Presidente da Cruz Vermelha Portuguesa e Presidente do Sport Benguela e Benfica. Maria José e a mãe ficaram em Lisboa, onde a primeira frequentou o Liceu Filipa de Lencastre, onde teve «professoras de grande nível intelectual» mas também docentes «excessivamente sectárias e facciosas que me fizeram uma guerra fria, humilhando-me pelo facto de não ser baptizada e ser filha de um oposicionista, bem como sobrinha de um líder da oposição a quem várias vezes era retirada a liberdade». Teve problemas, claro está, por não comprar a farda da Mocidade Portuguesa, organização, que curiosamente, lhe foi recordada quando, muitos anos depois, viu com seu marido, em Moscovo, uma actuação em marcha da Juventude Bolchevista.
Aos 18 anos, casou Maria José. Seu marido, Sérgio Marques Fernandes de Calheiros da Gama, era geólogo, engenheiro técnico e professor no Liceu Camões (depois, exerceria funções como técnico da Câmara Municipal de Lisboa). Mais tarde, em 1967, morreu seu pai e, no ano seguinte, Oliveira Salazar caiu de uma célebre cadeira. Facto curiosíssimo: apesar de todo o oposicionismo do antigo chefe de gabinete de Cunha Leal, diz Maria José que por várias vezes o Presidente do Conselho tentou demover José do seu auto-exílio, exortando-o a entrar nas listas de deputados pela União Nacional. 
Se Maria José não revela qualquer admiração por Salazar, é patente o seu fascínio por Adriano Moreira, cuja obra como Ministro do Ultramar enaltece viva e copiosamente. Aliás, foi aquando da visita de Adriano Moreira a Angola que Maria José, acompanhando a mãe do ministro e a esposa do general Venâncio Deslandes a uma visita aos combatentes hospitalizados, encontrou João de Mucaba, uma criança órfã que ficou ao seu cuidado.
Com o mesmo desvelo acompanhará os que vieram de África após o 25 de Abril, sendo uma das fundadoras e principais animadoras da CSARA – Comissão Socialista de Apoio aos Retornados. Esse é o principal tema do livro, porventura o trabalho da vida de Maria José Gama. Em Maio de 1974, Maria José ofereceu-se para colaborar com o Partido Socialista. Dirigiu-se à Cooperativa Estudos, na Avª Duque de Ávila, pertença de um grupo a que estavam ligados Raul Rego, Lopes Cardoso, Catanho de Menezes. Mais tarde, toma conhecimento da trágica situação dos retornados de África, já que seu filho mais velho, José Sérgio, na qualidade de voluntário da Cruz Vermelha, com eles convivia diariamente. Outro dos seus filhos, Rui Sérgio, fará parte da «corrente» de jovens do PS, do PPD e do CDS que, aquando do cerco ao Patriarcado, protegeu a saída do edifício de D. António Ribeiro. Por aqui se vê, portanto, que Maria José navegava nas águas do socialismo moderado, condenando o PREC («O País viveu uma situação muito conturbada e de grande intranquilidade») e os excessos desse tempo, quando se confundiu «democracia com libertinagem».
Nos primeiros tempos da CSARA, Maria José tenta mobilizar apoios. Falou com Maria de Jesus Barroso, tendo-lhe esta dito que só colaboraria se tivesse o beneplácito de Mário Soares. Tendo este apoiado entusiasticamente a iniciativa, a CSARA começa a funcionar, beneficiando de outro apoio de peso. Salgado Zenha. No período gonçalvista, diz Maria José, a televisão jamais noticiou os comunicados da CSARA, que sempre lutou contra a manipulação da imprensa e da rádio, as quais, no seu entender, procuraram a todo o custo «ocultar a realidade relativamente aos Retornados». Mais aliados de peso: Vasco da Gama Fernandes, Vera Lagoa, o jornalista Antunes Ferreira. Maria Irene Zenha. E outros, vindos da Noruega, do Instituto Norsk Folkehjelp, que muito ajudaram a CSARA nas suas oito áreas de actividade: assistência médica e medicamentosa; assistência jurídica; procura de empregos; distribuição de vestuário, calçado e agasalhos; distribuição de cobertores; distribuição de leite, especialmente para crianças e doentes; pequenos subsídios para alimentação, alojamento, etc.
Depois da CSARA, dedicou-se Maria José à ASAS – Associação para Serviço de Apoio Social, mas essas são contas de outro rosário, o rosário de uma vida de alguém que festejou o 25 de Abril e cita como seus heróis Salgueiro Maia e Jaime Neves. E pronto, aqui fica, a traços larguíssimos, uma síntese apertada da vida cheia de Maria José Gama, militante socialista inscrita com o nº 50.
 
António Araújo

sexta-feira, 1 de julho de 2016

A Minha Viagem à União Soviética, de Hortênsia Neves de Sousa.

 
 
 
 
 
 
           «Claro que eu continuava a dizer que esperasse, mas ela não queria esperar e batia cada vez mais, gritando-me diversas coisas dentre elas a de que o banho era colectivo. Eu nessa altura já começara a vestir-me e protestava contra aquilo de banho colectivo, mas ela, enfurecida, gritava que «na nossa organização tudo é colectivo e quem não estiver bem que se vá embora». Ainda retorqui que bem sabia que lá quase tudo poderia ser colectivo, mas que o banho também fosse colectivo é que não estava certo».
(Hortênsia Neves de Sousa, A Minha Viagem à União Soviética, Lisboa, Didáctica Editora, 1973, pp. 51-52, realce no original)
 
 

sexta-feira, 24 de junho de 2016

Do marxismo ao fascismo em sorites.

 
Trinity College, Dublin - Biblioteca
 
 
 
A polémica em torno da afirmação de José Rodrigues dos Santos de que a imprensa fez eco – “as origens do fascismo estão no marxismo” (Público, 30-5-16) -, a propósito do seu mais recente romance, animou um pouco o debate público nacional. Manteve-se relativamente civilizado, o que não é muito comum na nossa tradição cultural. Alguma coisa boa resultou (serviu para esclarecimento de alguns conceitos políticos e uns quantos factos históricos), muito embora, no final de contas, o que a JRS parece ter importado terá sido apenas defender essa sua afirmação inicial. Ora ela é precisamente a razão da polémica, como procurarei explicar com a serenidade permitida pela distância geográfica. A minha pergunta é: depois dos dados apresentados por todos os intervenientes, será mesmo que a afirmação se pode manter?
Primeiro que tudo, nunca vi uma afirmação semelhante em nenhum livro de história ou teoria política, pelo menos dos autores que me habituei a respeitar. Então, a resposta parece-me clara: só mesmo se tomarmos esses termos em sentido nada rigoroso, tipo conversa de café, superficial e inconsequente, e, mesmo assim, só aplicada ao fascismo italiano. Por exemplo, a hermenêutica literária, que hoje escalpeliza muitos textos tradicionais apodando-os de machistas e racistas, teve origem na hermenêutica bíblica levada a cabo sobretudo pelos biblistas alemães do século XIX. Mas daí poderemos concluir o quê? Apenas que se trata de uma ligação histórica contingente totalmente alheia aos precursores da referida tradição hermenêutica. Numa sequência de eventos e influências díspares ao longo dos tempos, um evento ou conjunto deles acaba desencadeando uma série de outros em variadíssimas direcções por uma relação de sucessão, acabando o evento inicial por ter muito pouco a ver com o ponto de chegada.
         A questão da afirmação de José Rodrigues dos Santos emerge quando a leitura dela estabelece implicitamente uma mais estreita relação entre os dois termos: o fascismo faz parte da essência do marxismo. O problema, pois, está nesse possível sentido implícito na frase. O autor dela pode sempre reclamar não ter sido sua intenção estabelecer tão íntimo nexo, no entanto, muitos leitores poderão sempre responder: Mas foi nesse contexto que a entendi. E não sairemos daqui nunca mais. Seria preciso fazer-se uma sondagem aos leitores perguntando-lhes:  O que significou para si essa afirmação de JRS?
Por mim, entendi-a como querendo insinuar ser o fascismo uma consequência do marxismo, essa consequência implicando que o fascismo está lá no embrião teórico do próprio marxismo.
         Se essa leitura é legítima (eu honestamente, repito, li assim), então há que averiguar. Impõe-se, portanto, uma análise de conceitos e de movimentos políticos. Ela aliás foi feita – e muito bem - por alguns dos intervenientes cujos textos chegaram até mim (António Araújo e Francisco Louçã, Público, 30 e 31-5-16)
Mas queria acrescentar algo: identifico na frase de JRS uma falácia clássica (o termo tem o sentido técnico rigoroso de erro lógico) cujo nome ainda hoje circula pelo menos entre historiadores, cientistas sociais e até mesmo advogados (nos tribunais). Chama-se post hoc, propter hoc (depois disso, logo por causa disso). Uma sequência de eventos pode constituir apenas uma sucessão contingente sem o evento inicial ter qualquer relação de causa-efeito com a conclusão. O marxismo, ao passar por uma série de situações históricas, acabou nalgumas variantes que nada tinham a ver com as concepções do seu criador, Karl Marx. Isso aconteceu e acontece constantemente na história em todas as áreas. Um exemplo simples? A Inquisição. Não será necessário contar aqui as suas origens e desenvolvimento. E todavia, seguindo a lógica subjacente à afirmação de JRS, podemos criar uma situação paralela afirmando: a Inquisição tem origem no cristianismo.
Compreende-se que, se alguém tivesse feito tal afirmação, inúmeros cristãos e não-cristãos chamariam a contas o seu autor.  Ele viria defender-se explicando como historicamente as relações de sucessão ocorreram. Um pensante clássico, preocupado com o rigor lógico, porém, apontar-lhe-ia logo: falácia do post hoc propter hoc. A leitura benévola, porém, seria: Deixa andar, a frase é tão genérica que não vale a pena perder tempo com ela. Contudo, muita gente se incomodaria se ela fosse proferida por alguém com impacto entre os seus ouvintes.
(Um parênteses: a afirmação de JRS, lida no sentido rigoroso, incorre noutra falha lógica tradicionalmente apodada de sorites. De um termo passa-se para outro por qualquer relação semântica, terminando-se com uma conclusão estapafúrdia. O humor serve-se dessa técnica. Veja-se, por exemplo, aquela do filósofo acotovelando acidentalmente um transeúnte que reage: Tem Graça! O filósofo prossegue rua abaixo pensando consigo: Tem  graça? Graça do Senhor, Senhor dos Passos… Paços do Conselho… Concelho de Ministros… Ministro da Guerra… Guerra Junqueiro…. Junqueiro… Junqueira de Alcântara… Alcântara do Mar… Do mar à serra… Serra da Estrela… Estrelas tem o céu… O céu é azul… Azul, tinta de escrever… Escrever para França… De França vêm os bebés… Os bebés mamam… Mamas tem a vaca… A vaca tem cornos… Filho da mãe! Chamou-me corno!)
Regressemos, todavia, aos conceitos e à história. Muito embora JRS lembre que “nem os académicos se entendem sobre todas estas definições e catalogações” (Expresso, 4-6-16), isso não implica que não valerá a pena tentarmos fazer alguma luz conceptual sobre os termos em causa nesta polémica. Resumirei ao máximo procurando ser tão rigoroso quanto possível.
Socialismo não é sinónimo de marxismo. O socialismo precedeu Marx. Era fundamentalmente uma doutrina política com base numa ética que valorizava acima de tudo a justiça social. O marxismo incorporou o socialismo numa doutrina muitíssimo mais abrangente. O marxismo é uma metafísica materialista, com uma lógica (a dialéctica – daí o materialismo dialéctico), uma epistemologia (a ciência empírico-positivista), uma filosofia da história (a luta de classes), inspirada numa teoria económica anti-capitalista, com uma teoria política sobre a tomada do poder (a revolução e a ditadura do proletariado), para a instauração de uma nova ética: a socialista. Bastará lembrarmo-nos do socialista francês Proudhon, autor do famoso A Filosofia da Pobreza, e da resposta que Marx lhe deu no seu A Pobreza da Filosofia. Quer dizer, Marx achava que o socialismo formulado por Proudhon era de uma grande pobreza filosófica. A sua doutrina (Marx não se intitulava marxista) instaurava uma nova maneira de propor o socialismo, fazendo-o brotar de um complexo e genial sistema que tornava o advento do socialismo algo inevitável.
Portanto, na lógica de JRS, poderíamos perfeitamente dizer, e aliás com mais rigor: o fascismo tem origem no socialismo.
Só que é mais do que sabido que o socialismo francês anterior a Marx, por exemplo, tem um fundo profundamente cristão. Portanto, poderíamos ainda alterar a frase e irmos bem mais longe: o fascismo tem origem no cristianismo.
Ficaríamos mais elucidados? Claro que não. Quem conhece bem a história do pensamento político ocidental conhece também toda a sequência de contingências.
O que achei deveras curioso foi o facto de ter figurado neste debate uma figura como Georges Sorel, que caíra inteiramente (ou quase) no olvido. O nacionalismo de Sorel é que veio inspirar uma série de desenvolvimentos de teóricos a ponto de líderes políticos acabarem por desistir por completo do marxismo, fazendo casar apenas o socialismo com o nacionalismo. E tudo isso sem nenhuma causalidade directa, apenas porque as visões do mundo se foram, por inúmeras razões, alterando.
Vai para três décadas, venho chamando a atenção para a importância de Sorel (no Réflexions sur la Violence, 1908) a fim de se entender a obra Mensagem, de Fernando Pessoa. Não propriamente por causa do nacionalismo, pois não era essa a grande novidade da proposta de Sorel, mas por causa do seu conceito de mito. Os marxistas tinham deixado de acreditar na possibilidade da revolução e Sorel veio explicar-lhes o falhanço: os povos não se movem por ideias abstractas, mas sim por mitos. Todavia, têm de ser mitos que lhes toquem fundo, que tenham algo a ver com a sua ‘alma nacional’ (na altura um conceito muito em voga). Foi assim que o nacionalismo, conceito obviamente já existente há muito, se espalhou entre os marxistas (e não só), para acabar sendo removido e dele recuperando-se apenas a faceta do socialismo. Hitler, por sinal, nada tem de marxista; é simplesmente um nacional-socialista.
Expliquei também (passe a auto-publicidade, os interessados terão tudo isso num volume meu recente: Pessoa, Portugal e o Futuro, Gradiva, 2014) que Pessoa conhecia Sorel e agarrou-lhe a ideia: para os portugueses ressurgirem do marasmo em que estavam, precisavam de um mito nacional e, no nosso caso, não era sequer necessário inventar um, pois já tínhamos o sebastianismo. Era só fazê-lo renascer e integrá-lo numa nova proposta colectiva, um novo ideário para o país.
Voltando ao modelo de associação conceptual de JRS, também aqui poderíamos dizer: Mensagem, de Pessoa, tem origem no marxismo soreliano. E, no entanto, trata-se apenas de uma importação de elementos por via puramente contingente.
Assim, no meio das simplificações todas atrás elaboradas, mas que procurei fossem estabelecidas com rigor histórico e conceptual, pergunto-me:  se a frase de JRS fosse tomada à letra e, portanto, como simples resumo de uma associação contingente – o marxismo também desembocou no fascismo –, teria provocado toda esta polémica? Creio que não. Até porque nunca teria surgido em título nos jornais. Porque foi entendida como implicando muito mais do que de modo algo inocente afirma é que ela provocou tanta celeuma. E é exactamente por tal motivo que também, a esta distância, me senti impulsionado a vir tentar destrinçar alguns conceitos. Não para defender o marxismo. Nunca fui marxista, muito embora inclua Marx como leitura obrigatória no programa de uma disciplina que lecciono há 35 anos, por achar fundamental para se entender o debate teórico sobre valores éticos. Porque acho possível fazer alguma luz e, mais do que isso, por julgar deveras importante que se a busque. Daí atrever-me a entrar nesta liça. Fosse a afirmação de José Rodrigues dos Santos um mero truísmo, não valeria a pena debatê-la. Mas também não teria valido a pena ele afirmá-la em caixa alta nos jornais e vir depois defendê-la.
 
 
 
Onésimo Teotónio Almeida
 
 
 
(publicado originalmente no JL - Jornal de Letras Artes e Ideias, de 22-VI-2016, aqui reproduzido com permissão do autor. Obrigado, Onésimo, um abraço!)

 

 

 

 

sexta-feira, 29 de maio de 2015

O legado do último revolucionário

 
 


 
Uma leitura que vive, alerta, que destabiliza e nos acossa meio século depois da sua escrita. Num registo brilhante, de recorte clássico, onde ecoam os grandes moralistas franceses do século XVII, muitas vezes a golpes de dilacerante concisão, outras balançando o abstracto num elevado grau poético, em “A Sociedade do Espectáculo”, Guy Debord traça em tom profético as misérias e as servidões da sociedade, tal como ela se configurou no nosso tempo.
Debord foi um artista de estirpe filosófica, radical, o arqui-rebelde que se orgulhava de merecer totalmente o “ódio universal” da sociedade. Um crítico visionário que compreendeu a rede de fenómenos que compõem esta modernidade. A alienação e o comodismo que marcam a pacífica derrota das sociedades subjugadas à lógica da mercadoria, num tal grau de acumulação que tudo adquire a dimensão abstracta e fantasmagórica da imagem.
“Tudo o que era directamente vivido se afastou numa representação.” Em 1967, estava ainda longe a encenação da vida que a realidade virtual viria a construir, as redes sociais eram uma mera probabilidade de ordem especulativa ou ficcional, mas nesse ano foi publicada esta obra-prima onde se reconhecia que não só as relações sociais autênticas mas o próprio enquadramento, os tijolos e a argamassa que nos ligam uns aos outros, foram substituídos, passando a ser simulados. Não vivemos senão uma representação da própria vida, da qual, verdadeiramente, fomos expropriados, num modelo de escala 1:1. Um reflexo capturado numa sequência imparável, num presente constante.
         Não se trata de um diagnóstico que tenha como valor capital falar uma linguagem transparente. Pode-se dizer que o estilo desenvolvido por Debord é em si mesmo hostil a uma aproximação imediatista. O próprio sentido de comunicação simplificada em que o jornalismo degenerou nas últimas décadas participa da ilusão que é denunciada. A informação que se verga ao entretenimento, a omnipresença sufocante da cultura do estrelato, as celebridades que fazem dos restantes membros da sociedade os pobres espectadores, experimentando a vida em segunda mão. “O agente do espectáculo posto em cena como vedeta é o contrário do indivíduo, o inimigo do indivíduo, tanto em si próprio como, evidentemente, nos outros.”
Não há nada de inocente no facto de, hoje, a maioria das crianças sonharem com a fama. Não é uma forma de ingenuidade, é uma compreensão clara do que está em causa na escalada social. As celebridades, como esclarece o autor, são os especialistas desta vida aparente, são os sujeitos superficiais de todos os desejos, aqueles que concretizam os sonhos para os quais os restantes vivem. Funcionam como miragens: as personagens com as quais somos levados a identificar-nos numa compensação para a função cada vez mais acessória, ultra-especializada, da vida que vivemos. A produção procura que tudo seja substituível.
 Desapossados, incapazes de verdadeiras escolhas, de uma autonomia que não milite pela lógica do consumo, os indivíduos tornam-se factores de uma ordem quantificadora, meros fragmentos, soldados da disciplina económica que levou a que o “ser” se tenha despedido da sua liberdade em troca da acumulação, do “ter, que por sua vez não passa de um efeito de “imagem”, a capacidade de “parecer” e assim assumir protagonismo nesta peça de um único acto, infinito.
Debord escreve que por trás das máscaras de total liberdade de escolha, apenas se confrontam diferentes formas – subprodutos – da mesma alienação. O espectáculo, os espectáculos estenderam a sua dominação a todos os aspectos da vida social, abarcam tudo, burocratizam tudo, a própria angústia causada pela insatisfação é só outra vertente do comodismo, e a rebelião só sabe promover-se segundo uma dinâmica “puramente espectacular”.
Os conflitos que na nossa sociedade se representam não alcançam qualquer desvio, os opostos concebem uma perfeita simetria que tudo equilibra e anula. O próprio cinismo desta época, a desconfiança e descrença, as sensações que hoje se nos impõem de forma sintomática, foram de algum modo previstas em “A Sociedade do Espectáculo”. O próprio título foi transformado numa expressão de uso corrente, designando uma relação com o mundo saturada pelas imagens segundo uma regra que Debord formula desta maneira: “tudo o que aparece é bom e tudo o que é bom aparece”. É um conceito diluído, uma banalidade se relacionado com o verdadeiro sentido que Debord lhe atribuiu, mas essa mesma banalização não deixa de ser indicativa do alcance do seu pensamento.
O livro, que foi acusado de ser uma compreensão paranóica do progresso engendrado pelo capitalismo, lê-se hoje como a mais deliberada e veemente sucessão de ataques a uma sensibilidade que introduz em cada um dos nossos comportamentos um valor, uma forma de prestígio imediato, condicionado pelo fetichismo da mercadoria. Mas exactamente por o livro se confrontar com uma malha em que os agentes e os sujeitos se confundem – as vítimas mais que amar os carrascos se projectam neles –, não é fácil resumir a tese de Debord. A sua presciência faz com que este seja um livro que chegou hoje ao tempo da sua plena legibilidade. Hoje seria mais complicado acusá-lo de paranóia.
 
 
 
 
 
 
O seu génio não se ficou pelas palavras que bateu na máquina de escrever. A ordem social que viu despontar foi o seu alvo quando, na década de 1960, se assumiu como líder da Internacional Situacionista, uma célula de intelectuais restrita e sempre em convulsão onde confluíam todo o tipo de influências, mas cuja perspectiva sobre o mundo combinava essencialmente dois elementos: a compreensão do fenómeno da alienação bebida nos escritos de Marx e uma ênfase num tipo de pesquisas que nunca foram muito apreciadas pela esquerda tradicional – manifestações mais comuns a movimentos artísticos como o surrealismo e os dadaísmo, aquele tipo de sensibilidade que segue o lado mais irracional do desejo. “A Sociedade do Espectáculo” tem óbvios antecedentes, algumas das suas ideias não são sequer inovadoras. Pode-se-lhe traçar uma genealogia, começando por Hegel e Marx, Engels, Lukacs e a Escola de Frankfurt.
E houve contemporâneos de Debord que também desmontaram esta confluência. No mesmo ano, o seu cúmplice e depois, talvez, o seu maior rival, Raoul Vaneigem, publicou “A Arte de Viver Para as Novas Gerações”, um ensaio escrito num registo mais directo, mais humano e mais propagandista: “Consumir é ser consumido pela inautenticidade, alimentando a aparência em favor do espectáculo e às custas da verdadeira vida. O consumidor morre onde se agarra porque se agarra a coisas mortas: a mercadorias, a papéis...”
As duas obras assinalavam as bandeiras da Internacional Situacionista, e no ano a seguir à sua publicação o movimento viveu o seu momento de glória com o Maio de 1968, a revolta estudantil em França que realmente desafiou a ordem social, com uma série de ocupações que começaram pelas universidades e contagiaram os trabalhadores. Houve uma greve geral que contou com a participação de 10 milhões de trabalhadores. O governo e as uniões sindicais chegaram a um acordo mas nenhum trabalhador voltou ao trabalho. A greve terminou somente quando De Gaulle colocou as forças armadas nas ruas de Paris.
Debord vomitaria na cara dos nossos comentadores que enchem os canais no sinal constante para defender a condição fluente de um discurso que mata toda a crítica de relevo. Eles representam, no mais alto grau, aquilo que Debord analisou, radicalizando alguns aspectos do que é ainda actual na teoria marxista, mas indo para além dela, e que constitui talvez a sua “lição” mais importante: o principal factor de alienação consiste no processo que nos desapropria e aliena da linguagem.
Debord passou os seus últimos anos retirado no centro rural da França, na aldeia de Champot (Auvérnia), e em Novembro de 1994, aos 62 anos, pôs fim à vida com um tiro no coração. A sua guerra contra o espectáculo passou por uma série de manobras tácticas, “a construção de situações”, cujo principal objectivo era expor ao ridículo os seus inimigos. E cultivou-os como ninguém. Há toda uma novela de contornos em que é difícil estabelecer a fronteira entre a realidade e os rumores, o conjunto de mitos que fizeram de Debord um dos personagens mais fascinantes da história moderna. Depois dos eventos do Maio de 1968, há relatos sobre o seu envolvimento em acções terroristas em Itália e até no assassinato de alguns dos seus antigos cúmplices. Durante mais de uma década foi mantido sob vigilância pelos serviços secretos franceses, e, se a sua vida pública nunca se dissociou das suas intenções revolucionárias, o exílio que se impunha era muitas vezes perdido com travessias alcoólicas. Mas se tinha inimigos mortais, não deixou nunca de ser dos homens mais admirados entre a elite artística e os círculos dos negócios e da política franceses.
Após o suicídio, o romancista Philippe Sollers, uma das figuras centrais na cena intelectual parisiense, afirmou no “Libération” que a bala no coração tinha “uma importância revolucionária”. Segundo ele, para Debord o suicídio era a forma mais pura de crítica do “espectáculo”. Outros defenderam que passou os últimos anos deprimido por ter chegado à conclusão de que os seus escritos tinham deixado de ser um alerta, um apelo revolucionário, e se tinham tornado uma descrição precisa da vida moderna.
 
 
Diogo Vaz Pinto
 
(publicado originalmente no jornal «i»)
 
 
 

terça-feira, 5 de maio de 2015

URSS, mal amada bem amada, de Fernando Namora.

 
 
 
 
 
A propósito, diga-se que na URSS (melhor: em qualquer país socialista) antes ou logo após uma entrevista na TV, na rádio, na imprensa, nos é discretamente entregue um sobrescrito: dentro dele, uma remuneração substancial. Entrevista é trabalho, ou tem por detrás, normalmente, anos de devoção a uma ideia. E trabalho é para ser recompensado – não nada tem que ver com o apego ou o desapego aos dinheiros.


sexta-feira, 19 de setembro de 2014

A cidade pós-socialista.

 
 



 
Torres Gémeas, Almaty, Cazaquistão.
Projecto de Norman Foster
 
 
Há livros assim. Terríveis de tão bons. The Post-Socialist City. Continuity and change in urban space and imagery, organizado por Alfrun Kliems e Marina Dmitrieva. Uma obra colectiva, com vários artigos, em que cada um é melhor do que o outro. Leia-se de frente para trás ou de trás para a frente, cada texto é sempre mais interessante do que o anterior. Sem percorrer o índice de fio a pavio, e apenas num brevíssimo voo de pássaro, temos neste estabelecimento livreiro artigos de primeira qualidade sobre: monumentos e edifícios políticos da RDA após a reunificação da Alemanha; lugares de Praga depois da Revolução de Veludo; o majestoso Palácio da Cultura e da Ciência de Varsóvia; a famosa Praça da Independência em Kiev; a «cidade socialista» por excelência da Hungria, Dunaújváros (antiga Sztálinváros), projectada por Tibor Wiener;  um subúrbio de Bucareste e o novo urbanismo da Arménia.
         O livro é sobre o mais político dos organismos concebidos pelo homens – o espaço urbano – e aborda as transformações sofridas por várias cidades após a queda do comunismo. Mas, em boa verdade, The Post-Socialist City trata da Europa (como, aliás, se anuncia na nota introdutória, na linha dos trabalhos grande Karl Schlögel). Por muito estranho que pareça, compreendemos melhor o que é a Europa, e sobretudo o que poderá vir a ser, numa obra que dedica um capítulo inteiro à nova arquitectura ultramoderna do Cazaquistão. A «Europa», na verdade, pode ser várias coisas: uma entidade geográfica de contornos difusos; uma identidade histórica e cultural; uma comunidade de interesses. A Europa geográfica pode estender-se dos Açores aos Urais, mas a Europa dos interesses está onde a Alemanha quiser. Facto curioso: a publicação deste livro foi patrocinada por duas instituições alemãs, um centro da Universidade de Leipzig e pelo Ministério das Obras Públicas da República Federal…  
A União Europeia – e é essa uma das suas tragédias – procura ser em simultâneo todas as Europas que atrás de definiram, agrupando-as numa idée fixe. Repetimo-la: uma comunidade de interesses situada num espaço geográfico onde se forjou, através dos séculos, uma identidade cultural precisa mas difusa. Acontece que nem sempre estas três dimensões se articulam e ajustam. Nem sempre os interesses coincidem com a geografia. Raramente os interesses – sobretudo económicos – estão em consonância com os melhores valores da identidade cultural europeia (daí a proliferação de negócios com parceiros que não primam pelo seu apego à liberdade ou à democracia, ao respeito pelos direitos humanos e à tolerância).
 Os interesses da Alemanha, após a reunificação, deixaram de estar – ou deixaram de estar apenas – no espaço geográfico da Europa. Após a queda do Muro, a Alemanha passou a olhar para onde sempre quis, o ponto cardeal que sempre foi a sua vocação e destino: o Leste. Para os países da Europa do Sul, a reunificação foi uma tragédia – do ponto de vista dos interesses, não no dos valores ou princípios.  
 
 
 
 


Astana, Cazaquistão.
Projecto de Norman Foster

Um país, dois sistemas


Palácio da Paz e da Reconciliação, Astana, Cazaquistão.
Projecto de Norman Foster


 
 
 
 
Daí que, num certo sentido, o Cazaquistão seja muito mais «Europa» do que Portugal. Os grandes gabinetes de arquitectura, que têm o faro apuradíssimo para estas coisas, perceberam-no mais cedo do que quase todos nós, incluindo os académicos da geoestratégia ou os profissionais da diplomacia. Não é por acaso que Sir Norman Foster – ou, melhor dizendo, a firma Foster and Partners – projecta edifícios arrojadíssimos para o centro de Astana ou de Almaty. Não é por acaso que Rem Koolhaas, além da Casa da Música, no Porto, elaborou um projecto visionário – e, por certo, bastante dispendioso – para uma «Cidade da Ciência», nas imediações de Almaty. Ali corre o petróleo a jorros, abundam o gás natural e os metais preciosos. O Cazaquistão é um dos maiores exportadores de matérias-primas do mundo. Tem cerca de 15 milhões, um quarto da do Reino Unido, para um território de 2,7 milhões de quilómetros quadrados, onze vezes maior do que as Ilhas Britânicas. Desde 2000 que o Cazaquistão regista colossais taxas de crescimento de 9% ao ano. É considerado pela Transparency International um dos países mais corruptos do mundo (numa lista de 145 países, conquistou um desonroso 122º lugar). Mas nada disso impediu que fosse escolhido em 2010 para assumir a presidência da OCDE. Podemos ler muita coisa sobre o Cazaquistão, mas o artigo deste livro sobre a vertiginosa ascensão da arquitectura de vanguarda em cidades como Astana, Almaty e Aktau diz-nos mais do que vários tratados de geopolítica. Edifícios de vanguarda num país que só formalmente é uma democracia, onde o presidente Nazarbaev concentra em si quase todos os poderes. Desde 2007, o parlamento só tem deputados do seu partido, o Nur Otan («Luz da Pátria»). Não admira que os parlamentares tenham aprovado legislação que exime o presidente Nazarbaev da regra constitucional que impõe a renovação do mandato do chefe do Estado. Durante vários anos, a televisão estatal foi dirigida pela filha mais velha do presidente, Dariga Nazarbaev, que tem a sua clique de fiéis à frente das principais companhias e empresas. Nazarbaev intervém e tem a palavra final nos grandes negócios do país. Certamente que muitas das empresas que aí operam tiveram que falar com ele, ou alguém muito próximo dele, para se instalarem nas terras do Cazaquistão. A companhia Tengizchevroil, por exemplo, é uma joint venture entre a Chevron, a ExxonMobil, a Lukarco e a empresa casaque KazMunayGaz. A italiana Agip está noutra parceria, a extrair gás na região de Uralsk. Fábricas de automóveis? Nissan. Quem faz o cimento e os materiais das unidades de extracção do petróleo? ThyssenKrupp, da Alemanha. Quem faz as comboios de transporte ferroviário? General Electric, dos EUA. Tudo isto se processa num país onde a população rural vive mal, muito, e continua a viver mal, muito. A esperança de vida situa-se nos 62 anos para os homens e 73 para as mulheres, sendo cada vez mais intenso o êxodo para as cidades. Estas, sobretudo as maiores, são adornadas por edifícios desconcertantes de tão risíveis, num estilo falsamente majestoso, mas que no fundo é uma metáfora do Cazaquistão contemporâneo, uma ditadura falsamente majestosa.    
         Outro caso curioso, e revelador da cupidez humana, é o do «turbo-urbanismo» em Pristina, na ex-Jugoslávia. Por muito esotérico que o termo pareça ser, ele pretende ilustrar uma realidade que vale a pena ser conhecida: após a fragmentação da Jugoslávia, interesses vários obrigaram a construir rapidamente e em força. A presença inesperada de refugiados, o afluxo de repatriados e a chegada de inúmeros funcionários de organizações internacionais fizeram com que se tivesse de edificar a uma velocidade turbo, quase sempre sem olhar a regras elementares de urbanismo e, claro está, à estética dos edifícios. Predominou a construção em vidro espelhado azul, pretendendo-se dar um ar «international» a casas construídas da noite para o dia, no meio de ruas atravessadas por fios e cabos de todas as espécies, postes de iluminação periclitantes, trânsito caótico. O artigo publicado neste The Post-Socialist é excepcional porque retrata exemplarmente o impacto no espaço público de uma necessidade social imperiosa, à mistura com a especulação imobiliária e a corrupção pública – mas também privada. Tudo a acontecer num território com uma taxa de desemprego de 40% e diversas máfias a actuar, que de súbito se vê confrontado com a chegada de hordas de gente e capitais internacionais. O saldo final é kitsch a valer, dir-se-ia numa paráfrase de Dâmaso Salcede. Se as construções do Cazaquistão são fashion e ofuscantes, aqui predomina a mixordice e edificação atamancada. Quando Rexhep Lupi, o director de planeamento urbano de Pristina, tomou as primeiras e muito tímidas medidas para pôr termo à balbúrdia do turbo-urbanismo, o que aconteceu? Foi morto a tiro.   
 

 

 

Turbo-arquitectura, turbo-urbanismo
 
 
 
         Local também a reter: Floreasca, arredores de Bucareste. Construído para albergar a elite da era Ceucescu (aí existia, por ex., uma escola experimental para ensino intensivo do inglês), encontra-se hoje a ser alvo de um processo de «gentrificação» e, mais ainda, de «embelização» (beautification), com arranjos florais que tentam esconder os arranhões do cimento em derrocada e coisas do género, todas lindas, muito lindas. O número de lojas diminuiu, do mesmo passo que se registaram infindos casos de apropriação do espaço público e cada qual tentou demarcar o seu território através de gradeamentos, muros, etc., interrompendo vias de passagem e até destruindo espaços verdes de fruição colectiva. A beautification romena não anda muito longe daquilo que se faz em muitas cidades ou zonas de Portugal. Coloca-se uma «via pedonal», uma alameda de palmeiras e meia-dúzia de floreiras e pronto, já está – temos um «renovação urbana».
 

Floreasca, Bucareste, Roménia.
 
 
         Leitura recomendável, sem dúvida, a deste livro The Post-Socialist City, que nos diz muito sobre o mundo em que vivemos, que é um lugar estranho. Dele extraiamos, e com razão, uma crítica à acção das grandes multinacionais e à venalidade de alguns nomes grandes da arquitectura contemporânea. Muito superior a outro livro que, na sua cegueira «militante», é acéfalo e superficial, Evil Paradises. Dreamworlds of Neoliberalism, editado por Mike Davis e Daniel Monk (o capítulo sobre o Brasil como «o país mais injusto do mundo» é de uma banalidade de bradar aos céus; do livro só se aproveita um belíssimo ensaio-reportagem sobre a voracidade latifundiária de Ted Turner, ex-patrão da CNN). Ainda que um pouco datado (é de 2010, creio), The Post-Socialist City traz-nos textos informados, estudos de caso que cobrem um amplo espaço geográfico. A Europa já não mora aqui. Agora, vive algures entre Berlim e o Cazaquistão. É tempo de percebermos isso.
 
António Araújo